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Processo n.º 8/2004. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: D.
Recorrido: Secretário para a Segurança.
Assunto: Legitimidade processual. Recurso contencioso. Interessado na contratação de trabalhador não-residente. Autorização de permanência em Macau.
Data da Sessão: 28 de Abril de 2004.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
I – A legitimidade processual activa no recurso contencioso pode ser aferida pela titularidade da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo recorrente.
II – Tem legitimidade processual para interpor recurso contencioso do acto do Secretário para a Segurança - que mantém o despacho do comandante da PSP, que indefere autorização de permanência em Macau a determinado indivíduo para efeitos laborais e, por conseguinte, indefere a emissão de título de identificação de trabalhador não-residente - o interessado na contratação do mesmo trabalhador não-residente, cujo pedido havia sido deferido pelo Secretário para a Economia e Finanças.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
D interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 15 de Julho de 2003, que manteve, em recurso hierárquico, o despacho do Comandante Substituto da Polícia de Segurança Púbica (PSP), que indeferiu o pedido de emissão de título de identificação de não-residente de E, de nacionalidade filipina.
Por acórdão de 13 de Novembro de 2003, do Tribunal de Segunda Instância, (TSI) foi rejeitado o recurso, com fundamento em falta de legitimidade processual do recorrente.
Inconformado interpõe o mesmo D o presente recurso jurisdicional, terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
I. O art.º 33.° do CPAC organiza a legitimidade activa no processo administrativo em três grupos, a saber: i.) titulares de direitos subjectivos lesados por acto administrativo; ii) titulares de interesses legalmente protegidos lesado por acto administrativo e iii) titulares de interesse directo, pessoal e legítimo;
II. In casu, a legitimidade do recorrente decorria, em primeira mão da titularidade do recorrente de um interesse legalmente protegido o qual foi lesado por um acto administrativo (segundo grupo de sujeitos com legitimidade activa, supra mencionado).
III. Nos termos do n.º 1 do Despacho 49/GM/88, pode o Chefe do Executivo, ao abrigo do Despacho 12/GM/88, autorizar a residentes de Macau a contratar trabalhadores não residentes, em circunstâncias aí definidas, ficando a custódia dos mesmos confiada à própria entidade empregadora; a contratação destes trabalhadores está sujeita à tramitação prevista no Despacho n.º 12fGM/88, com as especialidades constantes do Despacho 48/GM/88.
IV. De acordo com o disposto nos mencionados Despachos Governamentais, e atento o procedimento inerente conclui-se que o recorrente é titular de um interesse que é (a) legalmente protegido - o direito à contratação de trabalhador não residente quando este não se encontre no mercado local (ao abrigo do Despacho Governamental n.º 49/GM/88) e o direito de escolher esse trabalhador (ao abrigo da autonomia privada e liberdade de escolha); (b) Administrativamente protegido, garantido e efectivamente concedido por Despacho do Secretário para a Economia; (c) De eficácia condicionada - está na dependência de um outro acto administrativo que é o da concessão de autorização de permanência do trabalhador.
V. Para que o interesse do recorrente adquira plena eficácia, depende de um acto de concessão de autorização de permanência em Macau à trabalhadora que o ora recorrente pretende contratar, acto esse a ser praticado pelo Comandante das Forças de Segurança Pública.
VI. Ao ser negada a concessão de autorização de permanência em Macau à trabalhadora E, sai o interesse do recorrente lesado por um acto administrativo, que é precisamente o acto recorrido.
VII. Assim forçoso é concluir que o recorrente era parte legítima no recurso, por, nos termos do art.º 33.º do CPAC ser o mesmo titular de um interesse protegido que foi lesado por um acto administrativo.
VIII. Tendo decidido de modo diverso, incorreu o Ac. ora posto em crise em erro de direito substantivo, por errada aplicação da lei (cfr. art.º 33..º do CPAC), sendo, por isso mesmo, anulável nos termos do art.º 152.º do CPAC.
IX. Assim, devem os autos baixar ao Tribunal de Segunda Instância para aí se apreciar do mérito da causa.
Sem conceder mas admitindo que o entendimento seja diverso do exposto, ainda a título de conclusão:
X. O conceito de interesse protegido oferecido no Ac. recorrido está correcto, não sendo porém correcta a subsunção dos factos ao mesmo conceito.
XI. A legitimidade activa pode aferir-se pela existência ou não de um interesse directo, pessoal e legítimo do recorrente na procedência do recurso (3.º grupo referido).
XII. "Há interesse directo quando o provimento do recurso implica a anulação ou declaração de nulidade do acto jurídico que constitui obstáculo à satisfação da pretensão do recorrente, tendo como consequência a repercussão actual, imediata e efectiva na sua esfera jurídica" - refere o Ac. de que se recorre.
XIII. A anulação ou a declaração de nulidade da decisão de não concessão de autorização de permanência à trabalhadora - o acto impugnado - repercutir-se-á actual, imediata e efectivamente na esfera jurídica do ora recorrente, uma vez que passa a poder contratá-la (exercendo desse modo o seu direito), ou, ao menos, e enquanto se aguarda nova decisão da Administração, o ora recorrente fica em posição admissível para, sob condição, exercer o seu direito.
XIV. O interesse "é pessoal [o interesse] quando não é genérico ou impessoal, não se confundindo com interesse geral ou de terceiro, ou seja o provimento do recurso se repercute favoravelmente na sua própria esfera jurídica" pode ler-se no supra citado aresto.
XV. Ao recorrer da decisão de indeferimento do pedido de autorização de permanência no território para o Secretário competente e, posteriormente, para o Tribunal de Segunda Instância, o recorrente fá-lo no seu interesse - como entidade empregadora - e não no interesse da trabalhadora, ainda que uma eventual anulação ou declaração de nulidade do acto impugnado se venha a repercutir também na esfera jurídica da trabalhadora.
XVI. O empregador é o grande protagonista da contratação de um trabalhador não residente - é este quem requer a contratação, é este quem instrói o processo, é este quem instrói o pedido, é este quem se responsabiliza pelo trabalhador a contratar, inclusive pelo seu repatriamento; no fundo, ao trabalhador não é reconhecido qualquer direito, antes o direito é concedido ao empregador - o direito à contratação, sendo, para tanto, o trabalhador autorizado a permanecer no território.
XVII. Donde, o interesse do recorrente é autónomo face ao interesse da trabalhadora no provimento do recurso, sendo, por isso mesmo, pessoal
XVIII. O interesse do recorrente é "(..) é legítimo quando a utilidade resultante do provimento do recurso não é reprovada pela ordem jurídica.”, e in casu será legítimo recorrer de uma decisão bem como nada tem de juridicamente reprovável a utilidade do provimento do recurso.
XIX. No mesmo sentido, refira-se por todos, o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal, de 30/04/96, (in www.dgsi.com, Ac. do STA, Doc. n.° SA119960430038033).
XX. In casu, o provimento do recurso oportunamente apresentado, sendo proferida nova decisão com respeito da lei e retomado o processo de autorização de permanência da trabalhadora E, beneficiará o ora recorrente, passando este a poder, legalmente, contratar o trabalhador que pretende.
XXI. Face a todo o exposto, o recorrente tinha interesse directo, pessoal e legítimo na impugnação contenciosa do acto de que recorreu.
XXII. Ao concluir de outro modo, incorreu o Ac. recorrido em erro de direito, que nos termos do art.º 152.º do CPAC integra uma das causas de recurso, devendo por isso mesmo ser anulado.
XXIII. O Ac. recorrido ao argumentar (fundamentar) a sua decisão de um modo (correcto) e concluir de forma errada - salvo o devido respeito que é muito - incorre em vício material.
XXIV. Assim sendo e nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 571.° do CPC, o qual é aplicável por força do disposto no art.º 152.° do CPAC, o Ac. de que ora se recorre é NULO.
XXV. Decorrente do erro de direito, incorre o Ac. de que se recorre numa outra causa de nulidade - a omissão de pronúncia.
XXVI. Ao pronunciar-se apenas sobre a questão da legitimidade/ilegitimidade do recorrente e tendo concluído pela ilegitimidade daquele, excusou-se o TSI apreciar de todas as questões levantadas e discutidas no recurso que lhe fora apresentado.
XXVII. Não o tendo feito, viola o Ac. recorrido o disposto no art.º 563.°, n.º 2 do CPC, sendo por isso NULO nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do art.º 571.° do mesmo diploma, aplicável ex vi do disposto no art.º 152.° do CPAC.

A entidade recorrida pugna pela improcedência do recurso.

A Exm.ª Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“O recorrente imputa ao douto Acórdão ora recorrido:
- Erro de direito consubstanciado na errada aplicação da lei;
- Nulidade por contradição dos fundamentos com a decisão; e
- Nulidade por omissão de pronúncia.
- Começamos pelo último vício invocado pelo recorrente.
Entende o recorrente que, ao pronunciar-se apenas sobre a questão da ilegitimidade, e não também as questões levantadas no recurso, o Tribunal a quo viola o disposto no art.º 563.º n.º 2 do CPC, tomando assim nulo o Acórdão nos termos do art.º 571.º n.º 1, al. e) do CPC.
A resposta que encontramos é claramente contrária à afirmação do recorrente, sendo bastante uma simples leitura da disposição legal contida na referida norma que dispõe que "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras".
É verdade que no douto Acórdão recorrido, o Tribunal apreciou apenas a questão de ilegitimidade, deixando de conhecer das questões suscitadas pelo recorrente.
Ora, no caso de ter concluído pela ilegitimidade do recorrente e rejeitado, com base na ilegitimidade, o recurso interposto, evidentemente se toma desnecessário, até impossível, pronunciar-se sobre as questões colocadas à apreciação do Tribunal, pelo que cremos não se verificar no douto Acórdão recorrido a nulidade invocada pelo recorrente.
O tribunal pode e deve começar pelo conhecimento da legitimidade activa para o recurso pois "ele é lógica e processualmente prévio em relação aos demais, porquanto se liga ao próprio direito da acção, pré-ordenador de todo o restante procedimento e preclusivo dele no caso de ilegitimidade".
"Não incorre em nulidade a sentença que só não conheceu de questão levantada por o respectivo conhecimento ficar prejudicado pela solução dada a outra prévia". (cfr. Ac. do STA de Portugal, de 4-6-1996, proc. n.º 038967)
Salvo o devido respeito, também não se vê a alegada contradição dos fundamentos com a decisão.
Entende o recorrente que, ao argumentar ( fundamentar) a sua decisão de ( um modo (correcto) e concluir de forma errada, o Acórdão recorrido incorre em tal vício.
Daí que se resulta apenas a manifestação, por parte do recorrente, da sua discordância com a decisão do Tribunal, não tendo o recorrente mostrado a oposição (que não existe, a nosso ver) entre os fundamentos e a decisão tomada pelo Tribunal.
Em relação à errada aplicação da lei, a questão reside em saber se o recorrente tem legitimidade para recorrer contenciosamente do despacho do Exm.º Senhor Secretário para a Segurança que, em recurso hierárquico, decidiu manter a decisão de indeferimento, tomada pelo Comandante substituto da PSP, de um pedido de emissão de Título de Identificação de Trabalhador não Residente para a trabalhadora E, com a qual o recorrente pretendeu contrair relação de trabalho.
Nos termos do art.º 33.º, al. a) do CPAC, têm legitimidade para interpor recurso contencioso "as pessoas singulares ou colectivas que se considerem titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que tivessem sido lesados pelo acto recorrido ou que aleguem interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do recurso".
Alega o recorrente a sua titularidade de "um interesses protegido que foi lesado por um acto administrativo" e que "tinha interesse directo, pessoal e legítimo na impugnação contenciosa do acto de que recorreu".
Tal entendimento não parece ser de acolher.
Não obstante a exposição de todo o procedimento respeitante à tramitação de contratação de trabalhador não residentes, não vislumbramos nele qual o interesse legalmente protegido do recorrente mas lesado pelo acto administrativo impugnado.
O seu direito à contratação de trabalhador não residente não fica afectado pelo acto da Administração de não autorizar a entrada e permanência em Macau de trabalhador que pretendeu contratar, pois pode ainda contratar outro, em substituição daquele primeiro.
Por outro lado, a liberdade de escolher um determinado trabalhador não é absoluta e ilimitada na medida em que fica sujeita à condição de este obter autorização de entrada e permanência em Macau, que é tratada noutro procedimento administrativo.
Aceita-se que o recorrente possa ter interesse no provimento do recurso e na anulação do acto administrativo impugnado, só que não se pode aceitar que tal interesse seja directo, pessoal e legítimo.
Convém lembrar-se que o acto administrativo impugnado não é o de autorizar ou não o pedido de contratar trabalhador não residente, mas sim o de indeferimento de pedido de emissão, à trabalhadora que o recorrente pretendeu contratar, de Título de Identificação de Trabalhador não Residente.
Como se sabe, a legitimidade activa, como pressuposto processual, deve ser aferida pela titularidade da relação jurídica controvertida.
O interesse é directo quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido se repercutir de imediato no interessado; é pessoal quando aquela repercussão se projecta na própria esfera jurídica do recorrente e é legítimo porque é protegido pela ordem jurídica como interesse dele interessado.
No caso sub judice, não nos parece que o recorrente seja titular da falada relação jurídica controvertida que está em causa.
Por outro lado, e na total concordância com o entendimento do Magistrado do Ministério Público, a eventual anulação do acto impugnado não teria repercussão imediata, mas apenas mediata, no recorrente, pois com tal acto não ficou directamente prejudicado.
A repercussão daquela anulação não se projectaria na própria esfera jurídica do recorrente, mas sim na esfera jurídica da pessoa directamente interessada na obtenção do Título de Identificação de Trabalhador não Residente, que é a própria pessoa que o recorrente pretendeu contratar.
E não se vê interesse legítimo protegido pela ordem jurídica como interesse do próprio recorrente: o seu interesse é meramente reflexo e, como tal, não protegido a esse nível.
Resumindo, é a própria trabalhadora única pessoa que está directa e pessoalmente interessada na obtenção do título em causa e que ficou pessoal e imediatamente afectada pelo acto administrativo impugnado, pelo que o benefício resultante da eventual anulação do acto recorrido só se repercute, de forma imediata, na sua própria esfera jurídica e o seu interesse é protegido pela ordem jurídica de Macau.
Pelo exposto, entendemos que o recorrente não tem legitimidade para interpor recurso contenciosos do acto administrativo que indeferiu o pedido de autorização de permanência de outra pessoa, pelo que se deve julgar improcedente o presente recurso”.


II – Os factos
O acórdão recorrido considerou assentes os seguintes factos:
D, residente em Macau, requereu, em Outubro de 2002, perante o Exm.º Secretário para Economia e Finanças, nos temos do despacho n.º 49/GM/88 de 16/5, a importação de trabalhadora não residente para desempenhar as funções de ajudante familiar, da cidadã filipina, E.
Por despacho do Exm.º Secretário de 24/10/2002, foi o pedido de contratação deferido por um período de 1 ano renovável. Neste despacho foi mandado oficiosamente a comunicação ao Corpo de Polícia de Segurança Pública para "os efeitos tidos por convenientes".
Pelo despacho de 15/1/2003 do Exm.º Comandante substituto da PSP foi indeferido o pedido de emissão do Título de Identificação de não-residente à E, com o fundamento de ter sido esta trabalhadora condenada pelo crime de violação de proibição de reentrada, em 5/5/1999, na pena de 9 meses cuja execução se suspendia por 2 anos.
Deste despacho, D interpôs recurso hierárquico ao Exm.º Secretário para a Segurança, em 29/5/2003.
Por sua decisão de 15/7/2003, foi o recurso hierárquico julgado improcedente, com base na informação do Exm.º Comandante substituto de 8/7/2003 (fl. 50).
Este é o acto recorrido.

III – O Direito

1. A questão a apreciar
A questão a apreciar é a da legitimidade do recorrente para a interposição do presente recurso jurisdicional.

2. Legitimidade activa no recurso contencioso de anulação.
O recorrente requereu a autorização de contratação de uma trabalhadora não residente, de nacionalidade filipina, o que foi deferido pelo Secretário para a Economia e Finanças.
Remetido oficiosamente o processo a fim de o Comandante da PSP autorizar a entrada e permanência da mencionada trabalhadora, foi esta negada, o que foi mantido em recurso hierárquico pelo acto administrativo recorrido.
O acórdão recorrido considera que o recorrente não tem legitimidade para interpor recurso contencioso do acto administrativo, por não ser o titular do direito subjectivo lesado pelo acto.
Vamos examinar a quem atribui a lei legitimidade para a interposição do recurso contencioso de anulação.
A legitimidade processual é um conceito de relação com determinado processo ou litígio.
A legitimidade é uma posição do autor ou do réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.
CASTRO MENDES 1 ensinava que a legitimidade processual pode ser encarada segundo duas técnicas diferentes:
a) Uma que considera o objecto do processo um litígio, um conflito de interesses;
b) Outra, que considera o objecto do processo uma relação jurídica, a relação jurídica subjacente, material ou controvertida (que não se confunde com a relação jurídica processual).
Na alínea a) do art. 33.º do Código de Processo Administrativo Contencioso confere-se legitimidade para interpor recurso contencioso às “pessoas singulares ou colectivas que se considerem titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que tivessem sido lesados pelo acto recorrido ou que aleguem interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do recurso”.
Na letra da lei, o conceito de legitimidade sofreu um alargamento relativamente à lei anterior vigente em Macau, que referia como tendo legitimidade activa para interpor os recursos contenciosos “...os que tiverem interesse directo, pessoal e legítimo na anulação de acto administrativo...”.2
O art. 26.º, n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961 dispunha que “O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar...”, acrescentando o n.º 2 que “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção...”. E concluía o n.º 3 do mesmo art. 26.º que “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida”.
O art. 58.º do actual Código de Processo Civil, mais sinteticamente, limita-se a precisar o conceito de legitimidade, dizendo que “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
A propósito do requisito do interesse directo do conceito de legitimidade, ensinava ALBERTO DOS REIS:3 “Não basta, pois, um interesse indirecto ou reflexo; não basta que a decisão da causa seja susceptível de afectar, por via de repercussão ou por via reflexa, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular. Noutros termos: não basta que as partes sejam sujeitos duma relação jurídica conexa com a relação litigiosa; é necessário que sejam os sujeitos da própria relação litigiosa”.
Mesmo na vigência da lei processual administrativa anterior, e particularmente nos últimos anos, não se vinha pondo em causa que o conceito legal de legitimidade processual activa no recurso contencioso não era menos estreito que o constante da lei processual civil.
Assim, explicam F. B.FERREIRA PINTO e GUILHERME DA FONSECA 4 “... que este conceito administrativista 5 em nada difere daquele que o legislador estabeleceu no art. 26.º do CPC, quando especifica que o interesse directo em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção, no nosso caso do recurso contencioso, uma vez que isto só pode suceder quando a procedência do recurso faz desaparecer um qualquer óbice à satisfação dos interesses do recorrente que sejam dignos de tutela jurídica.
Tendo vingado hoje a dialéctica processual na relação jurídica que é posta perante o juiz administrativo, fruto duma cada vez mais acentuada feição subjectivista do contencioso administrativo, está a ganhar adeptos no seio dos tribunais administrativos, nomeadamente no STA, a adopção, nos domínios do recurso contencioso, do conceito de legitimidade em processo civil...
Assim, do lado activo é parte legítima quem tiver interesse na interposição do recurso, um interesse aceitável, entenda-se mas que dê uma plena satisfação e protecção ao administrado”.
Mas, como dizia CASTRO MENDES 6 entre as duas soluções legais de legitimidade, do contencioso administrativo e do art. 26.º do Código de Processo Civil (de 1961) “não há diferença material ou real”.
Deste modo, há-de entender-se que a legitimidade processual activa no recurso contencioso pode, também, ser aferida pela titularidade da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo recorrente.
Aliás, o alargamento do conceito de legitimidade activa no art. 33.º, alínea a) do Código de Processo Administrativo Contencioso à titularidade “...de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos...” já aponta para a titularidade da relação jurídica controvertida.7

3. A relação jurídica de contratação de trabalhador não-residente
Examinemos, agora, a relação jurídica em que se inseriu o acto recorrido.
O recorrente requereu ao Secretário para Economia e Finanças, a importação de trabalhadora não residente para desempenhar as funções de ajudante familiar, da cidadã filipina, E.
Deferido o pedido de importação, foi o despacho enviado oficiosamente à Polícia de Segurança Pública que negou a emissão do título de identificação de não-residente à E. Mantido o acto, em recurso hierárquico, é deste último que foi interposto o recurso contencioso.
A importação de mão-de-obra não-residente está regulada pelo Despacho n.º 12/GM/88, publicado no Boletim Oficial, de 1 de Fevereiro e pelo Despacho n.º 49/GM/88, publicado no Boletim Oficial, de 16 de Maio.
O procedimento consiste nos seguintes trâmites:
- O interessado na contratação de trabalhador não-residente faz o seu pedido ao Secretário para a Economia e Finanças, relacionando os indivíduos cuja contratação pretende e fundamentando a sua necessidade, juntando cópia do contrato;
- O Secretário manda ouvir sobre o pedido a Direcção dos Serviços do Trabalho e Emprego e a Direcção dos Serviços de Economia;
- Recebidos os pareceres, é proferido despacho pelo Secretário para a Economia e Finanças que decide da aprovação ou não das condições de contratação dos trabalhadores e fazendo remeter o processo ao comandante da PSP;
- O comandante da PSP decide sobre a entrada e permanência dos trabalhadores em questão, na Região, emitindo, se for caso disso, um título de identificação.

4. Como se vê da breve descrição feita, o empregador do pessoal não-residente é o titular da relação jurídica administrativa, de que faz parte integrante o despacho do comandante da PSP, que decide sobre a entrada e permanência dos trabalhadores em Macau.
Atente-se, por um lado, que o trabalhador não intervém nunca no procedimento administrativo e que, por outro lado, o processo é remetido oficiosamente ao comandante da PSP, que decide.
Quer isto dizer que, no caso dos autos, o recorrente é o titular da relação jurídica controvertida em que se inseriu o acto recorrido, pelo que é manifesto que tem legitimidade para a interposição de recurso contencioso.
Dito isto, convém acrescentar duas outras notas.
A primeira, para sublinhar que o facto de ao recorrente ter de ser reconhecida legitimidade processual activa para o recurso contencioso, não implica que a trabalhadora também não pudesse deter tal legitimidade, por nisso ter interesse directo, pessoal e legítimo.
A segunda nota, para evidenciar que, mesmo na perspectiva da legitimidade que vê no objecto do processo um litígio, um conflito de interesses, ao recorrente também não poderia deixar de reconhecer-se um interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do recurso. É que, para um patrão, não é, obviamente, indiferente a pessoa do trabalhador, sobretudo quando, como é o caso, se trata de ajudante familiar ou empregada doméstica. A qualquer empregador não é indiferente a escolha de uma pessoa para trabalhar em sua casa, que passa a privar com a família e com acesso áquilo que de mais íntimo tem a relação familiar. O empregador tem, portanto, ou pode ter, o maior interesse em escolher a pessoa A em vez da pessoa B ou C, pelo que o seu interesse na matéria não é reflexo, como se pretendeu, mas directo e imediato.
Pois, se o recorrente fica impedido definitivamente de contratar a pessoa que pretende, cujo processo já havia deferido pelo Secretário para Economia e Finanças, como pode dizer-se que o acto administrativo só mediatamente e não imediatamente e só relativa e não absolutamente interfere com a pretensão do recorrente? (seja lá o que for que se pretende significar com isto).
Procede recurso.
Mas o acórdão recorrido não é nulo, por não haver qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão (nem o recorrente explica qual fosse a contradição), nem haver qualquer omissão de pronúncia (se decidiu pela falta de legitimidade – e o conhecimento desta questão precede o conhecimento de mérito, nos termos do art. 563.º, n.º 1 do Código de Processo Civil - como podia apreciar as questões levantadas no recurso contencioso, atento o disposto nos n. os 1 do art. 230.º e 2 do art. 563.º, do mesmo diploma legal?). O acórdão recorrido apenas fez errada aplicação da lei processual.

IV - Decisão
Face ao expendido, julgam procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido. Deve o Tribunal de Segunda Instância conhecer do objecto do recurso contencioso, se nada obstar a tal.
Sem custas.
Macau, 28 de Abril de 2004
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
Fui presente:
Song Man Lei
1 JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, 1987, edição da AAFDL, II volume, p. 130 e segs..
2 Art. 46.º, 1.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo.
3 J. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 3.ª ed., 1948, volume I, p. 84.
4 F. B.FERREIRA PINTO e GUILHERME DA FONSECA, Direito Processual Administrativo Contencioso, Elcla Editora, Porto, 1991, 70 e 71
5 Referem-se ao conceito de legitimidade do art. 46.º, 1.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (interesse directo, pessoal e legítimo na anulação de acto administrativo).
6 JOÃO DE CASTRO MENDES, obra e volume citados, p. 132.
7 Cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 1999, p. 211.
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