打印全文

Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 10 / 2004

Recorrente: Ministério Público
Recorrido: A







1. Relatório
O arguido A interpôs recurso do despacho de 1 de Dezembro de 2003 do Juiz de Instrução Criminal que lhe aplicou medidas de coacção.
Por acórdão de 29 de Janeiro de 2004 do Tribunal de Segunda Instância proferido no processo n.° 308/2003, foi dado provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido por entender estar prescrito o crime imputado ao recorrente, e ordenou, em consequência, o arquivamento dos autos.
Inconformado com esse acórdão, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões da motivação:
   “1. O arguido está acusado pela prática, na forma continuada, de um crime referido no art.º 211.°, n.ºs 1 e 4, al. a) do C. Penal de Macau, punido com a pena de prisão de 2 a 10 anos; assim,
   2. O prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal é de 10 anos, contados desde a data da consumação da infracção, nos termos dos art.ºs 110.°, n.º 1, al. c) e 111.°, n.ºs 1 e 2, al. b) do citado Diploma; “in casu”,
   3. O crime em causa deve ter-se como consumado no dia 21-12-93, que corresponde ao trânsito em julgado da sentença que julgou improcedente a mencionada acção declarativa n.º 48/93;
   4. Sendo os ofendidos já titulares do respectivo domínio directo, essa acção visava, essencialmente, a aquisição, por parte dos mesmos, do domínio útil dos prédios objecto da burla imputada na acusação; desse modo,
   5. Se a mesma acção fosse julgada procedente, os sujeitos passivos ficariam com a propriedade “perfeita” desses prédios; consonantemente,
   6. Só com tal decisão se concretizou o prejuízo efectivo no património dos sujeitos passivos do mesmo crime; de facto,
   7. Com a escritura celebrada em 10-1-92, não se podia afirmar ainda esse prejuízo, que estava dependente de um evento, que era suposto resolver a questão do referido domínio útil, através do “despejo” dos prédios em apreço; e
   8. Tendo-se verificado a causa interruptiva de prescrição do procedimento criminal prevista no art.º 113.°, n.º 1 al. a) do mesmo Código, em 12-6-93, o mesmo procedimento não pode julgar-se extinto;
   9. Decidindo de forma contrária, o douto acórdão violou as disposições supracitadas.”
   Pedindo o provimento do recurso e a revogação do acórdão recorrido.

O arguido, ora recorrido, formulou as seguintes conclusões na sua resposta:
“1. Um crime diz-se consumado quando estiverem praticados os actos de execução que realizam e integram os elementos constitutivos do tipo legal, sendo que a acção típica engloba o resultado (nos crimes de resultado).
   2. A construção do crime de burla supõe a concorrência do erro ou engano sobre os factos astuciosamente provocado, a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo material e a intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
   3. Constituindo o crime em questão um crime de dano ou de resultado impõe-se considerar que o mesmo se consuma com a ocorrência de prejuízo no património do sujeito passivo da infracção ou, dito de outro modo, quando a coisa objecto da burla sai da esfera patrimonial do defraudado e entra no círculo de disponibilidade do agente do crime.
   4. Em consequência do entendimento expresso, e atento o teor da acusação, é inegável a conclusão de que os factos que suportam a imputação do crime de burla em causa (ainda que continuado), ocorreram desde mês não determinado do ano de 1991 a 11 de Janeiro de 1992 (data da celebração da escritura pública onde se declara pago estar pago o preço objecto da mesma), sendo assim de se ter o mesmo como consumado nesta última data.
   5. Irrelevante se afigurando o desfecho da acção ordinária n.º 48/93, a qual terá constituído tão só o meio empregue para esconder a intenção do engano, constituindo uma realidade que apenas influi no aspecto do conhecimento do ofendido quanto ao crime de burla de que foi vítima (sendo, por isso, estranho aos elementos típicos que o compõem).
   6. Na acção declarativa n.º 48/93, os autores requereram que se declarasse que eles sucederam no domínio útil à ré sociedade relativamente aos prédios ali identificados, ordenando-se o cancelamento do registo então em vigor e, subsequentemente, a inscrição do domínio útil sobre os imóveis a favor dos autores (pedido principal).
   7. Não se vislumbra, a qualquer título, como é que o desfecho de tal acção possa constituir um elemento delimitador do tipo-de-ilícito imputado ao arguido ora recorrido em termos tais que, apenas nesse momento, se tivesse consumado o crime de burla indiciariamente desenhado nos autos cujo arquivamento foi determinado no douto aresto recorrido.
   8. Tanto mais que o prejuízo ocorrera com a entrega do dinheiro na data da realização da escritura pública supra referida, momento em que se consumou o aludido crime, pelo que só pode tal acção declarativa ser entendida como um meio para escamotear o engano determinativo do erro-obstáculo identificado no acórdão do TUI explicitado no processo n.º 3/2001, constituindo uma realidade de todo estranha ao preenchimento dos elementos integradores do tipo-de-ilícito em que se consubstancia a burla.
   9. Na sentença explicitada na aludida acção declarativa, identifica-se uma impossibilidade superveniente da lide decorrente do facto de haver, entretanto, transitado em julgado uma outra sentença proferida no processo n.º 525/92 que determinou a remição dos foros dos prédios em questão e extinto o domínio directo sobre os mesmos.
   10. Seria impensável fazer depender da evolução e desfecho de tal acção o complemento dos elementos delimitadores do crime imputado ao recorrido.
   11. Levando às últimas consequências o raciocínio expresso pelo distinto Recorrente – de que 《se tais imóveis ficassem livres é evidente que nenhum prejuízo adviria para quem quer que fosse》 estar-se-ia a excluir a existência de crime a qualquer título, do que resulta que, mantendo-se a expressão dessa possibilidade, estar-se-ia, abstractamente, a atribuir uma dupla função, no campo das hipóteses, à sentença cível.
   12. É manifesto que são coisas diferentes o preenchimento dos elementos integradores de um tipo-de-ilícito e o conhecimento que deles venha a ter o lesado da acção criminosa, certo sendo que a questão do conhecimento apenas releva para fins de apresentação de queixa (quando se trate de crime cuja prossecução esteja dependente de participação do ofendido/lesado).
   13. Não pode perder-se de vista que a decisão recorrida foi explicitada em recurso interposto do despacho do JIC datado de 1 de Dezembro de 2003 que aplicou ao arguido as medidas de coacção da proibição de ausência da RAEM e da suspensão da actividade de advogado (num momento anterior ao da prolacção da acusação, a qual é datada de 11 de Dezembro de 2003) sendo que a questão da prescrição do procedimento criminal é anterior ao despacho de acusação.
   14. O momento da consumação do crime de burla é aquele em que o lesado abre mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí possa controlar o seu destino, perdendo a disponibilidade dela ou desse valor no seu património.
   15. O termo do processo executivo (da burla) coincide com a queda em erro por parte do sujeito passivo, sem a possibilidade deste poder contra-operar.
   16. O princípio in dubio pro reo comporta um amplo leque de aplicação, abrangendo não só os elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, como também as causas de exclusão da ilicitude, da culpa e da pena, às atenuantes modificativas e, ainda, à prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão susceptível de, objectivamente, desfavorecer o arguido e que havendo fundadas dúvidas sobre o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, o princípio in dubio pro reo impõe que as mesmas sejam resolvidas em benefício do arguido; assim, perfilando-se duas versões, qualquer delas fundadas mas contraditórias, aplicar-se-á o regime de prescrição àquela que mais favoreça o arguido.”
   Concluiu que deve ser negado provimento ao recurso e mantido na íntegra o acórdão recorrido.

   Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na motivação do recurso.

   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 O Ministério Público deduziu a seguinte acusação contra o arguido A:
   “No mês de Outubro ou Novembro do ano de 1991, os indivíduos de nome B e C apareceram no escritório do A, ora arguido, exprimindo claramente a vontade de comprar terrenos para construir prédios.
   O arguido ajudou os ofendidos B e C para tratar a compra e venda dos terrenos sobre os imóveis [Endereço], inscritos na matriz predial sob os n.ºs , XXXXX, XXXXX, XXXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, respectivamente, e descritos na Conservatória do Registo Predial de Macau, respectivamente sob os n.ºs XXXX de fls. XXX, XXXX de fls. XXXv, XXXX de fls. XXX, XXXX de fls. XXXv, XXXX de fls. XXX, XXXX de fls. XXXv e XXXX de fls. XXX, bem sabendo que o D era apenas o titular do domínio directo dos imóveis acima referenciados, domínio esse que o arguido, segundo o seu conhecimento profissional, sabia claramente ser diferente ao domínio útil, ou seja da propriedade dos imóveis em causa, só ter o direito de receber uma quantidade diminuta de foro e não ter o direito de construir prédios em cima dos terrenos.
   Aproveitando-se da situação jurídica acima referida para obter vantagens indevidas para si, o arguido disse premeditadamente aos indivíduos B e C, que o D era o legítimo proprietário dos imóveis em causa. O arguido adiantou alegando que uma vez sujeitos os moradores a despejo, poderiam o B e o C então construir novos imóveis sobre o mesmo terreno.
   O arguido acrescentou que quanto à questão do despejo, poderia ajudar o B e o C, mediante uma recompensa na quantia de MOP$980.000,00 (novecentos e oitenta mil patacas).
   Assim, no dia 28 de Setembro de 1991, o arguido A, na qualidade de advogado, procedeu, no seu escritório, à celebração do contrato-promessa de compra e venda dos imóveis [Endereço], sendo promitente-vendedor o D e promitentes-compradores os indivíduos B e C. Foi fixado o preço da compra / venda no montante de HKD$2.600.000,00 (dois milhões e seiscentos mil dólares de Hong Kong), cfr. fls. 497, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
   No referido contrato-promessa de compra e venda, elaborado pelo arguido, foi utilizado propositadamente a expressão, em chinês, de “地權”, que não é de forma alguma o termo próprio usado no mundo jurídico; o arguido assim fez com o intuito de convencer os indivíduos B e C à ideia, incorrecta, de terem estes adquirido a propriedade dos imóveis em causa, enquanto, na realidade, o sentido de tal expressão (地權), se refere apenas, no contrato de promessa acima mencionado, ao domínio directo.
   Uma vez assinado o contrato-promessa de compra e venda pelo B e C, o arguido recebeu destes dois a quantia de HKD$150.000,00 (cento e cinquenta mil dólares de Hong Kong) a título de honorários, bem como a quantia de MOP$490.000,00 (quatrocentos e noventa mil patacas) como parte da recompensa prometida para a solução da questão de despejo, cfr. fls. 498, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
   Antes da outorga da escritura pública dos imóveis, o B e o C conheceram o E e o F, ambos representantes da Companhia de Investimento e Fomento Predial G, Limitada (em chinês, “甲實業有限公司” e, em inglês, “G1 Industrial Limited”), com sede em Hong Kong.
   Ao saber que os sócios da Companhia acima referida estavam interessados em investir no ramo de construção civil de Macau e que andavam à procura de terrenos ou de construções em estado gasto, a demolir, o B e o C, baseados das informações obtidas junto do arguido, manifestaram a vontade de lhes vender os imóveis em causa, afirmando que a propriedade de tais imóveis estava ainda sob o nome do D, ao qual o B e o C tinham, porém, prometido comprar.
   Através do B e do C, o arguido conheceu o H e o I, sócios da Companhia atrás mencionada, tendo assim tomado conhecimento da pretensão de investimento da referida Companhia em Macau.
   Na altura, o arguido A continuou a fornecer, ainda propositadamente, as mesmas informações ao H e I, de que os prédios [Endereço(1)], pertenciam ao D e que só depois de sujeitos os moradores ao respectivo despejo poderiam o H e o I construir novo/s imóvel/is sobre o mesmo terreno.
   Como o H e o I não tinham conhecimentos suficientes sobre a legislação da RAEM, tinham, por tal, depositado toda a confiança nos advogados de Macau, acreditando em tudo o que lhes tinha sido dito pelo Advogado Dr. A, ora arguido.
   Em 9 de Dezembro de 1991, o arguido, na qualidade de advogado do B e do C bem como da Companhia de Investimento e Fomento Predial G, Limitada, procedeu, no seu escritório, à celebração do contrato-promessa de compra e venda dos imóveis em causa, sendo promitentes-vendedores o B e o C e os promitentes-compradores o E e o F, representantes da Companhia de Investimento e Fomento Predial G, Limitada, tendo sido fixado o preço da compra / venda na quantia de HKD$6.500.000,00 (seis milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong), cfr. fls. 262 a 267, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
   Uma vez assinado o referido contrato-promessa, o E e o F entregaram ao B e C, em representação da Companhia em causa, no dia 12 de Dezembro de 1991, e no escritório do arguido, o cheque de caixa n.º XXXXXX, do Banco, da quantia de HKD$2.200.000,00 (dois milhões e duzentos mil dólares de Hong Kong), sendo que dessa quantia, HKD$490.000,00 (quatrocentos e noventa mil dólares de Hong Kong) se tratava de parte das despesas para o despejo dos moradores dos imóveis, HKD$150.000,00 (cento e cinquenta mil dólares de Hong Kong) se tratava dos honorários destinado ao advogado, ora arguido, e HKD$1.560.000,00 (um milhão quinhentos e sessenta mil dólares de Hong Kong) se tratava do reforço do sinal (cfr. fls. 269 a 273 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais).
   Neste último contrato-promessa de compra e venda, elaborado pelo arguido, foi utilizado mais uma vez, e propositadamente, a expressão, em chinês, de “地權”, com a mesma finalidade acima referida.
   A seguir, o arguido, por sua iniciativa, propôs às três partes para ser efectuada uma única escritura pública directamente entre o H e I e o D, e que o montante a pagar pela Companhia em causa fosse entregue directamente ao D, na data da escritura. O arguido propôs ainda que a escritura, em vez de continuar a ser feita no seu escritório, passasse a ser feita através do Dr. J, notário privado.
   Tal proposta do arguido foi aceite pelas três partes.
   No dia 11 de Janeiro de 1992, no escritório do Advogado Dr. J, o D, na qualidade de vendedor, e o H e I, na qualidade de compradores, outorgaram a escritura de compra e venda do domínio directo dos 7 prédios em causa (cfr. fls. 275 a 277 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais).
   A partir de Fevereiro de 1992, o H e I contactaram várias vezes o arguido, a fim de solicitar informações quanto ao procedimento a seguir sob o objectivo da desocupação dos imóveis em causa por parte dos seus moradores com vista à construção de um novo edifício em regime de propriedade horizontal, bem como o tempo a levar para atingir tal objectivo.
   O arguido informou aos mesmos para aguardar pela decisão de uma acção judicial que o arguido, em representação do D, tinha intentada no Tribunal contra a Sociedade para a Celebração dos Festejos Anuais dos Empreiteiros, então titular do domínio útil dos aludidos prédios.
   O arguido sugeriu ainda para que o H e I conferirem poderes forenses gerais ao arguido e ao seu colega, Dr. K, para dar continuidade à acção atrás referida. Assim, no dia 2 de Março de 1992, o arguido recebeu as procurações passadas pelo H e pelo I (cfr. fls. 317 e 318 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais).
   Porém, o arguido só utilizou as procurações conferidas pelo H e I no dia 11 de Janeiro de 1993, altura em que intentou acção declarativa que correu termos no 1º Juízo do Tribunal de Segunda Instância1, sob o n.º 48/93.
   Só depois de proferida, em 6 de Dezembro de 1993, a sentença do Tribunal no âmbito da Acção Declarativa n.º 48/93 (cfr. fls. 322 e 326 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais), o arguido chegou a dizer ao H e I que estes dois tinham perdido todos os direitos sobre os imóveis em apreço, visto que com o domínio directo nunca podiam adquirir o domínio útil, ou seja nunca podiam adquirir a propriedade dos imóveis em causa. E só nesta data, os ofendidos B, C, H e I vieram a saber que foram todos enganados pelo arguido.
   Como advogado com escritório na RAEM com muitos anos de experiência e conhecimentos profissionais, o arguido sabia muito bem que os ofendidos pretendiam comprar terrenos para construir prédios, e o domínio directo só ter o direito de receber foro, mesmo assim, tendo convencido os ofendidos para comprar os domínios directos dos terrenos em causa, a fim de obter enriquecimento ilegítimo, em prejuízo dos ofendidos.
   Sabendo perfeitamente que a sua conduta, acima descrita, não era permitida e era punida por Lei, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente.
   
   Pelo exposto, o arguido cometeu em autoria material e na forma consumada e continuada, um crime de burla previsto e punido pelo art.º 211.º, n.°s 1 e 4, al. a) do Código Penal de Macau com a proibição do exercício de funções nos termos do art.º 61.°, n.°s 1 e 2 do Código Penal de Macau.”
   
   
   2.2 Sobre a prescrição do crime de burla imputado ao arguido
   O arguido A foi acusado pelo Ministério Público por prática, na forma consumada e continuada, de um crime de burla agravado previsto e punido pelo art.° 211.°, n.°s 1 e 4, al. a) do Código Penal (CP).
   No seu recurso contra o despacho do juiz de instrução criminal que lhe aplicou medidas de coacção, o Tribunal de Segunda Instância considerou que o crime acusado consumou-se em 11 de Janeiro de 1992, data de outorga da escritura pública referida na acusação onde se declarou pago o preço objecto da mesma, sendo irrelevante o desfecho da acção ordinária n.° 48/93-1° que influi apenas no aspecto do conhecimento do ofendido do crime, factor estranho aos elementos típicos do crime. Uma vez que a única causa de interrupção do prazo de prescrição, a notificação do arguido para o primeiro interrogatório, só se verificou no dia 12 de Junho de 2003, o prazo de prescrição de dez anos já se completou, pelo que declarou extinto o procedimento criminal em causa e ordenou o arquivamento dos autos.
   No recurso ora interposto pelo Ministério Público, o único ponto em discussão reside na data da consumação do crime imputado ao arguido, estando de acordo quanto à imputação do crime previsto no novo CP de 1995 e ao prazo de prescrição de dez anos previsto no art.° 110.°, n.° 1, al. c) do mesmo CP, por aplicação do regime mais favorável ao arguido, à inexistência de quaisquer outras causas com reflexos no prazo prescricional para além da considerada no acórdão recorrido.
   Para o recorrente, o crime imputado na acusação só pode ter-se como consumado em 21 de Dezembro de 1993, data do trânsito em julgado da sentença proferida na acção declarativa n.° 48/93-1° do então Tribunal de Competência Genérica de Macau, que visava a aquisição do domínio útil dos prédios objecto da burla. Por outro lado, com a escritura pública de 10 de Janeiro de 1992 não se podia afirmar ainda ter causado prejuízo aos ofendidos, pois estava dependente de um evento, que era suposto para resolver a questão do referido domínio útil, através do despejo daqueles prédios.
   
   
   2.3 O momento da consumação do crime de burla
   É fundamental, para apreciar o presente recurso, determinar o momento da consumação do crime de burla agravado imputado ao arguido para efeito de averiguar a verificação ou não da prescrição do respectivo procedimento criminal.
   Prescreve assim o art. 211.°, n.° 1 do CP:
   “1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
   E o n.° 4 eleva a pena para 2 a 10 anos de prisão quando o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado, ou seja, mais de 150.000,00 patacas no momento da prática do crime (art.° 196.°, al. b) do CP).
   
   De acordo com a acusação, o arguido sabia que D era apenas titular do domínio directo dos prédios em causa. Mas aproveitou o insuficiente conhecimento dos ofendidos sobre a legislação de Macau e a confiança deles depositada no arguido como advogado, este dizia aos ofendidos que D era legítimo proprietário daqueles prédios.
   Assim, no dia 28 de Setembro de 1991, o arguido procedeu à celebração do contrato-promessa de compra e venda dos tais imóveis, sendo promitente-vendedor D e promitentes-compradores B e C, com o preço fixado em HKD$2.600.000,00. Neste contrato elaborado pelo arguido, foi utilizado propositadamente a expressão em chinês “地權”, que refere apenas ao domínio directo e não à propriedade. Com a assinatura do contrato-promessa, o arguido recebeu de B e C HKD$150.000,00 a título de honorários e MOP$490.000,00 com parte de recompensa para resolução do despejo nos referidos prédios.
   No dia 9 de Dezembro de 1991, o arguido procedeu à celebração do segundo contrato-promessa com o mesmo objecto, isto é, o ainda domínio directo dos prédios em causa, agora como promitentes-vendedores B e C e promitentes-compradores E e F, tendo fixado o preço em HKD$6.500.000,00. Este contrato também foi elaborado pelo arguido e continuou a utilizar a mesma expressão em chinês “地權” para referir ao domínio directo. No dia 12 seguinte, E e F entregaram a B e C o cheque no valor de HKD$2.200.000,00 que englobava despesas para despejo, honorários ao arguido e reforço do sinal.
   Mais tarde, no dia 10 de Janeiro de 1992 (mas não o dia 11 como consta da acusação, segundo a cópia da escritura à fls. 300), por sugestão do arguido, foi celebrada a escritura pública entre D como vendedor e H e I como compradores sobre o domínio directo dos prédios, pelo valor total declarado de MOP$714.000,00 que o vendedor disse ter já recebido.
   
   Entendemos que o crime de burla imputado ao arguido deve ter como consumado nesta última data com a feitura da escritura pública, sendo irrelevantes a questão do despejo e a decisão final da acção cível n.° 48/93-1° patrocinada pelo arguido.
   
   Na realidade, são elementos constitutivos do crime de burla:
- o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado;
- determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
- intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.2
   Sempre conforme o teor da acusação, o arguido convenceu os ofendidos a acreditar que D era proprietário dos prédios em causa e celebrar contratos, na convicção de que se estavam a comprar a propriedade dos prédios, com a entrega de dinheiro ao arguido e outros intervenientes.
   Sendo certo que o crime de burla constitui um crime de resultado, a sua consumação depende da ocorrência de um efectivo prejuízo patrimonial.3
   Com a assinatura dos contratos e os sucessivos pagamentos efectuados, nomeadamente por conta do preço dos contratos e a título de despesas para despejo, verificou já uma saída do património da disponibilidade dos ofendidos e que constitui o seu prejuízo.
   
   O efectivo despejo dos moradores daqueles prédios não é evento susceptível de fazer desaparecer prejuízos dos ofendidos e que tornasse legítima a actuação do arguido. Tal era impossível. O que os ofendidos adquiriram é o domínio directo que em nada lhe faculta o poder de despejar os moradores. Por isso, o despejo não tem qualquer relevância no iter criminis.
   
   Também não consideramos que o crime de burla está consumado apenas com a prolação ou trânsito em julgado da sentença da acção cível sumária n.° 48/93-1° do então Tribunal de Competência Genérica de Macau.
   Tal acção foi instaurada em 11 de Janeiro de 1993 pelos ofendidos H e I, patrocinados pelo arguido contra nomeadamente o titular do domínio útil dos prédios em questão, pedindo que seja declarada a sucessão do domínio útil e ordenado o seu registo a favor dos autores, ou declarada a extinção da enfiteuse por falta de pagamento do foro durante vinte anos.
   Embora pede-se, nesta acção, que os dois ofendidos, compradores do domínio directo, sejam declarados titulares do domínio útil, a própria acção em nada altera a natureza dos actos praticados antes pelo arguido e da sua consequência, ou seja, o engano provocado na convicção dos ofendidos de que estavam a comprar a propriedade dos prédios e o prejuízo patrimonial já causado na esfera deles. Mesmo com a procedência (impossível) da acção, o quadro das coisas mantém-se no mesmo, tratando-se, no máximo, como uma espécie de tentativa de reparação de danos.
   Mas tal acção parece mais como um expediente para encobrir a burla, tal como refere o recorrido, ora arguido, nas alíneas 5 e 8 das conclusões da sua resposta. De facto, a acção não tinha, à partida, qualquer viabilidade. Segundo a sentença proferida naquela acção em 4 de Dezembro de 1993 (fls. 350 verso e 351 dos presentes autos):
   “Acresce, por último, que a causa estava condenada desde o início ao insucesso, já que o nosso sistema jurídico não prevê a aquisição do domínio útil, com a extinção da enfiteuse, pela falta de pagamento do foro durante vinte anos, como pretendem os autores (e que constitui o único fundamento da presente acção).
   O que está previsto é o inverso, é a aquisição do domínio directo, com a extinção da enfiteuse, pela falta de pagamento do foro durante vinte anos, nos termos da alínea d) do art.° 1513.° do Código Civil, como resulta indiscutivelmente da aplicação a esta modalidade de extinção da enfiteuse, das regras da prescrição, consoante dispõe o art.° 1515.° do Código Civil.”
   Os autores desta acção fundamentaram os seus pedidos na falta de pagamento de foro durante mais de vinte anos (fls. 339). Só que, este facto só aproveita à ré da acção, titular do domínio útil, nos termos do referido art.° 1513.°, al. d) do Código Civil de 1966, o que significa que os ofendidos nunca poderiam adquirir o domínio útil através desta acção.
   
   É de salientar que a referida acção n.° 48/93-1° foi julgada improcedente e os réus absolvidos do pedido sobretudo por verificar a excepção do caso julgado formado pela sentença proferida na acção de consignação em depósito n.° 525/92-2°, intentada em 6 de Novembro de 1992 pela ré naquela acção, isto é, o titular do domínio útil, contra os autores daquela mesma (fls. 352).
   Nesta última acção n.° 525/92-2°, os réus H e I, ora ofendidos, patrocinados pelo arguido e por um outro advogado, apresentaram contestação em 24 de Março de 1993 (fls. 76 a 80 da acção).
   Por sentença proferida em 18 de Maio de 1993 e transitada em 3 de Junho seguinte, foi julgado válido e eficaz o depósito efectuado pela autora, remidos os foros dos prédios em causa, declarando extinto o domínio directo sobre os mesmos e ordenando o cancelamento do registo da enfiteuse (fls. 355 a 358 e 350 verso).
   Assim, se considerar que o dano sofrido pelos ofendidos só se verifica definitivamente com a declaração judicial de extinção do domínio directo e consequentemente da enfiteuse, então o crime de burla teria consumado no dia 18 de Maio de 1993, data da sentença da acção n.° 525/92-2°, ou no máximo, em 3 de Junho de 1993 quando transitou em julgado esta sentença.
   
   Segundo o art.° 110.°, n.° 1, al. c) do Código de Processo Penal (CPP), o procedimento penal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos.
   O prazo de prescrição do procedimento penal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado e interrompe-se, entre outras causas, com a notificação para interrogatório do agente como arguido (art.°s 111.°, n.° 1 e 113.°, n.° 1, al. a) do CPP).
   
   O arguido foi notificado para o interrogatório no dia 12 de Junho de 2003 (fls. 236), altura em que o prazo de prescrição já se completou em 10 de Janeiro de 2002 ou o mais tardar em 3 de Junho de 2003. Assim, deve o procedimento penal ser declarado extinto por prescrição.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
   Sem custas por o recorrente estar legalmente isento delas.
   
   
   
   Aos 14 de Julho de 2004.

           Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Aqui deve querer referir ao então Tribunal de Competência Genérica de Macau.
2 Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal de Macau, Macau, 1996, p. 597.
3 Neste sentido, A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 275 a 277.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Processo n.° 10 / 2004 20