Situação Geral dos Tribunais

Absolvição do arguido no caso “Tou Fa Kón” dos crimes de falsidade de declaração e de burla

      No dia 23 de Fevereiro de 2010, Mio Fong Tak apresentou uma denúncia junto do Ministério Público de Macau, alegando suspeitar que Teng Man Lai teria tomado “posse pacífica” do terreno de “Tou Fa Kón” através de falsificação de documento, de falsas declarações e de burla, manifestando ao mesmo tempo a pretensão de responsabilizar Teng Man Lai criminal e civilmente.

      Instaurado o processo, o Ministério Público, junto com a polícia e os serviços competentes, realizou investigações em vários aspectos e, com base nos factos resultantes das investigações, acusou o arguido Teng Man Lai pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso, de um crime de falsidade de depoimento de parte ou declaração p. e p. pelo art.º 323.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de burla qualificada p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 4, al.s a) e c) do mesmo diploma legal.

      Realizada a audiência de julgamento, o Colectivo do Tribunal Judicial de Base manifestou o seguinte:

      Primeiro, do crime de falsidade de depoimento de parte: no processo civil ordinário do Tribunal Judicial de Base n.º CV2-00-0007-CAO, o advogado constituído pelo arguido Teng Man Lai entregou petição inicial ao Tribunal, na qual se apresentaram factos e pedido.

      Nos presentes autos, não se provou que o arguido prestou juramento na audiência de julgamento desse processo civil, nem ficou provado que, na altura, o arguido foi advertido pelo Tribunal das consequências penais a que se exporia com a prestação de depoimento falso.

      Assim, considerando que os factos imputados pelo Ministério Público no caso sub judice não preenchem os elementos constitutivos do crime de falsidade de depoimento de parte, salvo o devido respeito pelo entendimento jurídico do Ministério Público e do assistente Mio Fong Tak, o Tribunal, à luz do princípio da legalidade, declara improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido Teng Man Lai pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade de depoimento de parte ou declaração p. e p. pelo art.º 323.º, n.º 1 do Código Penal, absolvendo o mesmo deste crime imputado.

      Segundo, do crime de burla: analisada a letra do art.º 211.º do Código Penal, o Colectivo considera que são os seguintes os elementos constitutivos do crime de burla:

  1. o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado;
  2. a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
  3. determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.

      Antes de mais, relativamente ao uso ou não pelo arguido de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado.

      Apesar da divergência de opiniões, na doutrina e jurisprudência portuguesas, o entendimento dominante vai no sentido de que a actividade judicial não é um meio idóneo para a prática de crimes de burla, pois para a falsidade de depoimento de parte, a falsidade de testemunho e a falsificação de documento as leis processuais já contêm sanções específicas e próprias, como acontece com a condenação por litigância de má fé. Portanto, uma afirmação falsa produzida no decorrer da lide não constitui o artifício fraudulento exigido para a burla.

      Atendendo ao concreto facto de que, no respectivo processo civil, o arguido Teng Man Lai ou seu advogado constituído já apontou o Ministério Público e interessado indeterminado como o 9º réu e o 10º réu, a par dos outros oito réus, não chegou a ser provado no caso vertente que o arguido Teng Man Lai se socorreu ao meio processual de evitar, de má fé, que os diferentes vendilhões na zona de “Tou Fa Kón” se tornassem réus no referido processo civil.

      Por isso, nos presentes autos, não ficou provado que o arguido Teng Man Lai utilizou acção cível como astúcia através da qual praticou o crime de burla que lhe foi imputado.

      Segundo, quanto à intenção do arguido de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.

      O acesso ao Direito é um dos direitos fundamentais de que gozam os cidadãos.

      Dado que o terreno de “Tou Fa Kón” ora em causa foi registado a favor de Li Pat como propriedade privada, a procedência ou não do pedido do arguido Teng Man Lai, que se formulou mediante acção cível e consistia na declaração pelo Tribunal, por força de usucapião, da sua titularidade do direito de propriedade sobre o terreno de “Tou Fa Kón” que ele tinha adquirido através de documento particular, depende da convicção do Tribunal relativa aos factos por ele invocados, pelo que tal actuação, visando o reconhecimento dum direito, não se pode qualificar como dotada da intenção de obter enriquecimento ilegítimo.

      Terceiro, em relação à circunstância de determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.

      Do registo predial resulta que o direito de propriedade sobre o terreno em apreço pertence a Li Pat, e que o marido de Ao Wai Man, Chan Meng, também conhecido por Chan Pak Meng, obteve em 12 de Novembro de 1954 uma decisão do Tribunal da Comarca de Macau que declarou ter ele adquirido, por usucapião, a posse pacífica do respectivo terreno. Por outro lado, constata-se que os vendilhões instalados no terreno de “Tou Fa Kón” há muitos anos não adquiriram qualquer direito real sobre tal terreno.

      O arguido Teng Man Lai, ao intentar a acção cível pedindo ao Tribunal para declarar, por posse pacífica e usucapião, ser ele o proprietário daquele terreno pelo qual já pagou um preço de aquisição, não causou ou resultou em perda de direitos por parte do proprietário Li Pat ou de Chan Meng (também Chan Pak Meng) a cujo favor o Tribunal da Comarca de Macau declarou o jus possessionis por usucapião.

      Sendo que o arguido Teng Man Lai, mediante acção cível, solicitou ao Tribunal que, com base na usucapião, declarasse pertencer-lhe o terreno de “Tou Fa Kón” que tinha adquirido, não se verifica, em relação ao seu pedido na acção, a circunstância de ter determinado o Tribunal à prática de actos que causassem à RAEM ou a outra pessoa prejuízo patrimonial.

      Nos termos acima expendidos, tendo em conta que a propositura da acção civil pelo arguido Teng Man Lai com o objectivo de ver reconhecido um direito não preenche os elementos constitutivos do crime de burla, salvo o devido respeito pelo entendimento jurídico do Ministério Púbico e do assistente Mio Fong Tak, o Tribunal Colectivo, ao abrigo do princípio da legalidade, declara improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido Teng Man Lai pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 4, al.s a) e c) do Código Penal, absolvendo-o deste crime imputado.

      Face ao exposto, o Tribunal Colectivo julga improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido Teng Man Lai, decidindo pela seguinte forma:

      1. Declara improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido Teng Man Lai pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade de depoimento de parte ou declaração p. e p. pelo art.º 323.º, n.º 1 do Código Penal, absolvendo o mesmo deste crime que lhe foi imputado;
      2. Declara improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido Teng Man Lai pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada p. e p. pelo art.º 211.º, n.º 4, al.s a) e c) do Código Penal, absolvendo-o deste crime que lhe foi imputado.

      Cfr. Acórdão do Tribunal Judicial de Base, processo penal comum colectivo n.º CR4-14-0034-PCC. 

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

19/09/2014