Situação Geral dos Tribunais

TSI reenviou o processo para novo julgamento devido à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

      O arguido C, por ter causado lesões ao ofendido menor A num acidente de viação, foi acusado pelo Ministério Público pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência e de uma contravenção. B, em representação do seu filho menor, ofendido A, deduziu pedido cível de indemnização, solicitando que se condenassem a 1ª demandada, Companhia de Seguros XX, e o 2º demandado, arguido C, a pagarem, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, MOP$ 159.793,00 e MOP$500.000,00, respectivamente, perfazendo-se um total de MOP$659.793,00.

      Acordaram no Tribunal Judicial de Base em: I) no plano penal, absolver o arguido C da imputada prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência e de uma contravenção; II) quanto ao pedido de indemnização civil, condenar a 1ª demandada Companhia de Seguros XX a pagar ao demandante cível MOP$31.837,20 a título de indemnização por danos patrimoniais, e MOP$120.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, que totalizavam MOP$151.837,20, absolvendo os demandados cíveis dos demais pedidos.

      O ofendido A (representado por B), discordando da decisão supracitada, veio dela recorrer para o Tribunal de Segunda Instância. O recorrente considerou o acórdão a quo ferido do vício de contradição insanável da fundamentação a que se reporta o art.º 400.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, ou do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada estatuído na al. a) do mesmo número.

      Entendimento do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância: A dificuldade do julgamento dum acidente de viação reside na impossibilidade do tribunal de reconstruir os factos, pois apenas há provas indirectas, que são, no máximo, memórias das partes. Tais memórias, muitas vezes afectadas por factores subjectivos relacionados com interesses próprios das partes, podem obstar à descoberta da verdade. O julgador, por sua vez, a fim de revelar a verdade com a maior imparcialidade, deve averiguar, o mais objectiva e minuciosamente possível, cada circunstância provavelmente reveladora da verdade. Devem ser claros os factos ocorridos no acidente de viação, pelo menos, tem de haver uma descrição dos pormenores necessários para se dar a conhecer como ocorreu o acidente.

      No caso sub judice, o Tribunal a quo apenas deu como provados os factos seguintes: No dia 2 de Outubro de 2005, o arguido conduzia um automóvel ligeiro, circulando pela Rua do General Ivens Ferraz, vindo da Rua Nova do Patane em direcção à Rua Sul do Patane. Ao chegar ao lado do poste de iluminação n.º 229A11, o veículo conduzido pelo arguido embateu no ofendido A, que nessa altura estava a atravessar a faixa de rodagem da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo do arguido. Após o embate, o ofendido A caiu no chão e sofreu lesões, com os pés presos debaixo do pneu dianteiro do lado direito do referido veículo. Na altura do acidente, o tempo estava bom, o pavimento e o trânsito estavam normais. A dita Rua do General Ivens Ferraz é uma ruela (localizada ao pé de um edifício de habitação social), por onde há, todos os dias, muitos peões a entrarem ou sairem dos edifícios lá sitos. Aquando da ocorrência do acidente, o ofendido menor, com oito anos de idade, estava a atravessar a Rua do General Ivens Ferraz, correndo, sem a companhia de qualquer adulto.

      No âmbito dos factos não provados, o Tribunal a quo indicou, de forma genérica, que não ficaram provados “os restantes factos relevantes que constam da acusação, do pedido cível de indemnização e da contestação do 2º demandado cível e que não estão em conformidade com a factualidade provada, a saber: ocorreu o aludido acidente de viação porque o arguido não regulava a velocidade de modo a que pudesse, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis. O arguido agiu voluntária e conscientemente ao praticar a conduta supramencionada, e sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punível pela lei.

      Entendimento do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância: Apesar de dificilmente se poder apurar a velocidade em que o arguido conduzia - provavelmente, mesmo o próprio arguido não sabe ou não se lembra a que velocidade circulava o seu veículo - poderíamos, de certo modo, analisar e deduzir em que circunstâncias foi o ofendido atropelado, caso se tivesse apurado se o ofendido tinha ou não aparecido na visão do arguido e, em caso afirmativo, se tinha aparecido de repente ou não, ou, mesmo sem tais factos, se houvesse factos assentes sobre o ponto de embate no pavimento e o do veículo. Todavia, o Tribunal a quo não averigou estes factos muito importantes, sobre os quais existem nos autos provas úteis, como o esboço do acidente, fotografias das amolgadelas no veículo ou fotografias da situação rodoviária, etc. Em suma, os factos dados como provados no processo, por si sós, não são suficientes para verificar se houve culpa do menor ofendido, nem para determinar se houve culpa do condutor. Ou seja, não sabemos como é que o veículo embateu no menor ofendido, o que nos impossibilita dar uma solução jurídica adequada. Trata-se, tipicamente, dum vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - art.º 400.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.

      Face ao exposto, acordaram no Tribunal de Segunda Instância em conceder provimento ao recurso, de acordo com o disposto no artigo 418.º do Código de Processo Penal, determinando o reenvio do processo ao Tribunal recorrido relativamente ao objecto do recurso do segmento cível, para novo julgamento por um Colectivo composto por juízes que não haviam intervindo na decisão recorrida, depois de se provarem factos suficientes para uma aplicação da lei adequada.

      Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, processo n.º 762/2011.

  

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

22/10/2014