Situação Geral dos Tribunais

Ofensa qualificada à integridade física considerada como crime público

        No dia 16 de Dezembro de 2008, de manhã, o 1º arguido A conduzia um automóvel ligeiro e circulava numa estrada, transportando no automóvel o 2º arguido B. Atrás do seu veículo, circulava um automóvel ligeiro, conduzido por C, que transportava D. De repente, o 1º arguido parou o automóvel que conduzia e dirigiu-se ao automóvel de trás, entrando em discussões com C e D. Durante as discussões, o 1º arguido agrediu D com socos na cabeça e pernas e mordeu a perna de C. Em resultado, D sofreu contusões nos tecidos moles que rodeiam o olho esquerdo e nos na parte superior da perna esquerda, as quais necessitaram de cinco dias para se recuperarem, enquanto C sofreu contusões nos tecidos moles na parte superior da perna esquerda, que precisaram de um dia para se recuperarem.

        Depois, o guarda policial E foi mandado ao local para resolver a contenda. Na altura, o 1º arguido insurgiu-se repentinamente, batendo a sua cabeça contra a janela traseira do automóvel que conduziu e atirando ao chão uma ponta de cigarro. O guarda E indicou-lhe que ele tinha violado o disposto no Regulamento Geral dos Espaços Públicos, mas este não ligou importância, tendo ainda dito ao guarda E: “Quem é você, caralho? Não é da sua conta, caralho!” A seguir, o 1º arguido ainda deu uma bofetada na cara do guarda E, tendo-lhe causado contusões nos tecidos moles faciais do lado esquerdo, as quais necessitaram de um dia para se recuperarem. Como o 1º arguido estava com intenso cheiro de álcool, o guarda pediu-lhe para se submeter ao exame de pesquisa do álcool no ar expirado, pedido esse que foi recusado pelo mesmo. Mais tarde, o 1º arguido foi levado ao Centro Hospitalar Conde de São Januário, onde lhe foi exigida a submissão ao exame de taxa de alcoolemia. Todavia, essa exigência foi igualmente recusada sem justa causa pelo 1º arguido, que, depois disso, foi levado de volta ao Corpo de Polícia de Segurança Pública para efeitos de investigação. Durante a investigação, o 1º arguido negou ser o condutor do automóvel ligeiro em questão, enquanto o 2º arguido confessou sê-lo. O 2º arguido, sabendo perfeitamente que o 1º arguido conduzira o veículo na via pública sob influência do álcool, sempre declarou à polícia que fora ele o condutor, no intuito de libertar o 1º arguido das responsabilidades penal e civil eventualmente advindas da condução em estado de embriaguez. Do respectivo Certificado de Registo Criminal resulta que o 1º arguido, anteriormente, foi condenado várias vezes pelo tribunal pela prática de crimes, nomeadamente crimes de condução perigosa, ofensa à integridade física por negligência grosseira, fuga à responsabilidade, ofensa à integridade física por negligência, injúria qualificada e desobediência, etc. O 2º arguido é delinquente primário.

        No julgamento em primeira instância, os ofendidos C e D desistiram de efectivar a responsabilidade penal do 1º arguido, ao passo que o ofendido E, embora tenha deixado de responsabilizar o dito arguido pela ofensa corporal, continuava a responsabilizá-lo pela sua conduta injuriosa, solicitando que fosse o mesmo condenado a pagar-lhe MOP$2.000,00 a título de indemnização civil.

        Com base na factualidade supramencionada, o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por acórdão, condenou o 1º arguido A como autor material de a) dois crimes consumados de ofensa simples à integridade física, declarando extinta a correspondente responsabilidade penal do arguido devido à desistência da queixa-crime por parte dos ofendidos (C e D); b) um crime consumado de injúria qualificada, na pena de dois meses de prisão; c) um crime consumado de ofensa qualificada à integridade física, na pena de seis meses de prisão; d) um crime consumado de desobediência, na pena de três meses de prisão. Em cúmulo jurídico, condenou o 1º arguido na pena única de nove meses de prisão efectiva, Mais condenou-o na pena acessória de inibição de condução por três meses e a indemnizar o ofendido E pelos danos que lhe foram causados. Condenou o 2º arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de favorecimento pessoal, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano.

        Inconformado com a decisão de primeira instância, o 1º arguido veio dela recorrer para o Tribunal de Segunda Instância, invocando para tal os fundamentos seguintes: 1. O crime de ofensa qualificada à integridade física é um crime semi-público. Tendo o ofendido E desistido de responsabilizar o recorrente por tal crime, devia declarar-se extinta a correspondente responsabilidade penal do recorrente. 2. O Tribunal a quo, ao condenar o recorrente como autor do crime de injúria qualificada, não levou em conta que o recorrente, sob influência do álcool, estava a dizer disparates, sendo que as palavras “Quem é você, caralho? Não é da sua conta, caralho!” não eram, de todo, injuriosas, daí que a decisão a quo padeça dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação. 3. Ainda entendeu excessiva a pena aplicada, pedindo que fosse suspensa a execução da pena.

        O Colectivo do Tribunal de Segunda Instância entendeu o seguinte: Acerca da questão do crime de ofensa qualificada à integridade física, o Tribunal de Segunda Instância, nos seus acórdãos proferidos nos processos n.º 549/2012 e n.º 994/2012, já esclareceu quais os crimes públicos, considerando materialmente que são crimes públicos todos aqueles previstos na parte especial do Código Penal em que, diversamente do que sucede com o art.º 137.º, n.º 2, não se estabelece que “o procedimento penal depende de queixa”. Aqui, não se está perante a falta de disposição por parte do legislador, mas sim uma técnica legislativa que torna a disposição desnecessária. O Tribunal Colectivo, entendendo que era de manter a aludida tese, julgou improcedente o fundamento formulado pelo recorrente nesta matéria. Quanto à questão do crime de injúria qualificada, normalmente, determinar se certas palavras têm ou não natureza injuriosa implica um ajuizamento de carácter relativo. Isto porque, em primeiro lugar, na medida em que diferem o contexto social, o nível de educação, o círculo social e outras condições dos sujeitos visados, as mesmas palavras geram prejuízos em medidas diferentes à honra dos diferentes sujeitos. Em segundo lugar, uma mesma frase, quando dita em ocasiões diferentes, produzirá efeitos diferentes. É verdade que o Tribunal já alguma vez decidiu no sentido de que a utilização de palavras grosseiras em conversas e discussões normais não constitui crime, mas, naquele caso, as expressões grosseiras foram proferidas numa ocasião totalmente diferente da ocasião ora em causa. In casu, o ofendido, sendo um guarda policial que estava de serviço e vestido com uniforme militar, foi publicamente insultado pelo recorrente na via pública quando exercia funções de manhã. Ainda por cima, o insulto pôs em causa a legitimidade e a razoabilidade da execução da lei por um agente de autoridade, donde resulta não apenas a ofensa à honra individual do ofendido, como também o prejuízo do direito ao bom nome e reputação de que goza o ofendido enquanto agente de autoridade e que deve ser respeitado pela generalidade dos cidadãos. Se, na altura dos factos, o ofendido não estivesse de serviço, nem estivesse vestido com uniforme que simboliza a autoridade, acredita-se que seriam bem menos graves os danos causados pelas palavras grosseiras proferidas pelo recorrente. A propósito à suspensão da execução da pena, nota-se que o recorrente foi condenado, várias vezes, a penas por violações de lei, nas quais houve penas de multa, de prisão e de prisão efectiva. Além disso, dentre os delitos anteriormente praticados pelo recorrente houve também o crime de injúria qualificada e o crime de desobediência, o que demonstra que o mesmo não tem a mínima consciência de cumprir a lei, nem merece a confiança do Tribunal quanto à sua capacidade e determinação de se corrigir e se afastar de crimes, nem sequer preenche as exigências mínimas de prevenção especial e geral, pelo que não é de acolher o fundamento invocado pelo recorrente neste aspecto.

        Nos termos acima expendidos, o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso do recorrente, mantendo a decisão recorrida.

        Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, processo n.º 210/2012.

 

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

22/04/2014