Situação Geral dos Tribunais

Macau Não é o Paraíso de Crimes, e Crimes Praticados Fora do Território Deverão Ser Igualmente Punidos

      Num certo dia de Dezembro de 2007, o arguido telefonou ao seu amigo B (ofendido) que tinha conhecido em Zhuhai, alegando que a Air Macauonde ele exercia funções dispunha de uma quota de trabalhador não residente, que era uma oportunidade rara e valiosa, e pedindo, assim, ao ofendido para ver se havia parentes ou amigos seus que se quisessem candidatar a essa. No início de Janeiro de 2008, o ofendido manifestou ao arguido que a filha de um amigo seu tinha vontade de se candidatar àquele posto e depois, conforme solicitou o arguido, entregou a este, em Zhuhai, RMB2.400,00 e uns documentos sobre a C. Ao receber a verba e documentos acima referidos, o arguido afirmou ao ofendido que a C poderia vir trabalhar formalmente em Macau antes de 17 de Fevereiro de 2008. No entanto, até 17 de Abril de 2008, quando o ofendido participou o facto à Política Judiciária, a C ainda não obteve junto do arguido documentos legais que lhe permitissem trabalhar em Macau. Na verdade, o arguido não detinha tal qualidade ou capacidade que pudesse ajudar outrem a obter documentos legais para trabalhar em Macau, até nem era funcionário da Air Macau.

      Em 16 de Janeiro de 2008, o arguido foi até à casa do ofendido, altura em que disse ao mesmo que, como tinha sido recomendado pela Air Macau para a frequência dum curso de formação de engenharia mecânica fora de Macau, precisava urgentemente de RMB75.000,00 para pagar os respectivos custos, perguntando ao ofendido se podia emprestar-lhe tal quantia de dinheiro. O arguido prometeu ao ofendido devolver-lhe o montante emprestado antes do dia 22 desse mesmo mês, estando ainda disposto a passar-lhe recibo de empréstimo. Acreditando nas palavras do arguido e na sua identidade, o ofendido emprestou-lhe uma quantia no valor total de RMB75.000,00, e o arguido, por seu turno, também passou ao ofendido um recibo de empréstimo. Até 17 de Abril de 2008, dia em que o ofendido participou o facto à Polícia Judiciária, o arguido não devolveu o dinheiro emprestado ao ofendido, nem este conseguiu entrar em contacto com aquele.

      O arguido foi acusado pela prática de um crime de burla simples e de um crime de burla (de valor elevado), p. e p. pelo art.º 211.º, n.ºs 1 e 3, conjugado com o art.º 196.º, al. a), todos do Código Penal.

      Realizada a audiência de julgamento, o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, com base na incompetência dos tribunais de Macau para aplicar ao caso vertente a lei penal de Macau, declarou extinta a instância. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público recorreu para o Tribunal de Segunda Instância.

      O colectivo do TSI entendeu que cumpre resolver primeiro a questão de aplicação da lei penal de Macau – a eficácia espacial do Código Penal. Sendo o ponto crucial o entendimento do art.º 5.º, n.º 1, al. c) (2) do CPM. Entendeu o tribunal a quo que as condutas do arguido neste processo também constituíram crime no Interior da China, mas segundo os factos provados nos autos, os órgãos competentes do Interior da China não actuaram o processo e exerceram o poder punitivo, pelo que não foi aplicável a lei penal de Macau. Porém, a ressalva de “salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo” prevista pelo art.º 5.º, n.º 1, al. c) (2) do CPM é um facto “negativo”. Quer dizer, no pressuposto de reconhecimento da existência dos factos criminosos, só se constitui o não exercício do poder punitivo quando é verificado qualquer motivo jurídico que resultar na impossibilidade de punição do agente, tais como: a prescrição do procedimento criminal e a desistência da queixa, etc. Porque só neste tipo de situações é que se verifica realmente a atitude de não efectivar a responsabilidade quanto aos actos criminosos, tomada pela lei do local da prática do facto, representante do princípio da territorialidade. Por isso, neste caso, mesmo a lei penal local que serve para a aplicação subsidiária e a integração de lacunas jurídicas perde o sentido de intervenção. Afigurou-se ao acórdão do tribunal a quo que era necessário provar um facto positivo – o local da prática do facto exercer o poder punitivo, para a aplicação da lei penal de Macau, decisão essa que entendeu erradamente a ressalva do art.º 5.º, n.º 1, al. c) (2) do CPM.

      Por outro lado, nos termos do art.º 6.º do CPM: “a aplicação da lei penal de Macau a factos praticados fora de Macau só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no local da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.” Este artigo regula expressamente a restrição à aplicação da lei penal de Macau, para excluir a “instauração de uma segunda acção quanto ao mesmo facto”. Porém, por não ficar provado no presente processo que o arguido já foi julgado e condenado no Interior da China, também não é aplicável o art.º 6.º do CPM. Por isso, os tribunais de Macau têm competência para aplicar a lei penal de Macau aos factos neste processo, e deve ser anulado a decisão do tribunal a quo. No entanto, para garantir o direito de recurso do arguido, o TSI reenviou o processo ao colectivo do tribunal a quo para novo julgamento, para que este colectivo fizesse uma sentença adequada ao arguido com base nos factos provados.

      O colectivo do TSI julgou procedente o recurso do Ministério Público, decidiu que os tribunais de Macau tinham competência para aplicar a lei penal de Macau aos factos neste processo, e ordenou o reenvio do processo ao tribunal a quo para que fizesse uma sentença adequada.

      Cfr. o Acórdão no Processo n.º 365/2012 do TSI.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

09/01/2014