Situação Geral dos Tribunais

Foi absolvido Teng Man Lai do crime de burla qualificada por natureza privativa do terreno e sua forma de aquisição

      Em 19 de Setembro de 2014, o Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base (TJB) absolveu o arguido Teng Man Lai de um crime de falsidade de declaração de parte e de um crime de burla qualificada. Recorreram o Ministério Público e a assistente para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), no que respeita à absolvição do arguido do crime de burla qualificada.
      Em 23 de Julho de 2015, o Tribunal Colectivo do TSI passou a condenar o arguido como autor de um crime de burla qualificada, na pena de 4 anos de prisão, declarando perdido a favor do Estado o prédio dos autos.
      Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal de Última Instância (TUI), entendendo que devia ser absolvido do crime de burla.
      Por outro lado, recorreu A para o TUI, quanto à perda do terreno a favor do Estado, declarada pelo acordão recorrido.
      O Tribunal Colectivo do TUI conheceu do caso, entendendo que: Dado que tanto a acusação, como o acórdão recorrido, consideram que os factos integrantes do elemento do crime de burla consistente no erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, são não ter indicado como réus da acção cível de usucapião os vendilhões do terreno, para evitar que alguém contestasse a acção, consistindo nisto o engano, elemento do crime de burla, previsto no Código Penal, há que examinar a questão da legitimidade passiva nas acções cíveis, mormente na acção de usucapião; conexa com a questão anterior, está o exame do elemento prejuízo no crime de burla, visto que o acórdão recorrido decidiu que este seria o prejuízo sofrido pelos vendilhões por deixarem de poder fazer negócios no terreno; cabe, ainda, apurar se houve intenção do ora arguido de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
      1. Circunstâncias relevantes da situação registral e negocial do terreno dos autos
      O terreno dos autos, situado em Macau junto ao chamado Mercado Vermelho, tem de área 379 m2 e faz parte da descrição n.º 6202, da Conservatória do Registo Predial de Macau.
      Relativamente ao prédio rústico descrito sob o n.º 6202 foi, em 18 de Maio de 1904, inscrita a aquisição do domínio útil a favor de Li Pat, por compra (escritura pública de 30 de Dezembro de 1903), sob o n.º 1288 do Livro GL3, fls. 2v, da Conservatória do Registo Predial de Macau, ficando-lhe assim a pertencer a propriedade perfeita por já ser o dono do domínio directo.
      Por sentença de 12 de Novembro de 1954, do Juiz de Direito da Comarca de Macau, foi Chan Meng, declarado ter a posse pacífica, pública e contínua, por mais de 5 anos, de um terreno com a área de 1467,19 m2, onde se inclui o terreno dos autos.
      Chan Meng faleceu no dia 4 de Janeiro de 1958, estando casado com C.
      Por escrito de 17 de Outubro de 1977, o arguido Teng Man Lai comprou o terreno dos autos a C, por cem mil patacas.
      2. Não se provou que o arguido tivesse a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo
      O terreno dos autos está registado como propriedade privada desde 1904, pelo que a ele não se aplica o disposto no artigo 7.º da Lei Básica. Trata-se de um terreno privado, não público.
      Por escrito de 17 de Outubro de 1977, o arguido Teng Man Lai comprou o terreno dos autos por cem mil patacas. Desde 1904, as transacções subsequentes não terão sido formalizadas por escritura pública, como se impunha. Seria difícil reatar o trato sucessivo. Mas o arguido parece ter ingressado legitimamente na posse do terreno, pois pagou o mesmo à pessoa que aparentava ter a sua posse há muitos anos. Assim sendo, como bem decidiu o acórdão de 1.ª instância, não se pode dar como provado que houve intenção do arguido obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo. O terreno foi-lhe vendido, embora sem título, pelo que a sua aquisição formal não constituía qualquer enriquecimento, muito menos ilegítimo.
      É certo que o arguido mentiu na acção cível, dizendo que tinha o corpus da posse, cobrando renda aos vendilhões, o que se provou neste processo-crime não ser verdadeiro. Tudo leva a crer que usou um meio ilícito (mentir na acção cível sobre determinados factos) para atingir um fim aparentemente legítimo, que era a legalização registral do terreno, que pagou a quem se apresentou como dono legítimo. Estas considerações não afastam a possibilidade de qualquer interessado poder, ainda agora, demonstrar a aquisição do terreno por usucapião, movendo acção contra o presuntivo proprietário. Assim, se o fim era legítimo, é evidente que não houve qualquer intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
      3. Os vendilhões não podem ser réus na acção de usucapião
      A tese da acusação e do acórdão recorrido é a de que o arguido não indicou como réus da acção cível os vendilhões do terreno, para evitar que alguém contestasse a acção, consistindo nisto o engano, elemento do crime de burla, previsto no Código Penal. Esta tese parte de um erro fundamental de doutrina de processo civil.
      A acção de usucapião visa a declaração de aquisição da titularidade de um direito real, no caso o direito de propriedade, com fundamento na posse do bem em causa, durante certo tempo e na sua invocação por parte do interessado, dado que a usucapião não opera automaticamente pela constatação de que alguém tem a posse pública e pacífica pelo tempo necessário à aquisição por usucapião. Nos termos do artigo 58.º do Código de Processo Civil, na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade passiva para a acção cível os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor. Assim, nesta acção de usucapião são partes legítimas, como autor, aquele que pretende a declaração de aquisição da titularidade de um direito real em seu favor e, como réus, quem, expressa ou tacitamente se arrogue a titularidade do mesmo direito. Quer isto dizer que, estando registada a aquisição do direito de propriedade a favor de certa pessoa, tem esta pessoa de ser demandada, visto que, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. Por outro lado, se houver litígio quanto à titularidade do mesmo direito, isto é, se alguém se arrogar ser dono do bem em causa, também tem essa pessoa de ser accionada como réu, ainda que não beneficie de registo a seu favor. Pois bem, outras pessoas, como o locatário, o comodatário ou os meros detentores, não só não devem, como não podem ser demandadas como réus, já que não sujeitos da relação controvertida, que é a da titularidade do direito real, mormente do direito de propriedade do imóvel. Isto é pacífico. Os vendilhões segundo se provou neste processo-crime eram meros detentores, meros ocupantes precários do terreno. Não tinham de ser nem podiam ser réus na acção. Em conclusão, não existiu qualquer erro ou engano por parte do arguido em não demandar os vendilhões, já que na acção de usucapião de direito de propriedade de imóvel os seus detentores não podem ser accionados como réus.
      4. Prejuízo patrimonial dos vendilhões
      Na tese do acórdão recorrido o prejuízo de outrem, outro elemento do crime de burla, seria o prejuízo sofrido pelos vendilhões por deixarem de poder fazer negócios no terreno.
      Há aqui um evidente equívoco, na medida em que não se identifica de que direito seriam titulares os vendilhões, que os habilitasse a ser indemnizados da cessação da sua actividade no terreno. Tanto quanto resulta dos autos, os vendilhões não têm qualquer direito a estar no terreno. A sua ocupação do terreno não tem na sua base qualquer título, não sendo arrendatários do mesmo. São meros ocupantes precários. Logo, o proprietário que pretenda a desocupação do imóvel não tem de os indemnizar. Com o que falece a tese do prejuízo.
      Em suma, não se verifica nenhum dos elementos do crime de burla imputado ao arguido, pelo que se impõe a sua absolvição, como bem se decidiu pelo Tribunal Colectivo do TJB.
      Face ao expendido, o Tribunal Colectivo do TUI concedeu provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogou o acórdão recorrido e absolveu o arguido de crime de burla qualificada, de que vinha acusado.
      Cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, no Processo n.º 73/2015.
      

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância
03/03/2017