Situação Geral dos Tribunais

AAM não goza do poder discricionário de verificar ou reconhecer habilitações académicas de licenciatura em Direito obtidas em universidades locais

      No dia 18 de Junho do ano passado, o Tribunal Administrativo julgou, em primeira instância, o caso da recusa pela Associação dos Advogados de Macau (adiante, designada simplesmente por AAM) de inscrição como advogado estagiário dum licenciado em Direito pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (adiante, designada por UCTM), declarando nula a deliberação da AAM, ordenando-lhe que apreciasse se o requerente preenchia ou não os demais requisitos da inscrição, para depois tomar a devida decisão administrativa nos termos legais (processo n.º 790/11-ADM).

      A AAM, discordando de tal sentença, veio dela recorrer para o Tribunal de Segunda Instância, alegando que a “licenciatura em Direito por universidade de Macau” consagrada no art.º 19.º do Estatuto do Advogado e no art.º 4.º do Regulamento de Acesso à Advocacia diz respeito, especificamente, à “licenciatura em Direito de Macau”, além de que, quanto a “qualquer outra licenciatura em Direito reconhecida no Território”, o reconhecimento se refere ao “reconhecimento de habilitações académicas”, mas não à “autorização prévia” dada pelo Governo a uma instituição educativa para ministrar um determinado curso. O art.º 30.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 11/91/M e o art.º 3.º do Regulamento Administrativo n.º 26/2003 conferem à AAM o poder discricionário de verificar e reconhecer habilitações académicas para efeitos de admissão à advocacia. A sentença proferida pelo Tribunal Administrativo incorreu em vício gerador de nulidade, na medida em que confundiu a “autorização prévia” de funcionamento de um curso com o “reconhecimento de habilitações académicas” para efeitos de admissão à advocacia, tendo ignorado o disposto no art.º 30.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 11/91/M e compreendido erradamente o âmbito de aplicação do Regulamento Administrativo n.º 26/2003. A recorrente levantou ainda outras questões como a do excesso de pronúncia.

      O Colectivo do Tribunal de Segunda Instância procedeu ao julgamento desta causa, manifestando, em síntese, o seguinte: não se pode dizer que o art.º 19.º do Estatuto do Advogado, ao falar na “licenciatura em Direito”, se refere especificamente à “licenciatura em Direito de Macau” porque à data da elaboração do Estatuto do Advogado o único curso de licenciatura em Direito em Macau versava sobre o sistema jurídico de Macau, dado que o legislador, na feitura desse diploma, não devia deixar de configurar a possibilidade de aparecerem outros cursos de Direito no Território de Macau. Se o legislador não impôs qualquer exigência especial, não deve o intérprete interpretar a norma em tal sentido, pois a interpretação da lei tem por limite a letra da lei, não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal. Ainda sustentou a recorrente que a “autorização prévia” de funcionamento de um curso não corresponde ao “reconhecimento de habilitações académicas” para efeitos de acesso à advocacia. Acerca deste fundamento, entendeu o Tribunal Colectivo que a autorização prévia dada pela Administração Pública à UCTM para ministrar o curso de Direito e atribuir a respectiva licenciatura não deixa de encerrar o reconhecimento dessa licenciatura, na exacta medida em que o Governo confere honorabilidade a esta instituição para a conferir, estando ela sujeita a uma fiscalização, podendo ver cessada a sua licença se não cumprir as obrigações.

      Conforme afirmou o Tribunal Colectivo, o reconhecimento e a verificação de habilitações académicas disciplinados pelo art.º 30.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 11/91/M e pelo art.º 3 do Regulamento Administrativo n.º 26/2003 consistem na confirmação de que as habilitações invocadas são as adequadas ao exercício de determinada função pública ou actividade profissional liberal condicionada porintervenção da Administração, cuja competência cabe à entidade pública que tutela a respectiva profissão. Ora, em sintonia com os art.ºs 27.º, n.º 2, 30.º, 32.º e 33.º do Estatuto do Advogado e o art.º 1.º, n.º 1 do Regulamento de Acesso à Advocacia, a profissão de advogado tem uma autonomia total, sem qualquer tutela pelos serviços públicos, razão pela qual não são aplicáveis ao exercício da advocacia o Decreto-Lei n.º 14/89/M, o Decreto-Lei n.º 39/93/M, o Decreto-Lei n.º 11/91/M ou o Regulamento Administrativo n.º 26/2003, e a AAM, por seu turno, também não dispõe do poder discricionário de reconhecer ou verificar habilitações académicas previstas por tais diplomas legais.

      O Tribunal Colectivo reconhecia que o conhecimento do Direito de Macau assume relevo de forma decisiva para o exercício profissional da advocacia, e compreendia que a AAM tinha em vista a dignificação e valorização profissional do exercício da advocacia quando indeferiu o pedido de inscrição como advogado estagiário daquele licenciado em Direito estranho a Macau, admitindo que de tal diligência seria a sociedade em geral a primeira beneficiária. Mas nem o Estatuto do Advogado ora vigente, nem o Regulamento do Acesso à Advocacia anterior à introdução de alterações confere à AAM qualquer poder discricionário no âmbito do reconhecimento e verificação de habilitações académicas. Antes pelo contrário, ambos vinculam a AAM à aceitação de uma licenciatura em Direito desde que obtida em Macau, daí que não possa a AMM subverter a lei, impondo restrições aos requisitos legais para a inscrição como advogado estagiário. Ora, se a licenciatura em Direito atribuída pela UCTM é habilitante, se os licenciados respectivos têm capacidade para trabalhar na área jurídica em Macau, essas são questões que devem preocupar a entidade pública que tutela o ensino superior ministrado em Macau, não podendo a AAM substituir-se a essa tutela.

      A propósito da questão do excesso de pronúncia, no entender do Tribunal Colectivo, o recurso contencioso é de mera legalidade, devendo a decisão judicial cingir-se à verificação dos vícios do acto administrativo recorrido. No caso, o preenchimento pelo requerente do requisito de habilitações académicas não implica a prática de nenhum acto administrativo vinculado por parte da AAM, pelo que, em bom rigor, não se encaixa na previsão do art.º 24.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Administrativo Contencioso, havendo, assim, excesso de pronúncia da sentença do Tribunal Administrativo na parte em que extravasou a declaração de nulidade.

      Pelas razões acima apontadas, acordam no Tribunal de Segunda Instância em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela AAM, declarando nula por excesso de pronúncia a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo na parte em que considerou verificado o requisito de habilitações académicas exigido pela inscrição como advogado estagiário e ordenou à AAM que apreciasse se o requerente preenchia ou não os demais requisitos da inscrição. Mais revogam a sentença na parte referente à declaração de nulidade da deliberação da AAM, passando a anular o acto recorrido por violação de lei.

      Cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, processo n.º 664/2013.

 

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

10/11/2014