Situação Geral dos Tribunais

Arguidos que agiram de comum vontade criminosa são comparticipantes

      A 27 de Novembro de 2011, sob a liderança do suspeito XXX, os arguidos A, B, C, em conjunto com outros dois arguidos, entraram em Macau com passaporte da Malásia através do Aeroporto Internacional de Macau. O suspeito XXX e um arguido desconhecido distribuíram várias fichas falsificadas do casino Galaxy (cada uma com valor facial de HKD$10.000,00) aos diferentes arguidos e, depois disso, entraram as sete pessoas no casino Galaxy, onde jogaram, ou no uso directo das ditas fichas falsificadas, ou depois de as trocar por fichas com menor valor facial. Tal conduta dos arguidos causou à Galaxy Casino, S.A. uma perda de HKD$310.000,00.

      No dia 15 de Janeiro de 2012, os arguidos A, B, C combinaram entre si e convocaram sete outras pessoas, incluindo os arguidos D, E, F e G. Tendo trocado experiências em jogar em Macau usando fichas falsas, os mesmos entraram juntos no Território com passaporte da Malásia através do Aeroporto Internacional de Macau. Quando almoçavam, alguém deu ao arguido B mais de cinquenta fichas falsificadas com valor facial de HKD$10.000,00, indicando-lhe ao mesmo tempo que, como ele, A e C tinham usado fichas falsificadas no casino Galaxy no passado, ficava, desta vez, a cargo de D, E, F e G a utilização das fichas falsificadas, estando ele e A encarregados da vigilância. Mais tarde, B distribuiu quinze fichas falsificadas a F e E, enquanto A deu, aproximadamente, quatro fichas falsificadas a D, treze a G e dez ao arguido de nome “X Chai”. A seguir, B e A ficavam à espera num restaurante, ao passo que D, E, F, G e “X Chai” entraram separados no casino Galaxy, no intuito de usar as fichas falsificadas no jogo, de modo a trocar estas por fichas verdadeiras. Depois, F conseguiu utilizar no jogo doze fichas falsificadas (ganhou apenas HKD$20.000,00), porém, quando usava uma outra, foi suspeito e viu a ficha devolvida. E, em usando a primeira ficha falsificada, foi suspeito e, logo, deixou o casino Galaxy. D e G, por sua vez, não utilizaram as fichas falsificadas que levavam consigo. Pouco tempo depois, alguém ligou a B, dizendo que o casino Galaxy tinha descoberto que havia pessoas que jogavam com fichas falsas, e exigindo que eles se deslocassem, todos e de imediato, ao Aeroporto Internacional de Macau para se encontrarem. Logo a seguir, B notificou, por telefone, D, G e outros para sair imediatamente, enquanto A andava no casino à procura dos outros que ainda estavam a jogar no casino. Mais tarde, os arguidos A, B, C, E, F, G, “X Chai” e uns outros reuniram-se no Aeroporto Internacional de Macau, deitaram no contentor de lixo dezanove fichas falsificadas não trocadas por dinheiro, estando dispostos a regressar à Malásia de avião. Os arguidos A, D, E, F e G foram interceptados pela Polícia Judiciária quando compravam passagens aéreas. Visto isso, B, C, “X Chai” e dois outros arguidos abandonaram o Aeroporto e dirigiram-se ao Terminal Marítimo, com o propósito de ir a Hong Kong de barco. Os arguidos B e C foram capturados no Terminal, tendo, todavia, os outros dois fugido.

      O Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base decidiu o seguinte:

      Condenou o 1º arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 3 do Código Penal, conjugado com o art.º 196.º, al. a) do mesmo diploma legal, na pena de um ano e nove meses de prisão; e pela prática, em co-autoria material (com os 2º e 6º arguidos) e na forma consumada, de um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 3 do Código Penal, conjugado com o art.º 196.º, al. a) do mesmo diploma legal, na pena de dois anos e seis meses de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de três anos e seis meses de prisão efectiva.

      Condenou o 2º arguido B pela prática, em co-autoria material (com os 1º e 6º arguidos) e na forma consumada, de um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 3 do Código Penal, conjugado com o art.º 196.º, al. a) do mesmo diploma legal, na pena de dois anos e seis meses de prisão efectiva.

      Condenou o 3º arguido C pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 3 do Código Penal, conjugado com o art.º 196.º, al. a) do mesmo diploma legal, na pena de dois anos de prisão efectiva.

      Condenou o 6º arguido F pela prática, em co-autoria material (com os 1º e 2º arguidos) e na forma consumada, de um crime de burla p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 3 do Código Penal, conjugado com o art.º 196.º, al. a) do mesmo diploma legal, na pena de dois anos e três meses de prisão efectiva.

      Absolveu o 1º arguido A, o 2º arguido B, o 3º arguido C, o 4º arguido D, o 5º arguido E, o 6º arguido F e o 7º arguido G dos demais crimes que lhes foram imputados.

      O Ministério Público e o arguido A não se conformaram com a decisão e vieram dela recorrer para o Tribunal de Segunda Instância. Entendeu o Ministério Público que a decisão recorrida enfermava do vício de erro na apreciação da prova, que tornou impossível dar-se como provada a comparticipação de todos os arguidos e que resultou, assim, numa decisão absolutória. O arguido A alegou dever absolver-se o recorrente tal como o fez no caso do 2º arguido, visto que o prejuízo resultante do respectivo delito era de valor elevado, e não de valor consideravelmente elevado, além de o crime em questão ser semi-público, termos em que o Tribunal a quo cometeu erro na aplicação da lei.

      Após o julgamento, o Colectivo do TSI manifestou que a questão levantada pelo Ministério Público no seu recurso consistia essencialmente em o Tribunal a quo, sem ter em conta todos os factos provados, ter chegado à errada conclusão de que não havia comparticipação de todos os arguidos. Tratando-se, de todo, de uma questão da aplicação da lei e não de uma da apreciação da matéria de facto, o Tribunal ad quem, depois de verificada a existência de vício (vício na aplicação da lei), não precisa de apreciar novamente as provas ou reenviar o processo para novo julgamento, uma vez que pode proceder directamente à aplicação da lei que considere correcta. Na causa vertente, estão em causa principalmente três questões de direito:

      1. Questão de saber se o crime foi praticado em comparticipação ou em autoria individual Dos factos provados pode resultar com clareza que os três arguidos (1º, 2º e 3º arguidos) agiram, de facto, de comum vontade e em divisão de tarefas ao praticarem os factos criminosos. As suas actuações seguiam uma mesma directriz, tendiam a atingir um objectivo comum e se enquadravam num mesmo projecto criminoso, sendo que a actuação de cada um fazia parte integrante do projecto criminoso e contribuía para a soma do montante burlado. Isso mostra verdadeiramente um dos efeitos jurídicos da comparticipação, que é o princípio da “comunicabilidade da responsabilidade criminal”. Assim sendo, os 1º, 2º e 3º arguidos praticaram, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de burla de valor consideravelmente elevado p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 4, al. a) do Código Penal.

      O Tribunal a quo, ao considerar que não existia vontade criminosa comum entre os três arguidos supracitados e os outros agentes e, neste sentido, reconhecer que os três arguidos e os outros tinham actuado individualmente, sendo, portanto, autores materiais, e não comparticipantes, formou uma convicção errada e ilógica sobre a matéria de facto provada, a qual não só levou à errada aplicação da lei, como também afectou a determinação da natureza do crime, nomeadamente da sua natureza pública ou semi-pública.

      A propósito dos factos criminosos ocorridos em 15 de Janeiro de 2012, atentos os factos objectivos provados, pode dar-se por assente que os diversos arguidos e os indivíduos desconhecidos envolvidos no caso tinham uma vontade criminosa comum e assumiam tarefas diferentes na execução do projecto criminoso, o que se revelou bem quer pela forma como os mesmos chegaram a Macau, quer pelo modo de execução do crime, quer pelas maneiras de fugirem. Por esse motivo, sob a forma de comparticipação, os setes arguidos praticaram um crime de burla de valor elevado p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 3 do Código Penal.

      O Tribunal a quo suprimiu a descrição fáctica referente ao 3º arguido, tendo apenas dado por provado que o 1º arguido e o 2º arguido, assumindo a liderança, tinham praticado, cada um em co-autoria material com os 4º, 5º, 6º e 7º arguidos e na forma consumada, o crime de burla (inclusive a comparticipação dos 1º, 2º e 6º arguidos), pelo qual se determinou, em relação a cada um, a medida concreta da pena. Aí, negou-se que também existisse dolo comum dos diferentes agentes, designadamente dos 4º, 5º, 6º e 7º arguidos. Além disso, o Tribunal a quo estava errado quando não reconheceu a intervenção do 3º arguido, já que na co-autoria indirecta, não é necessário o agente praticar pessoalmente actos que preencham o tipo de crime, basta ele contribuir para a prática do crime noutros aspectos, tal como o fez o 3º arguido. Em suma, o Tribunal a quo formou uma convicção errada sobre a matéria de facto, a qual o levou à errada aplicação da lei.

      2. Questão de consumação e tentativa na comparticipação Na acusação deduzida pelo Ministério Público em 15 de Janeiro de 2012 face à globalidade dos factos criminosos, com observância do princípio da “comunicabilidade da responsabilidade criminal”, os comparticipantes, por alguns factos consumados, foram acusados pela prática de um crime consumado, e por alguns factos não consumados, foram ainda acusados pela prática de um crime tentado.

      No entendimento do Colectivo do TSI: o bem jurídico protegido pela sanção aplicável ao crime de burla consiste nos direitos patrimoniais legais dos cidadãos em sentido geral, tratando-se efectivamente dum crime de resultado ou crime de lesão, cujos danos patrimoniais causados pelo crime são agregação dos danos efectivos. Embora a tentativa deva ser punida, a tentativa imputada nesta causa é um acto praticado em desígnio comum com o acto ocorrido em 15 de Janeiro de 2012, por esta razão, não se deve distingui-lo particularmente como uma tentativa, mas sim, deve o mesmo ser atendido juntamente com a consumação, ou seja, aqui se verifica o concurso ideal e, em consequência, a consumação deve ter absorvido a tentativa.

      3. Questão de desistência na comparticipação

      Considerou o Tribunal a quo que nos factos criminosos ocorridos em 15 de Janeiro de 2012 houve uma desistência por se verificar que os 4º e 7º arguidos (D, G) nunca terem usado as fichas falsas que lhes foram distribuídas.

      Na opinião do Colectivo do TSI: nos termos do art.º 24º do Código Penal, a desistência em caso de comparticipação só será reconhecida quando se verifiquem satisfeitas determinadas condições: nomeadamente quando o agente impedir voluntariamente a consumação ou a verificação do resultado, ou quando o agente se esforçar seriamente por impedir uma ou outra. Porém, com base nos factos provados, não se constata a satisfação dos requisitos constantes da disposição acima referenciada. Pelos factos provados, apenas se esclarece que os 4º e 7º arguidos nunca usaram as fichas falsas que lhes foram distribuídas. A interpretação correcta é que esses arguidos já se mostravam com capacidade de cometerem crime. Contudo, na altura, os sete arguidos encontravam-se em estado de consumação de crime em comparticipação, uma vez que parte dos agentes já praticou completamente o crime, portanto, conforme o princípio da “comunicabilidade da responsabilidade criminal” na comparticipação, os 4º e 7º arguidos já se encontravam em estado de consumação de actos, só que esses actos eram praticados pelos demais co-autores, abrangendo manifestamente o 5º arguido. Na comparticipação, as “contribuições” parciais dos agentes são uma das etapas que formula o resultado criminoso final, pois, não se pode extrair qualquer uma das etapas para ser atendida particularmente.

      Pelas apontadas razões, acordaram no Colectivo do TSI em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A, anulando todas as sentenças condenatórias e absolutórias do Tribunal a quo, bem como procedendo à nova qualificação do crime e determinação da pena e, em consequência:

      Pelos factos criminosos ocorridos em 27 e 28 de Novembro de 2011, condenaram-se, por convolação, o 1º arguido A, 2º arguido B e 3º arguido C, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.º 211º, n.º 4, al. a) do Código Penal, respectivamente, nas penas de prisão de 5 anos, 5 anos e 4 anos e 6 meses.

      Pelos factos criminosos ocorridos em 15 de Janeiro de 2012, condenaram-se, por convolação, o 1º arguido A, 2º arguido B, 3º arguido C, 4º arguido D, 5º arguido E, 6º arguido F e 7º arguido G, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de burla de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.º 211º, n.º 4, al. a) do Código Penal, respectivamente, nas penas de prisão de 6 anos, 6 anos, 5 anos, 4 anos, 4 anos, 6 anos e 4 anos.

      Em cúmulo jurídico das penas aplicadas nos dois crimes imputados aos primeiros três arguidos, foram os mesmos condenados, respectivamente, nas penas de prisão de 8 anos, 8 anos e 7 anos.

      Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, processo n.º 222/2013.

 

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

07/05/2014