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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 24 / 2003

Recorrente: A







1. Relatório
O arguido A, ora recorrente, foi condenado por acórdão de 4 de Abril de 2003 proferido pelo Tribunal Judicial de Base no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-072-02-6:
- pela prática, na forma consumada, de um crime de roubo agravado previsto e punido pelos art.°s 204.°, n.° 2, al. b) e 198.°, n.°s 1, al. f) e 2.°, al. f) do Código Penal na pena de 4 anos de prisão;
- pela prática, na forma tentada, de um crime de roubo agravado previsto e punido pelos art.°s 204.°, n.° 2, al. b) e 198.°, n.°s 1, al. f) e 2.°, al. f) do Código Penal na pena de 1 ano de prisão;
Em cúmulo, foi condenado na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão.
   
   Inconformado com a decisão, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Pelo acórdão de 17 de Julho de 2003 proferido no processo n.° 131/2003, foi negado provimento ao recurso.
   Vem agora o arguido recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
“1. É admissível o presente recurso para essa Alta Instância.
   2. Como se mencionou de início, não sabe o recorrente a razão porque foi condenado por 2 crimes na forma tentada, já que estes não constavam da acusação pública.
   E é assim
   a) Porque não constava da acusação pública, o mencionado crime de roubo qualificado tentado.
   b) O direito de defesa só é devidamente consubstanciado se, na fase do contraditório e defesa, o arguido se puder pronunciar sobre todas as acusações que lhe são feitas e sobre a qualificação jurídica dos factos (na qual se inclui a medida da pena).
   c) Porque outra prova não foi valorada, além da constante na acusação. “o princípio inspirador de todas as regras sobre a produção da prova na audiência de julgamento consta do art.º 336.º, n.º 1”. Não valem em julgamento, nomeadamente, para efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.
   Esta regra é absoluta, não consente excepções. Toda a prova tem pois de ser produzida ou examinada na audiência de julgamento sem o que não pode ser considerada, não vale.” Germano Marques da Silva, op. cit., III 241.
   d) Em virtude da confissão integral e sem reservas, o que determinou a renúncia à produção de prova, como consta da acta da respectiva audiência – fls.129/131.
   e) Na mencionada acta de audiência nada consta quanto a uma possível alteração da qualificação jurídica. A qual a existir e sempre por respeito ao aludido princípio do contraditório, sempre o arguido terá de ser confrontado com tais factos e possíveis qualificações jurídicas que se perspectivem.
   Situação que é partilhada pelo Magistrado do Ministério Público.
   h) Deste modo, por não concordarmos com a imputação dos dois crimes na forma tentada, a sentença do Tribunal a quo deve considerar-se nula – por violação da al. b) do art.º 360.º do C.P.P.M. por incumprimento do disposto no mencionado art.º 339.º, do mesmo código.
   
   O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância emitiu o seguinte parecer:
   “Questão prévia.
   Da motivação e das conclusões apresentadas resulta, inequivocamente, que o recorrente apenas pretende impugnar o crime de roubo tentado por que foi condenado.
   Tal condenação, todavia, é irrecorrível.
   
   Nos termos do disposto na al. g) do n.º 1 do art.º 390.º do C.P. Penal – na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20/12 – não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções”.
   E está-se, in casu, perante essa situação.
   No presente recurso, na verdade, está em causa um crime previsto pelas disposições conjugadas dos art.ºs 204.º, n.º 2, al. b), 198.º, n.ºs 1, al. f) e 2, al. f), 22.º, n.º 2 e 67.º, n.º 1, al.s a) e b), do C. Penal.
   E tal crime é punido, face a tais disposições, com uma pena de prisão com o limite máximo de 10 anos.
   
   Pode questionar-se, entretanto, o sentido da locução “mesmo em caso de concurso de infracções” (constante da parte final da mencionada alínea).
   Mas o mesmo, a nosso ver, não oferece dúvidas.
   
   A aludida Lei n.º 9/1999 visou, além do mais, no que tange aos recursos, dignificar a função do Tribunal de Última Instância, limitando a sua intervenção aos casos de maior gravidade.
   O que vale por dizer que as situações de pequena e média gravidade não devem, por norma, chegar ao Órgão Supremo da hierarquia dos Tribunais (Isso mesmo foi proclamado, também, em Portugal, em relação ao S.T.J., na Exposição de Motivos da Proposta que deu origem à Lei n.º 59/98, de 25/8).
   E esse desiderato só pode ser alcançado se a moldura penal relevante, determinante daquela maior gravidade, for a correspondente a cada um dos crimes em presença, no caso de concurso de infracções – e não a que respeita à respectiva moldura abstracta unitária.
   De outro modo, o propósito de só fazer intervir o T.U.I. nos casos mais graves sairia completamente frustrado, bastando, para lhe prender a atenção, que o processo tratasse do concurso de umas quantas ninharias ou bagatelas penais.
   Ora, o intérprete deve partir do princípio de que o legislador foi coerente e consagrou as soluções mais acertadas (cfr. art.º 8.º, n.º 3, do C. Civil).
   É conhecida, aliás, pelo menos, uma posição doutrinal no sentido propugnado (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal,Ⅲ, 325).
   
   Sintomaticamente, de resto, a disposição em questão põe o acento tónico na irrecorribilidade na “pena aplicável ao crime” – e não, como seria de exigir, noutra perspectiva, na “pena unitária aplicável, no caso de concurso de infracções”.
   O confronto da mesma com o comando da al. c) do n.º 1 do art.º 12.º do C. P. Penal aponta, igualmente, em sentido convergente.
   Nesta alínea, efectivamente, querendo relevar-se a moldura da pena unitária, no caso de concurso de crimes, usa-se uma terminologia substancialmente diferente.
   Conclui-se, pelo exposto, que o presente recurso, a ser admitido, não deve ser conhecido.”
   
   Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida no parecer acima transcrito.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Questão prévia: recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância
   O Ministério Público suscita a questão prévia sobre a recorribilidade da decisão relativa à condenação do recorrente pela prática do crime de roubo tentado.
   
   Na primeira instância, o recorrente foi condenado por dois crimes de roubo agravado previsto no art.° 204.°, n.° 2, al. b) do Código Penal (CP), um na forma consumada e outro de tentativa. O seu recurso para o Tribunal de Segunda Instância foi julgado improcedente.
   No presente recurso para o Tribunal de Última Instância, o recorrente suscita a nulidade do acórdão de primeira instância por falta de comunicação atempada da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação em relação ao crime de roubo agravado na forma tentada. Sobre o crime de roubo agravado sob a forma consumada, a que o recorrente foi condenado, nada foi referido no presente recurso.
   
   Em princípio, as decisões proferidas no processo penal são recorríveis nos termos do art.° 389.° do Código de Processo Penal (CPP).
   Mas tal recorribilidade não é ilimitada, pois em certos casos, a lei exclui a possibilidade do recurso.
   Prescreve o art.° 390.° do CPP, na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999:
   “1. Não é admissível recurso:
   a) De despachos de mero expediente;
   b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
   c) De decisões proferidas em processo sumaríssimo;
   d) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que não ponham termo à causa;
   e) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância;
   f) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
   g) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
   h) Nos demais casos previstos na lei.”
   2. O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido.”
   
   O que interessa agora apurar é a recorribilidade da decisão que condena o recorrente por um crime de roubo agravado na forma tentada.
   Tal crime está previsto no art.° 204.°, n.° 2, al. b) com referência ao art.° 198.°, n.°s 1, al. f) e 2, al. f) e punido nos termos dos art.°s 22.°, n.° 2 e 67.°, todos do CP. Isto é, o crime é punível com a pena de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão. Em concreto, o recorrente foi condenado na pena de um ano de prisão pela prática deste crime, decisão essa foi mantida pelo Tribunal de Segunda Instância.
   Mas como o recorrente foi ainda condenado por um outro crime de roubo agravado, perante a situação de concurso real, pode-se suscitar a dúvida se esta situação cabe ainda na previsão da al. g) do n.° 1 do referido art.° 390.° do CPP que, no caso afirmativo, torna a decisão de condenação por crime de roubo tentado irrecorrível.
   
   Sobre a mesma questão jurídica, o Tribunal de Última Instância já pronunciou nos processos n.° 20/2003 e 25/2003, respectivamente de 17 de Setembro de 2003 e de 15 de Outubro seguinte, no sentido de:
   “Para que seja admissível recurso de decisão do Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância, é necessário que a penalidade aplicável, em abstracto, a cada crime, exceda 8 ou 10 anos de prisão, respectivamente, nos casos das al.s f) e g) do n.° 1 do art.° 390.° do CPP, ainda que esteja em causa um concurso de infracções.”
   
   É a última parte destas alíneas que suscita discussão.
   “Parece-nos que a expressão mesmo em caso de concurso de infracções significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstractamente aplicável a cada um dos crimes, ...”1
   
   Assim, nos termos da al. g) do n.° 1 do art.° 390.° do CPP, quando estamos perante o concurso de crimes, a pena a considerar para aferir a recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância é o limite máximo da pena abstracta aplicável a cada crime, e não a soma das penas máximas abstractas de todos os crimes objecto do concurso.
   Quando a norma prevê “... em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções.” queria referir a pena aplicável a cada crime, substancialmente diferente da expressão “... respeitarem a crimes cuja pena máxima aplicável for superior a 3 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, for inferior o limite máximo correspondente a cada crime.” utilizada no art.° 12.°, n.° 1, al. c) do CPP sobre a competência do tribunal colectivo, em que aponta para o sentido da pena abstracta unitária.
   Por outro lado, é a intenção do legislador de reservar o Tribunal de Última Instância para apreciar os casos mais graves, incompatível com as situações em que se acumulam vários crimes de pouca gravidade que só a pena máxima abstracta do cúmulo indicia uma possível, mas pouco provável, punição com pena muito elevada.
   
   No presente recurso, o recorrente não impugnou a parte da decisão relativa ao crime de roubo agravado na forma consumada, pelo que o acórdão do Tribunal de Segunda Instância não é recorrível porque o crime de roubo agravado na forma tentada é punível até 10 anos de prisão e a decisão da primeira instância sobre este crime foi confirmada por aquele tribunal.
   Por isso, não deve ser admitido o recurso interposto pelo ora recorrente.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em não conhecer o recurso por irrecorribilidade da decisão.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 3 UC (1500 patacas) e mil patacas de honorários ao seu defensor nomeado.
   
   
   Aos 24 de Outubro de 2003.


           Juízes:Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
1 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., Editorial VERBO, 2000, p. 325.
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Processo n.° 24 / 2003 10