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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I - Relatório
Por Acórdão de 18 de Setembro de 2003, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo A, do despacho de indeferimento liminar parcial do requerimento inicial, na execução instaurada pelo A contra B, C, D, E, F, G e H, na parte em que o exequente pediu juros vencidos e vincendos a taxa superior a 6%, bem como sobretaxa de 2%, relativos a livrança vencida e não paga.
Recorre novamente para este Tribunal de Última Instância o A exequente, terminando a sua alegação, com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do douto acórdão do distinto Tribunal de Segunda Instância, proferido no âmbito do processo n.º 174/2002, que sustentou a decisão do Tribuna Judicial de Base, defendendo a tese que os juros vencidos e vincendos a apurar na execução ordinária n.º CEO-035-02-1, 1.º Juízo, seriam calculados à taxa de 6%, e não, como requerido pelo ora recorrente, à taxa legal de 9,5%, no que concerne ao período de 3 de Setembro de 2000, inclusivé, a 1 de Abril de 2002, acrescido de 2% de mora.
2. A questão controvertida em análise no presente recurso cinge-se, pois, em saber qual a taxa de juros que deve ser aplicada ao caso sub judice e, por outro lado, se há lugar (ou não) a uma sobretaxa de 2% em virtude de mora dos devedores.
3. A aplicabilidade da Convenção de Genebra no ordenamento jurídico da R.A.E.M. dependia da respectiva publicação no Boletim Oficial, nos termos dos artigos 3.º e 5.º da Lei n.º 3/1999, de 20 de Dezembro, o qual ocorreu apenas em 12 de Fevereiro de 2002 (sexto dia após a sua publicação).
4. Assim, pelo menos, até 12 de Fevereiro de 2002, o recorrente poderia exigir os juros de acordo com a taxa de 9,5% estipulada pela Portaria n.º 330/95/M, de 26 de Dezembro.
5. A Lei Uniforme anexa à Convenção de Genebra tem a natureza de mero limite interno porque depende da publicação de lei interna que a reproduza.
6. Tendo a Lei Uniforme essa natureza, não há ofensa do fim da Convenção de Genebra, ao alterar-se a taxa de juro para as letras, livranças e cheques, que não contenham qualquer elemento de conexão com a ordem jurídica estrangeira.
7. Nos termos do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M de 3 de Agosto, "O portador de letras, livranças e cheques, passados e pagáveis em Macau, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode continuar a exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais".
8. Trata-se de uma norma especial, cujo o campo de aplicação se circunscreve ao título (letras, livranças e cheques) passados e pagáveis em Macau, no que aos demais títulos concerne, aplicar-se-á o artigo 1181.º do Código Comercial.
9. O título executivo que serve de base à presente execução, encontra-se consubstanciado na livrança datada de 10 de Janeiro de 2000, no montante de HKD$12.200.000,00, subscrita pela sociedade executada e avalizada pelos restantes executado, título esse passado e pagável em Macau.
10. Isto significa que assiste ao ora recorrente, na qualidade de portador desse título, o direito de exigir dos executados o pagamento dos juros legais, vencidos e vincendos, calculados desde o respectivo vencimento até à data do efectivo e integral pagamento da dívida exequenda.
11. A portaria n.° 330/95/M, de 26 de Novembro, aprovada em 21 de Dezembro de 1995, permaneceu em vigor desde o dia 1 de Janeiro de 1996, até ao dia 1 de Abril de 2002, inclusive estando assim fixada a taxa de juros legais em 9,5% durante esse período.
12. Tendo recentemente a mesma Portaria sido revogada com a entrada em vigor da Ordem Executiva n.º 9/2002, de 26 de Março de 2002, passando a taxa de juros legais a estar fixada em 6% a partir do dia 2 de Abril do corrente ano (cfr. artigos 1.º a 3.º da Ordem Executiva n.º 9/2002, de 26.3.2002).
13. O legislador teve intenção expressa de salvaguardar a aplicabilidade do referido artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M, mesmo a revisão do Código Comercial.
l4. Se o recorrente concordar com o entendimento que a Lei Uniforme fora integrada no direito da R.A.E.M. como norma constante da Convenção de Genebra, então operaria a cláusula rebus sic stantibus, pois a conjuntura económica que se verificava, aquando do vencimento do crédito exequendo, era de recessão, e ditou o legislador as respectivas medidas legislativas então tomadas, entre as quais a Portaria n.º 330/95/M, apenas desaparecendo com a publicação da Ordem Executiva n.º 9/2002, de 26 de Março.
l5. O supra referido artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M, não foi afastado pela Lei n.º 6/2000, de 27 de Abril, nem, tão pouco, foi afastada a Portaria n.º 330/95/M, apenas foi revogada ulteriormente pela Ordem Executiva n.º 9/2000.
16. Só a partir da data da entrada em vigor da Ordem Executiva n.º 9/2000, em 1 de Abril de 2002, é que se pode trazer à colação o princípio lex poteriori derogat lex priori, e apenas quanto à Portaria n.º 330/95/M, permanecendo intocável o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M.
17. É neste contexto que o recorrente invoca legitimamente a disciplina legal daquela portaria até 1 de Abril de 2002, inclusive.
18. Ao abrigo do disposto no artigo 569.°, n.º 2, do Código Comercial, uma sobretaxa de 2% em virtude de mora dos executados já que, no caso em apreço, estamos perante um crédito de natureza comercial.
19. O contrário seria despojar a respectiva previsão legal da sua natureza especial sancionadora e incentivar o inadimplemento.
Os executados não apresentaram alegação.

II – Os factos
Os factos considerados assentes pelo acórdão recorrido são os seguintes:
O exequente é legítimo titular de uma livrança datada de 10 de Janeiro de 2000, no montante de HKD$123.000.000,00, subscrita pela sociedade executada e avalizada pelos restantes executados.
A referida livrança venceu-se em 2 de Setembro de 2000 e, não obstante diversas interpelações para o seu pagamento, em 16 de Maio de 2002 os executados deviam ao exequente, ora recorrente, a quantia de HKD$14,615,767.10, sendo HKD$12,200,000.00 a título de capital e HKD$2,415,767,12 a título de juros vencidos não pagos.
Requereu assim o ora recorrente nos referidos autos que os executados pagassem a dívida exequenda de HKD14,615,767,12, equivalente a MOP$15,068,855,90, ou, em alternativa, nomeassem bens à penhora.
O ora recorrente requereu ainda, para além do pagamento da referida quantia em dívida a título de capital, a liquidação dos juros entretanto vencidos e vincendos até à data do efectivo pagamento da mesma, à taxa global de 6%, acrescida de 2% devido à mora, nos termos conjugados do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M, de 3 de Agosto e do n.º 2 do artigo 569.º do Código Comercial.
Por douto despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo a fls.15, foi o crédito de MOP$12,200,000,00 admitido, tendo no entanto o Meritíssimo Juiz entendido que os juros vencidos e vincendos seriam calculados à taxa de 6%.
O despacho proferido pelo Mmo juiz foi do seguinte teor:
"Cite, por carta registada com aviso de recepção, os executados B, C, D, E, F, G e H para, em vinte dias contínuos, pagar a dívida exequenda para com o exequente A - o capital (HKD$12,200,000.00) e os juros vencidos e vincendos à taxa de 6%, ou, nomear bens à penhora, sob pena de devolver ao exequente o direito à nomeação, ou, no mesmo prazo, deduzir a oposição à execução, ao abrigo do disposto nos artigos 695.º, 696.º e 720.º/1/a), do Código Processo Civil de Macau, e no artigo 1181.º/1/b) e c), do Código Comercial de Macau.
O restante pedido, fica liminarmente indeferido por falta do título executivo - artigos 375.º, n.º 1, 394.º n.º 1 al. d) e 697.º al. a), todos do Código Processo Civil de Macau.
Notifique e D.N.."

III – O Direito
1. As questões a resolver.
O art. 48.º, 2.º, da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, aprovada pela Convenção de Genebra de 7 de Junho de 1930, doravante designada por Lei Uniforme, estipula que o portador pode reclamar daquele contra quem exerce o seu direito de acção juros à taxa de 6% desde a data do vencimento.
Entretanto, o art. 3.º da Lei n.º 4/92/M, de 6 de Julho, estabeleceu que o portador de letras, livranças e cheques, quando o pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.
Diplomas legais posteriores mantiveram esta norma.
Os juros legais foram, em determinado momento, superiores a 6%.
Por outro lado, o art. 569.º, n. os 1 e 2 do Código Comercial, permite que o credor de créditos de natureza comercial exija uma sobretaxa de 2% sobre a taxa de juros legais.
Tendo o exequente pedido além do montante de livrança, o pagamento de juros legais e a sobretaxa de 2%, viu tal pretensão indeferida, o que foi confirmado pelo Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Concluiu o TSI que o legislador ordinário de Macau não poderia ter estipulado que a indemnização do portador de letras, livranças e cheques correspondente à mora consistisse nos juros legais, dada a supremacia do direito internacional sobre a lei ordinária interna. E que, mesmo que assim se não entendesse, o art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M, de 3.8 – que veio reeditar a norma já mencionada do art. 3.º da Lei n.º 4/92/M – teria sido revogado pela Lei n.º 6/2000, de 27.4.
Quanto à sobretaxa de 2% prevista no art. 569.º, n. os 1 e 2 do Código Comercial, entendeu o TSI que a mesma não se aplicava no caso de letras, livranças e cheques.
Importa acentuar que, só releva para o caso em apreço o período que decorre entre a data do vencimento da livrança dos autos, 2 de Setembro de 2000, e 1 de Abril de 2002, data da publicação da Ordem Executiva n.º 9/2002, 1 que fixou a taxa de juros legais em 6%, portanto, a mesma taxa da Lei Uniforme. Isto no que respeita à taxa de juros.
Cabe, ainda, acrescentar que, de acordo com o art. 1.º da Convenção de Bruxelas de que vimos tratando, as Partes Contratantes podiam formular reservas à Lei Uniforme, de entre as constantes do Anexo II da mesma Convenção, sendo que a reserva do art. 13.º deste Anexo II era precisamente a faculdade de as Partes Contratantes poderem substituir a taxa de juro dos n. os 2 dos arts. 48.º e 49.º da Lei Uniforme pela taxa legal em vigor no território da respectiva Parte, no que respeita às letras passadas e pagáveis no seu território. Simplesmente, Portugal não formulou tal reserva à Lei Uniforme. 2 E a República Popular da China também não formulou tal reserva aquando da notificação da continuação da aplicação da Convenção em Macau, se é que o podia fazer, pois não é Parte Contratante, questão que não cabe aqui resolver.
São estas as questões a resolver.

2. A posição do direito internacional convencional na hierarquia das fontes de direito de Macau.
A Lei Uniforme vigorava em Macau antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), a partir da sua publicação no Boletim Oficial, de 8 de Fevereiro de 1960.
A República Popular da China, que não é parte na Convenção de Genebra que aprovou a Lei Uniforme, notificou o Secretário-Geral da ONU, na sua qualidade de depositário da Convenção, sobre a continuação da aplicação na RAEM da referida Convenção, com efeito a partir de 20 de Dezembro de 1999, nos termos da Secção VIII do «Esclarecimento do Governo da República Popular da China sobre as Políticas Fundamentais Respeitantes a Macau», que constitui o Anexo I da Declaração Conjunta do Governo da República Popular da China e do Governo da República Portuguesa sobre a Questão de Macau e do art. 138.º da Lei Básica.
Tal notificação foi publicada no Boletim Oficial da RAEM, II Série, de 6 de Fevereiro de 2002, por determinação do Chefe do Executivo.
A Lei Uniforme foi incorporada no novo Código Comercial, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 40/99/M. O referido Código entrou em vigor em 1 de Novembro de 1999, por força do disposto no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 48/99/M, de 27 de Setembro.
A tese do TSI é a de que o direito ordinário - designadamente o art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M, que dispõe que “O portador de letras, livranças e cheques, passados e pagáveis em Macau, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode continuar a exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais” – não pode contrariar o art. 48.º da Lei Uniforme.
Isto porque, para o TSI, o direito internacional convencional tem uma posição hierárquica superior ao direito ordinário de Macau.
Para tal, invoca o acórdão recorrido o n.º 3 do art. 1.º do novo Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, onde se dispõe:
“Artigo 1.º
(Fontes imediatas)
1. São fontes imediatas do direito as leis.
2. Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos competentes do território de Macau e dos órgãos estaduais nos limites da sua competência legislativa relativa a Macau.
3. As convenções internacionais aplicáveis a Macau prevalecem sobre as suas leis ordinárias.”
Porém, este n.º 3 do art. 1.º do Código Civil, não tem qualquer eficácia, pela singela razão de que, por evidentes razões de lógica jurídica, nenhuma norma jurídica pode conferir a outra norma ou a um conjunto de normas, força hierárquica superior à sua própria.
Uma lei não pode criar ou conferir a uma fonte de direito força hierárquica superior à lei. Como um regulamento administrativo não pode criar ou conferir a uma fonte de direito força hierárquica superior à do regulamento administrativo.
Ora, tendo o Código Civil sido aprovado, como se viu, por decreto-lei, que era um diploma de natureza legislativa (art. 13.º, n.º 1 do Estatuto Orgânico de Macau)3, faltam-lhe forças para conferir a outros actos normativos, como as convenções internacionais, primazia hierárquica relativamente às leis.
Tendo a lei apenas força hierárquica inferior às normas constitucionais, só estas podem conferir às convenções internacionais força hierárquica superior às leis.
Trata-se, segundo pensamos, de asserções inquestionáveis, correntes na doutrina.
Escreve ALBINO DE AZEVEDO SOARES 4que “a posição relativa das normas de direito internacional e de direito interno só pode ser determinada pelo poder constituinte”.
J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, 5 depois de referirem que a Constituição portuguesa é omissa sobre as relações entre o Direito Internacional Público recebido na ordem interna e o próprio direito ordinário interno, acrescentam: “E todavia, trata-se de uma questão eminentemente constitucional,6 pois incumbe à Constituição, como lei fundamental da ordem jurídica, adjudicar o lugar de cada espécie no sistema de fontes de direito”.
É o que também sustenta P. LARDY, 7quando afirma que “…o primado do direito internacional, da mesma forma que a sua recepção, é ainda um problema de técnica constitucional…”.8
Em conclusão, o n.º 3 do art. 1.º do Código Civil não passa de uma declaração de boas intenções do legislador ordinário, em matéria da competência do legislador constitucional, pelo que é de todo irrelevante para a decisão da questão em apreço.

3. Atribuições da RAEM
Cabe, então procurar na Lei Básica, o diploma da RAEM que se situa no vértice da pirâmide dos actos normativos da Região, a solução para a questão em apreço.
Ora, percorrendo a Lei Básica, não encontramos qualquer norma expressa sobre a matéria.
Resta saber se, das normas que versam sobre o direito internacional ou sobre as relações internacionais, é possível extrair qualquer princípio atinente à posição hierárquica do direito internacional convencional entre as fontes de direito.
E a resposta é positiva, como se explicará, de seguida.
Como é sabido, a RAEM foi dotada pela Lei Básica de um alto grau de autonomia relativamente à República Popular da China (RPC), gozando de poderes executivo, legislativo e judicial independentes (arts. 2.º e 12.º da Lei Básica).
Não obstante, há áreas em que a RAEM não goza de autonomia. Como resulta do Capítulo II da Lei Básica, em particular, dos seus arts. 13.º, 14.º e 19.º, há áreas reservadas ao Estado, tais como as relativas à defesa nacional e às relações externas, sem prejuízo de a Região ter alguns poderes nestas áreas.
Assim, é o Governo Popular Central que é o responsável pelos assuntos das relações externas e da defesa, relativos à RAEM (arts. 13.º e 14.º).
Apesar disso, em matéria de assuntos externos, o Governo Popular Central pode autorizar a RAEM a tratar, por si própria, assuntos externos que lhe digam respeito (3.º parágrafo do art. 13.º).
E em matéria relacionada com a defesa da Região, a Lei Básica atribuiu à RAEM a responsabilidade pela manutenção da ordem pública interna (2.º parágrafo do art. 14.º).
A norma do art. 19.º atinente ao poder judicial na RAEM, confirma estes limites da autonomia da RAEM. Embora esta goze de poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância, os tribunais da RAEM não têm jurisdição sobre actos do Estado, como os relativos à defesa nacional e às relações externas, pelo que, relativamente às questões de facto que se suscitarem nestas matérias, os tribunais da Região têm de obter uma certidão do Chefe do Executivo sobre tais questões de facto, certidão esta que é obtida por este, como representante da Região (art. 45.º), junto do Governo Popular Central (3.º parágrafo do art. 19.º).
Especificamente, em matéria de atribuições quanto à celebração de tratados, a RAEM tem alguma margem de autonomia, podendo negociar e celebrar acordos de abolição de vistos com os Estados e regiões interessados, com o apoio ou autorização do Governo Popular Central (art. 140.º).
Por outro lado, a RAEM, com a denominação de “Macau, China”, e com a autorização do Governo Popular Central, pode celebrar acordos com países, regiões ou organizações internacionais nos domínios apropriados, designadamente nos da economia, comércio, finanças, transportes marítimos, comunicações, turismo, cultura, ciência, tecnologia e desporto (art. 136.º).
Na área da cooperação judiciária, e também com o apoio e autorização do Governo Popular Central, a RAEM pode celebrar acordos com outros países (art. 94.º).
Relativamente aos acordos internacionais em que a RPC é parte, é o Governo Popular Central que decide, ouvido o Governo da RAEM, a aplicação de tais tratados à RAEM (1.º parágrafo do art. 138.º).
Quanto aos acordos internacionais em que a RPC ainda não é parte, mas que já vigoravam em Macau em 19 de Dezembro de 1999, podem continuar a vigorar após esta data (2.º parágrafo, 1.º período do art. 138.º). Daqui resulta, que o Governo Popular Central podia decidir que estes tratados não continuariam a vigorar, após a RPC voltar a assumir a administração de Macau.
No tocante aos tratados mencionados no art. 138.º - acordos em que a RPC é parte e acordos em que a RPC ainda não é parte, mas que já vigoravam em Macau em 19 de Dezembro de 1999 – a sua aplicação na RAEM é decidida pelo Governo Popular Central. Tal decisão nunca cabe aos órgãos da RAEM.
Ora daqui tem de resultar uma supremacia das normas destas convenções internacionais, em termos hierárquicos, sobre as fontes internas da RAEM.
A entender-se de outra maneira, ou seja, a entender-se que estas convenções internacionais e as fontes internas teriam igual posição hierárquica, isso significaria que as convenções poderiam revogar ou alterar a lei interna e poderiam ser por esta revogadas ou alteradas, por aplicação do princípio de que a lei (ou a norma) posterior derroga a anterior.
Ora, este sistema violaria o princípio acima referido e constante da Lei Básica, de que nas matérias de Estado, tais como as relativas às relações externas, a RAEM não goza de autonomia, cabendo a sua condução ao Governo Popular Central. Não podem, pois, os órgãos normativos da RAEM revogar normas constantes de acordos internacionais mencionados no art. 138.º da Lei Básica pois, de outra forma, estar-se-ia a violar as competências do Governo Popular Central constantes da mesma norma.
Logo, a posição hierárquica entre as convenções internacionais mencionadas no art. 138.º da Lei Básica e as fontes de direito internas da RAEM, leis, regulamentos, etc., é a de supremacia das primeiras, relativamente a estas últimas.
Sendo a Convenção de Genebra, que aprovou a Lei Uniforme, uma das mencionadas no 2.º parágrafo do art. 138.º da Lei Básica – e por isso objecto de notificação da RPC ao Secretário-Geral da ONU, na sua qualidade de depositário da Convenção, sobre a continuação da aplicação na RAEM da referida Convenção, com efeito a partir de 20 de Dezembro de 1999 – a mesma prevalece sobre as fontes internas, designadamente sobre o art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M.
Dispondo o mesmo art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M que “O portador de letras, livranças e cheques, passados e pagáveis em Macau, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode continuar a exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais” , esta norma contraria o n.º 2 do art. 48.º da Lei Uniforme, que fixa em 6% os juros moratórios.
E daí que os tribunais devam recusar a aplicação do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M.

4. A cláusula rebus sic stantibus
Alega o recorrente que, ainda que se entenda que as convenções internacionais prevalecem sobre as leis internas, então dever-se-á considerar que as medidas legislativas tomadas em contrário do disposto na Lei Uniforme estão validadas pela cláusula rebus sic stantibus face à conjuntura económica recessiva que se verificava aquando do vencimento do crédito exequendo.
A cláusula rebus sic stantibus no direito dos tratados tem vindo a ganhar crescente aceitação e interesse no moderno Direito Internacional e significa que as partes nos tratados podem invocar esta cláusula para arguirem a caducidade do tratado ou de parte dele, por alteração fundamental das circunstâncias em que foi celebrado. 9
Mas não se entende, nem o recorrente explica, a que título uma conjuntura económica negativa levaria o legislador a possibilitar que se exigisse maiores juros aos subscritores de livranças, normalmente aos que solicitam empréstimos. O contrário é que seria natural...10
Improcede a questão suscitada.

5. Publicação da notificação da RPC ao Secretário-Geral da ONU, sobre a continuação da aplicação na RAEM da Convenção de Genebra
Suscita o recorrente a questão de que, mesmo na tese da supremacia da Lei Uniforme sobre o direito interno, a notificação da RPC ao Secretário-Geral da ONU, sobre a continuação da aplicação na RAEM da referida Convenção, só foi publicada no Boletim Oficial da RAEM, II Série, de 6 de Fevereiro de 2002. No entendimento do recorrente, a Lei Uniforme só integrou a ordem jurídica interna da RAEM a partir de 12 de Fevereiro de 2002, o 6.º dia após a publicação do Aviso do Chefe do Executivo, pelo que só até esta data sempre teria vigorado o art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M.
Vejamos.
A Lei Uniforme vigorou em Macau, a partir da sua publicação no Boletim Oficial, de 8 de Fevereiro de 1960 e, indiscutivelmente, até 19 de Dezembro de 1999.
Por opção do legislador, o texto da Lei Uniforme foi incorporado no Código Comercial, nos arts. 1134.º a 1211.º 11
Entretanto, a própria Lei Uniforme também vigora actualmente na RAEM, porque a RPC, que não é parte na Convenção de Genebra que aprovou a Lei Uniforme, notificou o Secretário-Geral da ONU, na sua qualidade de depositário da Convenção, sobre a continuação da aplicação na RAEM da referida Convenção, nos termos do art. 138.º da Lei Básica.
Tal notificação foi publicada no Boletim Oficial da RAEM, II Série, de 6 de Fevereiro de 2002, por determinação do Chefe do Executivo.
A questão é a de saber se a Lei Uniforme, que vigorou até 19 de Dezembro de 1999, continuou a vigorar logo em 20 de Dezembro de 1999 ou se só recomeçou a vigorar em 12 de Fevereiro de 2002, no 6.º dia posterior à publicação no Boletim Oficial, da referida notificação da RPC, ao Secretário-Geral da ONU.
A chave da solução está na interpretação do 2.º parágrafo, 1.º período do art. 138.º da Lei Básica. Segundo tal norma “Os acordos internacionais em que a República Popular da China não é parte, mas que são aplicados em Macau, podem continuar a vigorar”. Também se disse atrás, que o Governo Popular Central podia decidir que estes tratados não continuariam a vigorar após a RPC voltar a assumir a administração de Macau. Ora, sem prejuízo de, em termos de relacionamento externo, a RPC poder ter de comunicar às entidades competentes a continuação da aplicação na RAEM, após 20 de Dezembro de 1999, das convenções internacionais que vigoravam anteriormente em Macau – questão que não cabe apreciar aqui - em termos internos, a publicação no Boletim Oficial, da declaração da RPC não era condição de eficácia da vigência da Convenção de Genebra e da respectiva Lei Uniforme na Região. É que a Lei Uniforme já havia sido publicada no Boletim Oficial do Território de Macau e já aqui vigorava em 19 de Dezembro de 1999. E nenhuma norma impõe a publicação da declaração da RPC, nos termos da aludida norma da Lei Básica. Na verdade, o art. 5.º, alínea 1) da Lei n.º 3/1999 impõe a publicação na II série do Boletim Oficial dos acordos internacionais aplicáveis na RAEM. O que já havia sido feito. Mas não impõe a publicação da aludida declaração.
A lei Uniforme continuou, pois, a vigorar na RAEM a partir de 20 de Dezembro de 1999.

6. Se o portador de letras e livranças podia exigir a sobretaxa de 2% a que se refere o art. 569.º, n. os 1 e 2 do Código Comercial, além dos juros legais.
Resta ponderar se o exequente, além dos juros legais, podia exigir a sobretaxa de 2% a que se refere o art. 569.º, n. os 1 e 2 do Código Comercial.
Dispõe este artigo:
“Artigo 569.º
(Juros comerciais)
1. A taxa de juros comerciais é a dos juros legais, sem prejuízo de estipulação escrita em contrário quanto ao modo de determinação e variabilidade das taxas.
2. Aos créditos de natureza comercial acresce, no caso de mora do devedor, uma sobretaxa de 2% sobre a taxa fixada nos termos do número anterior, sem prejuízo do disposto em lei especial”.
A solução a dar à questão é semelhante à dada à questão da ilegalidade da norma do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 40/99/M, que prevê que o portador de letras, livranças e cheques, passados e pagáveis em Macau, quando respectivo pagamento estiver em mora, possa continuar a exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.
Efectivamente, o art. 569.º do Código Comercial, vem permitir que o portador de letras, livranças e cheques, no caso de mora do devedor, possa exigir uma sobretaxa de 2% sobre a taxa dos juros legais. Ora, esta solução viola, igualmente, e pelos mesmos motivos o disposto no art. 48.º da Lei Uniforme. E não é certamente por a lei designar o acréscimo sobre os juros de sobretaxa, que vem mudar alguma coisa. Trata-se sempre de uma taxa moratória, que acresce à taxa de juros de mora da Lei Uniforme.
Logo, o n.º 2 do art. 569.º do Código Comercial é ilegal, na medida em que se opõe ao art. 48.º, 2.º da Lei Uniforme.
Também nesta parte não merece censura o acórdão recorrido.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.

Macau, 2 de Junho de 2004
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 A Ordem Executiva n.º 9/2002 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (art. 3.º).
2 Sobre esta matéria, Cfr. A. M. BARBOSA DE MELO, A preferência da lei posterior em conflito com normas convencionais recebidas, Colectânea de Jurisprudência, ano IX, tomo 4, p. 13 e J. SIMÕES PATRÍCIO, Conflito da Lei Interna com as Fontes Internacionais: O Artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/82, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332, p. 145.
3 Aprovado pela Lei n.º 1/76, de 17.2 e alterado pelas Leis n.os 53/79, de 14.9, 13/90, de 10.5 e 23-A/96, de 29.7.
4 ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições de Direito Internacional Público, p. 54.
5 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, 3.ª ed. revista, p. 86.
6 O itálico é nosso.
7 P. LARDY, La Force Obligatoire du Droit International en Droit Interne, Paris, 1996, p. 247 e segs., citado por J. SIMÕES PATRÍCIO, Conflito da Lei Interna com as Fontes Internacionais: O Artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 262/82, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332, p. 117.
8 O itálico é nosso.
9 Sobre esta matéria, EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito Internacional Público, Conceito e Fontes, Lex, Lisboa, 1998, Volume I, p. 335 e segs. e A. GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, Almedina, Coimbra, 1997, 3.ª ed., p. 251 e seg.
10 A cláusula foi invocada pelo Tribunal Constitucional português a propósito de um fenómeno inflacionário que ocorreu em Portugal na década de 80 do século passado, cuja taxa ultrapassou largamente a taxa de 6 % prevista na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças para os juros moratórios Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, obra citada, p. 384, nota 1164. Não era este o caso de Macau, na altura da publicação do Decreto-Lei n.º 40/99/M, em finais de 1999. Nem o é neste momento.
11 Cfr. o art. 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 40/99/M.
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Proc. n.º 2/2004