Situação Geral dos Tribunais

Ofensa aos princípios de adequação, proporcionalidade e razoabilidade pela decisão de cancelamento da autorização de residência da mulher e das suas filhas menores por morte do marido

       A (de sexo feminino), de nacionalidade indonésia, e D (de sexo masculino), residente permanente da RAEM, de nacionalidade chinesa, contraíram casamento em 16 de Abril de 2003 na Austrália. Deste casamento nasceram duas filhas, B e C, na Austrália, respectivamente, em 2007 e 2009. Em Fevereiro de 2011, D foi diagnosticado com um tumor maligno nas vias hepáticas, altura em que a família decidiu fixar residência em Xiamen, China. Contudo, após vários tratamentos, A ficou ciente de que a morte do D seria um evento próximo e inevitável, tendo decidido abandonar Xiamen e regressar para Macau, em Fevereiro de 2012, juntamente com o marido e duas filhas, para o marido passar os seus últimos dias na sua terra natal. Após o regresso a Macau, a família residiu na casa da mãe do D. Ademais, D requereu a residência em Macau para a sua mulher e duas filhas por motivo de junção familiar, a qual foi deferida, e, em consequência, a mulher e duas filhas tornaram-se titulares de Bilhete de identidade de residente não permanente da RAEM em 6 de Setembro de 2012. O prazo de validade do BIR de Macau da A terminaria em 11 de Julho de 2013 enquanto o dos BIR de Macau da B e C terminaria em 6 de Setembro de 2017. Em 2 de Junho de 2012, D faleceu no Hospital Kiang Wu.

       Antes do término do período da validade da sua autorização de residência, A apresentou o pedido de renovação da autorização de residência aos Serviços de Migração. Em 27 de Fevereiro de 2014, o Secretário para a Segurança proferiu o despacho que, nos termos do art.º 9º, n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003 e art.º 22º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência da A, por não existirem mais o objectivo (junção familiar) e a possibilidade da concessão da autorização de residência devido ao falecimento do marido da requerente, e, ao mesmo tempo, nos termos do art.º 9º, n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003 e art.º 24º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, declarou a caducidade da autorização de residência da B e C.

       Inconformadas, interpuseram A, B e C recurso contencioso de anulação para o Tribunal de Segunda Instância. Como fundamentos, as recorrentes invocaram: B e C deveriam ter adquirido o estatuto de residentes permanentes da RAEM, uma vez que são filhas de nacional chinês, residente permanente da RAEM (D), nascidas fora da RAEM, nos termos do art.º 21º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, residência essa que não está sequer sujeita a qualquer renovação nem obedece ao regime de caducidade previsto no art.º 24º do mesmo Regulamento Administrativo. Os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento sobrevivem à morte do D, e não se desintegrou a família das recorrentes com a morte do mesmo, a par disso, as recorrentes continuaram a ter em Macau o seu centro de vida estável e preencheram todos os requisitos para o deferimento do pedido de autorização de residência consagrados no art.º 9º, n.º 2 da Lei n.º 4/2003, pelo que a morte do D não implica automaticamente a perda do direito de residência das recorrentes. As consequências causadas às recorrentes pelo acto recorrido e o interesse público prosseguido pelo referido acto são desproporcionais. O acto recorrido deve ser anulado por ter rompido a unidade, harmonia e estabilidade familiares das recorrentes, infringido o direito à família conferido aos cidadãos de Macau pelo art.º 38º da Lei Básica da RAEM e violado o art.º 1534º do Código Civil e os artigos 1º, 2º, 3º e 15º da Lei de Bases da Política Familiar da RAEM.

       O Tribunal de Segunda Instância conheceu do caso. De antemão, face ao fundamento do recurso que defende a não sujeição da autorização de residência da B e C à renovação e à caducidade, apontou o Tribunal Colectivo que, nos termos do art.º 24º, al. 2) da Lei Básica da RAEM e do art.º 1º, n.º 1, al. 3) da Lei n.º 8/1999, só são residentes permanentes da RAEM os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois, do estabelecimento da RAEM, e os seus filhos de nacionalidade chinesa nascidos fora de Macau, depois de aqueles se terem tornado residentes permanentes. In casu, B e C, as duas filhas do D, são de nacionalidade australiana, porém, nos termos da Lei da Nacionalidade da República Popular da China, elas perderam a nacionalidade chinesa ao adquirirem a australiana, razão pela qual estas não beneficiaram do estatuto de residentes permanentes, sendo desnecessário falar sobre a questão da não sujeição da autorização de residência à renovação e ao regime de caducidade.

       Perante a razão que levou a Administração a deixar de renovar a autorização de residência da A e declarar a caducidade da autorização de residência da B e C (as recorrentes perderam o objectivo- junção familiar- da concessão da autorização de residência devido ao falecimento do D), entendeu o Tribunal Colectivo que, não obstante a morte do D, o cônjuge e as duas filhas do falecido mantiveram a ligação com o mesmo, por via da continuação do uso dos apelidos deste, do direito à herança, do direito a alimentos em relação à mãe deste, da relação de afectividade com a família do mesmo e demais outras formas, podendo ser este entendido como conteúdo da junção familiar, consequentemente, não se pode dizer que fosse perdida a finalidade de residência das mesmas em Macau. Obviamente, embora fossem preenchidos todos os requisitos previstos no art.º 9º, n.º 2 da Lei n.º 4/2003, a Administração ainda poderia exercer o poder discricionário, no sentido de privar o direito à residência das recorrentes, após a análise sintética das circunstâncias concretas do caso, no entanto, não se pode deixar de ter em conta o corte da ligação das duas crianças, nos aspectos educacional, familiar e emocional, a Macau.

       Mencionou o Tribunal Colectivo que a Administração, ao praticar o acto administrativo de privação do direito à residência, pretende prosseguir os seguintes interesses públicos: segurança pública interna e recusa de entrada de “indesejáveis”, de um aumento populacional desequilibrado, dos custos sociais inerentes dos encargos dos cofres da RAEM devido ao aumento populacional, mas, simultaneamente, não se deve deixar de contemplar as situações carentes de humanidade. Só se consideram mais justas as decisões feitas com o balanceamento dos dois interesses. O acto recorrido, por mera razão da morte do pai da família das recorrentes, tomou a decisão de privação do direito à residência em Macau das recorrentes, dela decorre a consequente necessidade de as duas crianças abandonarem o local em que integraram totalmente e a avó que conviveu com elas, desestruturando-se a sua vida pessoal, familiar e social e quebrando-se as expectativas legítimas quanto à continuação da sua vida em Macau, derivadas do acto administrativo anterior que lhes concedeu a autorização de residência. Assim sendo, concluiu-se que esta é uma decisão desrazoável, inadequada e desproporcional.

       Enfim, no que concerne à questão da violação do direito à família, indicou o Tribunal Colectivo que embora o art.º 38º da Lei Básica e os artigos 1º, 2º e 3º da Lei de Bases da Política Familiar da RAEM consagrem o princípio da protecção, unidade e estabilidade familiar, considerando-o como um direito fundamental dos cidadãos, direito este não passa necessariamente pela junção de todos os elementos da família em Macau, sob pena de se admitir que a autorização de residência individual passaria automaticamente a ser alargada para toda a família do interessado a que fosse concedida a autorização de residência. Nesta conformidade, improcedeu-se o motivo em apreço.

       Pelas apontadas razões, o Tribunal de Segunda Instância concedeu provimento ao recurso contencioso, com fundamento na ofensa aos princípios de adequação, razoabilidade e proporcionalidade, anulando o acto administrativo recorrido.

       Cfr. o acórdão do processo n.º 255/2014 do Tribunal de Segunda Instância.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

21/07/2015