Situação Geral dos Tribunais

Bem comum foi vendido pelo marido, a mulher recorreu para o Tribunal de Segunda Instância e reganhou o bem

      A Autora e o 1º Réu casaram em 1984 no Interior da China e tiveram um filho e uma filha na constância do matrimónio. Em 1990, o 1º Réu veio para Macau, com o intuito de auferir um salário melhor enquanto a Autora ficou no Interior da China a cuidar dos filhos. Em 2002, o 1º Réu adquiriu uma fracção autónoma em Macau, altura em que ele declarou ter casado sob o regime de separação de bens. Em 2004, a Autora veio viver para Macau com os seus dois filhos e viviam juntamente com o 1º Réu na referida fracção autónoma. Em meados do mês de Maio de 2007, a Autora saiu do imóvel em causa. A partir de 7 de Junho de 2007, a fracção autónoma em questão já se encontrava livre de pessoas e bens. Em 13 de Julho de 2007, o 1º Réu vendeu, mediante procurador, o imóvel à 2ª Ré sem o consentimento da Autora. Em 8 de Novembro de 2007, a Autora intentou acção civil no Tribunal Judicial de Base, requerendo a anulação do negócio de compra e venda do imóvel e a do registo de aquisição do mesmo imóvel em nome da 2º Ré na Conservatória do Registo Predial de Macau.

      O Tribunal Judicial de Base apontou que a Autora casou-se com o 1º Réu em 1984 no Interior da China, como tal, por força do disposto no artigo 48º do Código Civil, é a Lei de Casamento da República Popular da China de 1980 que regula o regime de bens do casal que é o regime de comunhão de adquiridos, não sendo o regime de separação de bens conforme a declaração do 1º Réu. Nesta conformidade, a fracção autónoma adquirida pelo 1º Réu em 2002 é do património comum do casal e como tal a sua venda carece do consentimento de ambos os cônjuges. Uma vez que a Autora não logrou demonstrar que a 2ª Ré actuou de má fé na aquisição do imóvel, tal facto não pode ser oposto à 2ª Ré (artigo 1554º, nº 3 do Código Civil). Além disso, em virtude de que a Autora saiu voluntariamente da fracção, e não foi forçada, antes da venda do imóvel em questão, este não pode ser considerado casa de morada de família, deste modo, não é aplicável neste caso o artigo 1548º, nº 2 do Código Civil. Pelos termos expostos, o Tribunal Judicial de base rejeitou a acção intentada pela Autora contra os dois réus.

      Inconformada, a Autora recorreu para o Tribunal de Segunda Instância, imputando à sentença a quo errada aplicação da lei e contradições entre a fundamentação e a decisão. Ambos os réus apresentaram contestação, tendo o 1º Réu pedido a ampliação do âmbito do recurso conforme o artigo 590º, nº 2 do Código de Processo Civil, no qual levantou duas questões: primeiro – a nulidade parcial da sentença a quo que considerou como provado o facto, não alegado pela Autora, de vigorar entre o casal o regime de comunhão de adquiridos; segundo – a Autora alterou a causa de pedir no recurso interposto, o que não é permitido por lei.

      O Tribunal de Segunda Instância entende que é necessário apreciar se o negócio de compra e venda do imóvel pode ser anulado com fundamento na falta da intervenção e do consentimento da Autora na venda do imóvel que constituía o bem comum do casal e, caso não se possa, pode ser anulado por falta do consentimento da Autora na venda da casa de moradia de família?

      Quanto à primeira questão, o Tribunal de Segunda Instância entende que bem andou o Tribunal a quo ao aplicar a Lei de Casamento da República Popular da China vigente no momento da celebração do casamento afirmando que o regime de bens entre a Autora e o 1º Réu é o da comunhão de adquiridos. No entanto, o Tribunal a quo aplicou incorrectamente o disposto no artigo 1554º, nº 3 do Código Civil que visa regular a alienação de bens móveis não sujeitos a registo. In casu, está em causa um imóvel, portanto é anulável o negócio de compra e venda da fracção autónoma in questio por falta da intervenção e do consentimento da Autora na venda do imóvel que constituía o bem comum do casal.

      Relativamente às duas questões invocadas pelo 1º Réu na sua contestação: no que diz respeito à primeira questão, o Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância entende que o regime de bens adoptado pelos Autora e 1º Réu não é facto e não carece de ser alegado pelas partes, mas sim uma conclusão jurídica resultante da aplicação do direito exterior à RAEM. Ainda por cima, a Autora já deduziu pretensão, portanto não padece de qualquer nulidade a sentença recorrida. E quanto à última questão, a causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, só há alteração da causa de pedir quando houver alteração desse facto concreto. In casu, a Autora invocou os mesmos factos na primeira e segunda instâncias, apenas alterou a qualificação jurídica dos factos invocados na motivação do recurso, por conseguinte, inexiste a alegada alteração da causa de pedir.

      No tocante à segunda questão, quanto à conclusão deduzida pelo Tribunal Judicial de Base de o imóvel vendido deixar de ser a casa de morada de família por a Autora sair voluntariamente do mesmo imóvel, o Tribunal de Segunda Instância recorre ao conceito de acto voluntário adoptado no direito penal, indicando que a expressão “sair voluntariamente” tem o sentido de que o acto da Autora de sair da referida fracção autónoma foi conduzido pelo cérebro dela, nunca de um puro acto reflexo. Este facto apenas manifesta que a Autora não saiu do imóvel sob coacção física, mas não significa que a mesma não sofreu coacção moral ou ameaça psicológica. Assim, o simples facto de que “em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma”, reputa-se manifestamente deficiente para decidir pela improcedência da acção. Há que portanto ampliar a matéria de facto, de forma de possibilitar a investigação dos factos do “encadear de acontecimentos e atitudes por parte do 1º Réu”, articulados pela Autora na petição inicial e apurar o motivo que levou a Autora a sair do imóvel, a fim de decidir a aplicação, ou não, do artigo 1548º, nº 2 do Código Civil. Trata-se do fundamento subsidiário da decisão, não sendo necessário o novo julgamento na primeira instância. Os fundamentos principais invocados anteriormente são suficientes para julgar procedente o recurso.

      Pelos fundamentos acima expostos, o Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso interposto, revogando a sentença recorrida e julgando procedente a acção proposta pela Autora, bem como anulando o negócio de compra e venda do imóvel em causa e determinando o cancelamento do registo da aquisição do mesmo imóvel a favor da 2ª Ré na Conservatória do Registo Predial de Macau.

      Consulte o acórdão proferido no processo nº 380/2009 do Tribunal de Segunda Instância.

 

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

25/02/2014