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Processo n.º 18/2004. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: D.
Recorridos: Ministério Público, B e A.
Assunto: Recurso em processo penal para o Tribunal de Última Instância. Interesses económicos. Marca. Crime de contrafacção de marca. Produto adulterado. Perda de objectos.
Data da Audiência: 21.7.2004. Data do Acórdão: 28.7.2004.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
I – De acórdãos do Tribunal de Segunda Instância em processo penal, é admissível recurso para o Tribunal de Última Instância de decisão em que esteja em causa interesses económicos, quando a decisão seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do primeiro daqueles tribunais, ou seja, de MOP$500.000,00, por aplicação analógica do n.º 2 do art. 390.º do Código de Processo Penal.
II – A exposição à venda de produto usado, objecto de modificações, deteriorações ou adulterações, de marca registada, não constitui a prática dos crimes previstos e puníveis pelos arts. 291.º e 292.º do Código da Propriedade Industrial (CPI).
III – Não podem ser declarados perdidos a favor da Região, nos termos dos arts. 296.º, n.º 1, alínea a) do CPI e 101.º do Código Penal, relógios nas condições previstas na conclusão anterior.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
Apreciando reclamação de despacho proferido por magistrado do Ministério Público, em inquérito, a Ex.ma Procuradora-Adjunta determinou o arquivamento de inquérito e promoveu o perdimento de relógios apreendidos por serem total ou parcialmente contrafeitos.
O Ex.mo Juiz de Instrução Criminal proferiu, em 18 de Fevereiro de 2003, o seguinte despacho:
“Declaro, ao abrigo do disposto no art. 101.º do CPM, perdidos a favor da RAEM os relógios contrafeitos e apreendidos nos autos, por existir sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos.
Mais determino, por serem total ou parcialmente contrafeitos, a sua destruição..”.
O Tribunal de Segunda Instância, por acórdão de 15 de Janeiro de 2004, concedeu provimento ao recurso interposto pela A e provimento parcial ao recurso interposto por B, proprietário da C.
Não conformada, recorre a assistente D para este Tribunal, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:
I. O acórdão recorrido ao considerar como parte recorrente a "A", em substituição de E, original parte recorrente, que nunca alegou no seu articulado de interposição de recurso ser tal sociedade a parte recorrente e encontrar-se em sua representação a título de gestão de negócios, violou o artigo 83.° do C.P.C., aplicável por força do artigo 4.° do C.P.P.
II. À data dos factos, 05.11.1999, quem vendesse, colocasse à venda ou pusesse em circulação produtos com a marca contrafeita era punido com pena de prisão até um ano ou multa de cinco mil a quinhentas mil patacas, assim, o empresário que nessa data tivesse em exibição para venda relógios com a marca "Piaget" que sabia adulterados e parcialmente contrafeitos, havia cometido o crime p.p. pelo artigo 76.º do D.L. n.º 56/95/M de 6 de Novembro.
III. Actualmente, quem, em termos de actividade empresarial, ou seja, no exercício de uma actividade económica para a troca sistemática e vantajosa, produza ou intermedeie a circulação de bens, que utilizem marca contrafeita, sem o consentimento do titular do direito de propriedade industrial, com o fim de obter um beneficio ilegítimo, uma mais valia devida ao titular da marca contrafeita, comete o crime p.p. pelo artigo 291.º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial.
IV. Para efeitos de consumpção dos crimes de violação de direitos de propriedade industrial, não releva:
- que os produtos, sejam só parcialmente contrafeitos, pois faz-se equivaler a contrafacção parcial à contrafacção total;
- que os mesmos sejam postos a circular como produtos em segunda mão; ou ainda,
- que os mesmos sejam vendidos com indicação clara de que são produtos originais da marca com alterações que devidamente se assinalem
Pois tal só se destina a proteger os adquirentes dos produtos, e o bem jurídico penal protegido por tais incriminações é o direito de propriedade do titular da marca.
V. O artigo 296.º do Regime Jurídico de Propriedade Industrial ao ordenar que se declarem perdidos e se destruam os objectos em que se manifeste infracção penal prevista em tal diploma, não concede qualquer discricionariedade para se apreciar da perigosidade dos objectos contrafeitos, estabelece-a legalmente como intrínseca à simples existência de tais objectos, e por isso, determina que a regra é a sua destruição total, fazendo depender qualquer desmembramento das suas componentes de consentimento expresso do titular do direito de propriedade da marca para que os mesmos voltem a ser introduzidos nos circuitos comerciais ou para que lhes seja dada outra finalidade.

B respondeu à motivação do recurso, defendendo que não se conhecesse do recurso, por se tratar de decisão irrecorrível, e a manutenção da decisão.
O mesmo B requereu que, para o caso de o recurso vir a ser procedente, o Tribunal se pronunciasse sobre o seguinte fundamento que havia invocado no recurso para o TSI, fundamento em que decaíra, apesar de ter vencido o recurso:
- Que o despacho de perdimento dos bens proferido do Juiz de Instrução Criminal, violou o disposto no art. 101.º do Código Penal, por não fazer qualquer sentido que se possa arquivar um processo, não deduzindo acusação e, ao mesmo tempo, decretar a perda dos bens apreendidos.
O Ministério Público respondeu à motivação do recurso, opinando pelo não conhecimento do recurso, por se tratar de decisão irrecorrível.
Após reclamação para o Presidente do Tribunal de Última Instância, foi admitido o presente recurso.
Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“Como se sabe, o Tribunal de recurso só deve conhecer as questões levantadas pelo recorrente na motivação do recurso e não também as suscitadas pelo recorrido na resposta, a não ser de conhecimento oficioso.
Na resposta à motivação do recurso e à primeira vista, B submete à apreciação do tribunal uma questão que tem a ver com a competência do Juiz de Instrução Criminal para decretar perdidos a favor da RAEM os objectos apreendidos nos autos.
Trata-se duma questão que deve ser conhecida oficiosamente.
No entanto, com o levantamento de tal questão, B vem manifestar, no fundo, a sua desconformidade com o douto despacho proferido pelo Mmo. JIC: aceitando que a decisão é de competência do Mmo. JIC, vem impugnar a mesma decisão.
Alega que "não é possível ao mesmo tempo que se declara o arquivamento de um processo, declararem-se perdidos a favor do território os bens relacionados com a prática do crime ou de ilícito penal".
É verdade que estamos perante uma situação em que foi determinado pelo Ministério Público o arquivamento dos autos.
Porém, estando em causa os objectos apreendido na fase de inquérito cujo destino deve ser decidido, cabe ao Juiz de Instrução Criminal, que exerce as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, decretar a sua perda, se for caso disso, já que os autos não prosseguem, não vão para a fase processual posterior - fase de julgamento, pelo que não há lugar à intervenção do juiz de julgamento.
É de concluir pela competência do Juiz de Instrução Criminal em decretar a perda dos apreendidos em causa.
* * *
Na sua motivação do recurso, o recorrente "D" suscita duas questões:
i - A (i)legitimidade de E em interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância do douto despacho judicial que ordena a destruição dos relógios apreendido; e
ii - A falta de fundamento legal para revogar o mesmo despacho.
Vejamos.
Em relação à questão de (i)legitimidade, é de notar que, não obstante o recurso para TSI ter sido inicialmente interposto por E em nome individual, certo é que com a junção dos documentos juntos aos autos de fls. 208 e seguintes e de fls. 218 e 218v, o que demonstra a clara ideia de que E interpôs o recurso em nome da sociedade "A", deve ser considerado tal recurso interposto pela sociedade, pois com as assinaturas conjuntas de dois gerentes, que obrigam a sociedade, e em representação da mesma foram ratificados todos os actos praticados pelo seu advogado no processo.
Para nós, a questão essencial reside apenas em saber se E pode ou não representar a sociedade em causa para interpor o recurso, irregularidade esta que ficou suprida com a junção dos documentos.
Assim sendo, não nos parece que o recorrente tem razão, nesta parte.
Nos presentes autos, o recorrente apresentou queixa à Polícia, denunciando a venda (colocação à venda) de relógios sob a marca "Piaget", falsificados ou adulterados, nos estabelecimento de venda de produtos de relojoaria e joalheria de Macau, o que levou a apreensão de vários relógios colocados à venda nas casas de penhores.
Daí que, e conjuntamente com os elementos constantes dos autos, a conduta de colocar os relógios falsificados ou adulterados à venda foi um dos objectos da investigação realizada nos autos.
Encerrado o inquérito, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos nos termos do art.º 259.º n.º 2 do CPPM, segundo o qual o inquérito deve ser arquivado "se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes".
Como se sabe, para além de contrafacção, a conduta de vender, pôr em circulação ou ocultar produtos contrafeitos também é punida se estiverem verificados todos os elementos constitutivos do crime previsto no art.º 292.º, com referência aos arts. 289.º a 291.º, do DL n.º 97/99/M. Por outras palavras, comete também o crime quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, desde que tal venda, circulação ou ocultação seja feita nas circunstâncias previstas na lei.
O Ministério Público arquivou o processo precisamente porque não foi possível apurar tais circunstâncias exigidas por lei para poder imputar a prática dos factos ilícitos.
Ora, com excepção de um, os relógios apreendidos nos autos foram alterados no seu formato original, alguns com pequenas alterações.
E reconhecemos que existem casos duvidosos ou problemáticos em que se discute se uma alteração a produtos originais deve ser considerada como contrafacção.
No entanto, para efeitos de proteger a propriedade industrial e nos termos do DL n.º 97/99/M, parece-nos que é defensável o entendimento de equivaler uma adulteração parcial à contrafacção total.
Daí que mal se compreende a ideia de que só a venda do produto totalmente falso é que constitui uma infracção prevista no art.º 292.º do DL n.º 97/99/M, enquanto a venda dos produtos apenas com alguma alteração ou remodelação não será punida.
Salvo o devido respeito, entendemos que, se deve ser declarado perdido a favor da RAEM o relógio apreendido totalmente falsificado, pela mesma razão também devem ter o mesmo destino os restantes relógios aprendidos nos autos, embora apenas parcialmente alterados.
É o art.º 101.º n.os 1 e 2 do CPM que regula, como regra geral, a matéria de perda de objectos, prevendo que "são declarados perdidos a favor do Território (que deve ser interpretado como Região Administrativa Especial de Macau) os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos", ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto.
Em relação aos produtos contrafeitos e nos termos do art.º 296.º n.º 1, al. a) do DL n.º 97/99/M, "são declarados a favor do Território (que deve ser interpretado como Região Administrativa Especial de Macau) os objectos em que se manifeste uma infracção penal prevista no presente diploma".
Tal como já ficou dito, no entendimento de equivaler uma adulteração parcial à contrafacção total e se considerar satisfeitos os requisitos da perda dos objectos em relação ao relógio totalmente falso, também devem ser declarados perdidos os restantes relógios parcialmente alterados.
Por outro lado, se é verdade que em regra geral a perda de objectos tem como pressuposto a "perigosidade" dos mesmos, não nos parece que, como norma especial que regula o destino dos produtos contrafeitos, no art.º 296.º do DL n.º 97/99/M contém a mesma exigência. Ou seja, pode entender que tal perigosidade é já considerada intrínseca nos produtos contrafeitos, pelo que não vale a pena indicá-la duma forma clara.
Seja como for, é muito provável que os relógios apreendidos, ou partes deles, se forem devolvidos aos seus donos, sejam utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, satisfazendo assim o referido requisito para poderem ser declarados perdidos.
Para tutela do bem jurídico protegido pela norma em causa - o direito de propriedade do titular de marca, é justificável a declaração de perda dos relógios apreendidos nos autos.
E a lei manda destruir os objectos declarados perdidos, sempre que o titular do direito ofendido não der o seu consentimento expresso para que tais objectos voltem a ser introduzidos nos circuitos comerciais ou para que lhes sejam dada outra finalidade, ainda que seja possível a eliminação da parte que constitua violação do direito ofendido (cfr. art.º 296.º n.º 2 do DL n.º 97/99/M e art.º 101.º n.º 3 do CPM).
Pelo exposto, parece-nos lícito declarar perdidos a favor da RAEM todos os relógios apreendidos nos autos.
Caso contrário, seria a admitir, pelas mesmas razões, que o relógio totalmente contrafeito também deve ser devolvido ao seu dono, o que é naturalmente inaceitável.
Se assim não se entender, o que se pode fazer é, eliminando as peças não originais dos relógios apreendidos, declarar perdidas a favor da RAEM tais peças e mandar restituir as restantes aos seus donos, mas nunca devolver os relógios no estado em que se encontram.
Termos em que merece provimento o presente recurso ou, se assim entender, mandar eliminar as peças não originais dos relógios apreendidos, declarando as mesmas perdidas a favor da RAEM e restituindo as restantes aos seus donos”.

Prevenindo a possibilidade de se vir a entender que o requerimento feito pelo recorrido na sua resposta à motivação do recurso constitui a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do art. 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, foi ouvida a recorrente, de acordo com o disposto nos arts. 613.º, n.º 5 e 645.º do Código de Processo Civil, todos aplicáveis subsidiariamente.

II – Os factos
De acordo com o auto de exame de exame directo de fl. 50 a 51v, os objectos apreendidos aos dois interessados que interpuseram recurso para o TSI, apresentam as seguintes qualidades:
A) C - recorrente B
N.° 1 - Relógio de ouro amarelo caixa redonda, para homens, ostentando a marca Piaget 9025N-590654 (número de caixa) com brilhante e rubis. A tampa de caixa é original a pulseira, com diamantes, mostrador e ano são todos falso e não original "Piaget" mecanismo verdadeiro.
N.° 2 Relógio de ouro branco com diamantes caixa redonda modelo homem, ostentando marca "Piaget" sem número, totalmente falso.
N.° 3 Relógio de ouro branco com diamantes, caixa redonda modelo senhora, ostentando a marca "Piaget" n.° 9532-74458, mecanismo verdadeiro todos outros elementos falso.
N.° 4 Relógio de ouro branco com diamantes, caixa quadrada, modelo homem, ostentando marca "Piaget", n.° 9591-216495, a tampa e o mecanismo original, pulseira, mostrador e aro com diamantes são todos falso.
N.° 5 Relógio de ouro branco com diamantes e esmeraldas, caixa quadrada, modelo homem, ostentando marca "Piaget" n.° 9731-A-6-238367, a tampa da caixa e o mecanismo são originais a pulseira com diamantes mostrador e aro são todos falso.
N.° 6 Relógio de ouro branco com diamantes, cixa quadrada, modelo senhora, ostentando marca "Piaget" n.° 8148-392373, tampa da caixa e mecanismo originais, pulseira mostrador e aro são todos falso.
B) A – recorrente A
N.° 1 Relógio de aço ónix, caixa rectangular, modelo homem, ostentando marca "Piaget", n.° 928749-423803, a pulseira é falsa.
N.° 2 Relógio de ouro amarelo, e brilhante, mostrador preto bracelete em cabedal, modelo homem ostentando marca "Piaget", n.° 81845-407205, diamantes e aro bracelete e fecho falso.
N.° 3 Relógio de ouro amarelo, mostrador azul e aro com brilhante, caixa redonda, modelo homem, ostentando marca "Piaget", n.° 5895-578030, tampa da caixa mostrador e mecanismo originais, bracelete e aro com diamantes falso.
N.° 4 Relógio de ouro amarelo, mostrador azul e aro com brilhante, caixa rectangular, modelo homem, ostentando marca "Piaget", n.° 9154B12-359949, o aro com brilhante é falso e restantes são originais.
N.° 5 Relógio de ouro amarelo, mostrador com brilhante, de caixa quadrada, modelo homem, ostentando marca "Piaget", n.° 12423-128689, caixa e mecanismo original, mostrador com brilhante e pulseira falso.
N.° 6 Relógio com mostrador de ouro amarelo ro com brilhante, caixa redonda ostentando marca "Piaget" , modelo homem, n.° 84023K81-566344, só o aro com brilhante é falso.
N.° 7 Relógio de ouro branco com mostrador e aro brilhante e esmeralda, caixa quadrada, modelo homem, ostentando marca "Piaget", n.° 9263-96501, só a caixa e mecanismo são originais, aro, mostrador e bracelete são falsos.

III - O Direito
1. As questões, eventualmente, a resolver.
- A recorribilidade do acórdão recorrido, suscitada na resposta do recorrido B;
- Se o acórdão recorrido ao considerar como parte recorrente a "A", em substituição de E, violou o artigo 83.° do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4.° do Código de Processo Penal;
- Se para efeitos de prática dos crimes de violação de direitos de propriedade industrial, não releva que os produtos, sejam só parcialmente contrafeitos, pois faz-se equivaler a contrafacção parcial à contrafacção total, que os mesmos sejam postos a circular como produtos em segunda mão, ou ainda, que os mesmos sejam vendidos com indicação clara de que são produtos originais da marca com alterações que devidamente se assinalem;
- Se artigo 296.º do Regime Jurídico de Propriedade Industrial ao ordenar que se declarem perdidos e se destruam os objectos em que se manifeste infracção penal prevista em tal diploma, não concede qualquer discricionariedade para se apreciar da perigosidade dos objectos contrafeitos, estabelece-a legalmente como intrínseca à simples existência de tais objectos, e por isso, determina que a regra é a sua destruição total, fazendo depender qualquer desmembramento das suas componentes de consentimento expresso do titular do direito de propriedade da marca para que os mesmos voltem a ser introduzidos nos circuitos comerciais ou para que lhes seja dada outra finalidade;
- Se o despacho de perdimento dos bens, proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, violou o disposto no art. 101.º do Código Penal, por não fazer qualquer sentido que se possa arquivar um processo, não deduzindo acusação e, ao mesmo tempo, decretar a perda dos bens apreendidos (questão suscitada pelo recorrido B que requereu, para o caso de o recurso vir a ser procedente, que o Tribunal se pronunciasse sobre este fundamento que havia invocado no recurso para o TSI, fundamento em que decaíra, apesar de ter vencido o recurso).

Âmbito do recurso e da questão suscitada pelo recorrido. Trânsito em julgado parcial do acórdão recorrido.

2. Do acórdão recorrido só recorreu D, doravante designada por D, embora o recorrido B tenha ficado vencido na parte respeitante à confirmação da decisão do tribunal de 1.ª instância quanto ao perdimento do relógio n.º 2, apreendido na sua loja C. Nesta parte e quanto ao perdimento deste relógio, a decisão recorrida transitou em julgado, pois a única maneira de a tal obstar era a de interposição de recurso nessa parte. O recorrido não o fez e limitou-se a utilizar a faculdade concedida pelo n.º 1 do art. 590.º do Código de Processo Civil, como se explicará melhor adiante, se for caso disso, que é uma faculdade da parte vencedora do recurso. Quer isto dizer que se o recurso de D for procedente, o Tribunal conhecerá do fundamento em que o ora recorrido B decaiu no recurso para o TSI. Mesmo que seja procedente esta ampliação do âmbito do recurso, a mesma já não pode pôr em causa a parte do acórdão do TSI que transitou em julgado e que acima se fez referência, por falta de impugnação do vencido.

A recorribilidade do acórdão recorrido
3. B defendeu que não se conhecesse do recurso, por se tratar de decisão irrecorrível. Na sua opinião, aplicar-se-ia o disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 390.º do Código de Processo Penal, segundo a qual não é admissível recurso “de acórdãos proferidos, em recurso pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções”. Como ao caso caberia uma pena inferior a oito anos, não poderia recorrer-se para o Tribunal de Última Instância (TUI), pois a intenção da lei seria a de que não fosse admissível recurso para o TUI, quando se tratasse de bagatelas penais. Por outro lado, a sanção de perda do bem a favor da Região, tem uma natureza penal ou de medida de segurança.
Sobre a questão já se pronunciou no processo o Presidente deste Tribunal, em reclamação deduzida pela recorrente contra o despacho do Ex.mo Relator do processo no TSI, que não admitiu o recurso. A reclamação foi considerada procedente, por se ter considerado recorrível a decisão.
A propósito da decisão que conhece da reclamação pela não admissão ou pela retenção de recurso, dispõe o n.º 4 do art. 395.º do Código de Processo Penal que “A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento; no caso contrário, não vincula o tribunal a que o recurso se dirige”.
Assim tendo sido suscitada a questão no recurso, há que conhecer dela, visto não ser a decisão definitiva.

4. No acórdão deste Tribunal, de 17 de Setembro de 2003, Processo n.º 20/2003, foi apreciado um caso de recorribilidade em matéria penal para o TUI, que tem relevância para a presente decisão. Tratava-se de saber qual o regime da recorribilidade das decisões sobre custas, em processo penal. Recordou-se, então que:
“Em matéria penal, a regra geral é a da recorribilidade das decisões, expressando-se o art. 389.º do Código de Processo Penal da seguinte forma:
“Artigo 389.º
(Princípio geral)
É permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.
O art. 390.º estabelece as excepções a tal princípio geral da recorribilidade das decisões:
“Artigo 390.º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De decisões proferidas em processo sumaríssimo;
d) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que não ponham termo à causa;
e) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância;
f) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
g) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
h) Nos demais casos previstos na lei.
2. O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.
E acrescentou-se:
“Mas o art. 390.º é uma norma delimitadora do alcance da anterior, especificando o n.º 1 quatro casos em que não cabe recurso do TSI para o TUI.
Todos estes casos do n.º 1 do art. 390.º se referem às decisões em matéria penal tomadas pelo TSI (decisões não finais e decisões absolutórias e condenatórias dos arguidos).
O n.º 2 do art. 390.º trata da recorribilidade das decisões relativas à indemnização civil.
E não há outras normas que rejam os demais casos em que não esteja em causa nem matéria penal nem matéria atinente à indemnização civil.
Ou seja, não há norma expressa a prever a recorribilidade ou a irrecorribilidade das decisões relativas a custas, multas (ao arguido, partes civis e simples intervenientes processuais, como testemunhas e peritos) e outras decisões que o TSI possa ter que proferir em processo penal.
Quid juris?
Uma possível solução seria aplicar a estes casos o princípio geral da recorribilidade das decisões tomadas em processo penal.
Mas esta solução não teria em conta que, em matéria penal, o TUI só intervém na apreciação dos crimes mais graves em termos de pena abstractamente aplicável1 e que, no que toca à parte da decisão relativa à indemnização civil, o TUI só conhece das decisões desfavoráveis para o recorrente em valor superior a metade da alçada do TSI, ou seja, a MOP$500.000,00.
Logo, parece evidente que o conhecimento por parte do TUI de decisões não penais nem relativas à indemnização civil do TSI, designadamente em matéria de custas, multas e outras, não pode ser genérico.
Pois se, em matéria penal e de indemnização civil, a sua intervenção é, respectivamente, limitada aos crimes mais graves e aos interesses económicos mais valiosos, seria totalmente desacertado admitir o conhecimento dos recursos em outras matérias muitos menos importantes e relevantes.
Mas, então, o TUI nunca pode conhecer de tais questões?
Uma possível solução seria admitir o conhecimento de tais questões quando fossem colocadas em acumulação com outras de que o TUI pode conhecer, nos termos legais.
Mas tal solução chocaria o senso comum.
A que título, por exemplo, é que em acumulação com a apreciação de um crime de homicídio voluntário, o TUI poderia apreciar a discussão de custas no valor de 3 UC e já não o faria se estivesse em causa um valor de 40 UC ou até muito superior - porventura ilegalmente fixado - mas em que não estivesse em apreciação outra questão de que pudesse conhecer, como acontece com o crime de injúria, punível com pena de prisão até 3 meses ?
Quer dizer, estando em causa, no caso de decisão sobre custas, uma questão económica, não faz sentido atrelar o seu conhecimento às matérias estritamente penais, em que os valores em causa são de outra natureza.
Mas a ser assim, parece haver maior analogia (art. 9.º do Código Civil) de tais questões económicas (custas, multas), com a questão relativa à indemnização civil, em que também estão em causa valores de ordem económica.
Ora, estabelecendo a lei que só há recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido, é curial só admitir o recurso respeitante à decisão sobre custas tomada pelo TSI, quando a decisão seja desfavorável para o recorrente em valor superior a MOP$500.000,00.2 3”
Afigura-se-nos ser de seguir o mesmo critério na presente questão.
O recurso dos autos impugna a decisão que não declara perdidos a favor da Região relógios Piaget, que a recorrente considera falsos.
Como se diz no despacho do Presidente deste Tribunal atrás mencionado, o acórdão recorrido afecta o direito da marca Piaget, sendo indubitáveis os seus enormes interesses económicos.
Está, portanto, em causa, para a recorrente, uma questão com uma vertente marcadamente económica, independentemente de a decisão, que declara perdidos bens a favor da Região, nos termos do art. 101.º do Código Penal, ter ou não natureza penal.
O interesse económico da recorrente deve considerar-se superior a MOP$500.000,00.
Logo, é de admitir o recurso, por analogia com a situação prevista no n.º 2 do art. 390.º do Código de Processo Penal.

5. Irregularidade da representação
A recorrente entende que o acórdão recorrido, ao considerar como parte recorrente a A, em substituição de E, violou o art. 83.° do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.° do Código de Processo Penal.
Vejamos. E, na qualidade de representante da A veio interpor recurso, patrocinado por advogado, do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal.
Mais tarde, verificou-se que a proprietária da casa de penhores é uma sociedade comercial, a A, de que o E é um dos gerentes, sendo que só a assinatura de dois dos gerentes pode obrigar a sociedade.
Posteriormente, a sociedade veio ratificar os actos praticados pelo E, juntando procuração ao mesmo advogado.
É exacto que a legitimidade para recorrer pertencia à proprietária do estabelecimento e não ao seu gerente. Mas deve entender-se que este o pretendeu fazer na qualidade de representante daquela, embora sem poderes, conquanto o não tenha dito expressamente. Deve deduzir-se isso do seu comportamento – que com toda a probabilidade revelam a sua intenção (art. 209.º, n.º 1 do Código Civil) - já que ele, em nome próprio, não detinha legitimidade para recorrer.
Ou seja, o gerente não agiu como gestor de negócios, pelo que não é aplicável o disposto no art. 83.º do Código de Processo Civil. Rege, antes, o art. 55.º deste diploma legal, que dispõe:
“Artigo 55.º
(Suprimento da incapacidade judiciária
e da irregularidade da representação)
   1. A incapacidade judiciária e a irregularidade da representação são sanadas mediante a intervenção ou citação do representante legítimo ou do curador do incapaz.
   2. Se estes ratificarem os actos anteriormente praticados, o processo segue como se o vício não existisse; no caso contrário, fica sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a falta se deu ou a irregularidade foi cometida, correndo novamente os prazos para a prática dos actos não ratificados, que podem ser renovados.
3. ...
4. ...”
Pois bem, a sociedade que recorreu, irregularmente representada, sanou a irregularidade da representação, ratificando os actos praticados pelo seu gerente.
Improcede a questão suscitada.

6. Conceitos de marca e de contrafacção de marca
A recorrente entende que para efeitos de prática dos crimes de violação de direitos de propriedade industrial, não releva que os produtos, sejam só parcialmente contrafeitos, pois faz-se equivaler a contrafacção parcial à contrafacção total, que os mesmos sejam postos a circular como produtos em segunda mão, ou ainda, que os mesmos sejam vendidos com indicação clara de que são produtos originais da marca com alterações que devidamente se assinalem.
Esta alegação traduz um deficiente entendimento do conceito de marca e de contrafacção de marca.
No recurso para o TSI estava em causa a apreciação de infracções aos direitos de propriedade industrial, alegadamente causados pela exposição à venda de relógios ostentando a marca Piaget, em duas lojas de penhores de Macau.
Só um relógio era completamente falso, ou seja não fabricado pela assistente ora recorrente, D.
A situação deste relógio já não está em causa no presente recurso, por não ter sido impugnado o acórdão recorrido, nesta parte, como se dá conta mais desenvolvidamente em III – 2.
Os restantes relógios à venda, que estão agora em causa, são usados, foram fabricados pela assistente, D. Têm, no entanto alguns componentes ou acessórios não originais. Nalguns casos só há um componente ou acessório não original, como a pulseira, ou o aro com brilhantes. Noutros casos há mais do que um componente ou acessório não originais, dos quais, a tampa da caixa, ou a pulseira com diamantes, ou a bracelete, ou o aro com diamantes, ou o mostrador, ou o fecho.
Tem-se discutido se foram praticados os crimes previstos e puníveis pelos arts. 291.º e 292.º do Código da Propriedade Industrial (doravante designado por CPI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 97/99/M, de 13 de Dezembro. O que só compreende por uma lamentável confusão entre os conceitos de marca e produto.
Dispõem tais normas:
“Artigo 291.º
(Contrafacção, imitação e utilização ilegal de marca)
É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa entre 90 e 180 dias quem, em termos de actividade empresarial e com o objectivo de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, e sem consentimento do titular do direito de propriedade industrial:
a) Contrafizer, total ou parcialmente, ou reproduzir por qualquer meio uma marca registada;
b) Imitar, no todo ou em alguma das suas partes características, uma marca registada;
c) Utilizar as marcas contrafeitas ou imitadas;
d) Utilizar, contrafizer ou imitar as marcas notórias e cujos registos já tenham sido requeridos em Macau;
e) Utilizar marcas, ainda que em produtos ou serviços sem identidade ou afinidade, as quais sejam tradução, iguais ou semelhantes a marcas anteriores cujo registo tenha sido requerido e que gozem de prestígio em Macau, sempre que a utilização da marca posterior procure, sem justo motivo, tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca anterior ou possa prejudicá-los;
f) Utilizar, nos seus produtos, serviços, estabelecimento ou empresa, uma marca registada pertencente a outrem.
Artigo 292.º
(Venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos)
É punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa de 30 a 90 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos por qualquer dos modos e nas condições referidos nos artigos 289.º a 291.º, com conhecimento dessa situação”.
A recorrente (e não só) entende que alterar um produto original em que esteja aposta uma marca registada é contrafazer parcialmente a marca.
Mas sem razão.
Uma coisa é a marca. Outra é o produto. São realidades diversas.
A marca, dispõe o art. 197.º do CPI é “o sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”.
Um relógio não constitui uma marca. O relógio é o produto que a respectiva marca pode distinguir de outro relógio de outra marca.
Como explica ALBERTO F. RIBEIRO DE ALMEIDA, 4 “A marca é um sinal distintivo de produtos ou serviços. É um sinal ou signo destinado a diferenciar, individualizar, produtos ou serviços, distinguindo-os de outros da mesma espécie. A marca é um sinal sensível aposto em (ou acompanhando) produtos ou serviços para os distinguir dos produtos ou serviços idênticos ou similares dos concorrentes”.
Quando alguém (que não a D) produz um relógio apondo-lhe como marca no respectivo mostrador está a contrafazer esta marca, está a falsificar a marca.
Quando alguém substitui a bracelete de um relógio produzido por D por outra bracelete, sem marca ou com outra marca, não está a contrafazer a marca . O que está é a alterar o produto Piaget. Mas se apuser uma bracelete com a marca , não produzida por D, está a contrafazer a bracelete.
Ou seja, os arts. 291.º e 292.º punem a contrafacção e a imitação de marcas, dos sinais, mas não punem a alteração dos produtos de marca.
Expliquemos melhor.

7. A marca de forma
Como se disse, um relógio, em si não é uma marca. Marca são os sinais nominativos ou figurativos utilizados para distinguir esse relógio de outro, fabricado por outro produtor. No caso dos autos, a marca é .
Dito isto, convém fazer uma precisão. Um relógio pode constituir, em certas circunstâncias, uma marca. Na verdade, discutiu-se longamente se a forma de um produto ou a sua embalagem podiam constituir uma marca.5 Depois de uma directiva comunitária,6 a generalidade das legislações europeias aceita abertamente a marca de forma.
O art. 197.º do CPI permite expressamente que constitua marca “a forma do produto ou da respectiva embalagem”, ponto é que “sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”.7
Porém, no caso dos autos não está em causa o relógio como marca da recorrente, pois esta apenas invocou a marca (documento que juntou a fls. 20) e não qualquer marca constituída por relógio(s).

Modelos e desenhos. Cláusula de reparação.
8. Mas há outros argumentos para demonstrar que o crime de contrafacção de marca nada tem que ver com a alteração de produto de marca registada.
Actualmente, discute-se – por pressão das marcas de automóveis – se é possível colocar acessórios que não sejam de origem. Mas, neste caso, ninguém sustenta que haja qualquer violação do direito à marca. O que está em causa é o direito ao desenho ou modelo.
Os desenhos ou modelos, como direitos de propriedade industrial, objecto de protecção, são “...as criações que se traduzem numa aparência da totalidade ou de parte de um produto devido a características tais como linhas, contornos, cores, forma, texturas e ou materiais utilizados do próprio produto e ou da sua ornamentação...” (art. 150.º do CPI).
Explica J. OLIVEIRA ASCENSÃO:8
“Um ponto de extrema importância é dado pela chamada cláusula de reparação. Suponhamos um automóvel. Será possível colocar acessórios que não sejam de origem? Ou isso violará o direito ao desenho ou modelo?
Se a peça não estiver exteriormente visível, não há problema. Mas se o estiver, é muito forte a pressão das grandes marcas para que a introdução de outras peças não seja permitida”.9
Ora, qualquer que seja, na matéria, a resposta do Ordenamento de Macau, o certo é que a recorrente não alegou o registo de qualquer desenho ou modelo, pelo que a questão não se põe.

9. O princípio do esgotamento dos direitos industriais
O princípio do esgotamento dos direitos industriais também milita no sentido de que a alteração do produto de marca registada não constitui o crime de contrafacção de marca.
O significado do referido princípio é o de que, em cada colocação de produtos no mercado, esgota-se em relação a esses produtos concretos originais o direito de o respectivo titular controlar a sua circulação.10
O princípio nasceu no início do século XX para o direito de patente e o Tribunal de Justiça da União Europeia adoptou-o, pela primeira vez, em matéria de marcas, no caso Centrapharm/Winthrop. E foi consagrado no art. 7.º da já mencionada Directiva 89/104/CEE, que dispõe:
“Artigo 7.º
Esgotamento dos direitos conferidos pela marca
1. O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento.
2. O n.º 1 não é aplicável sempre que existam motivos legítimos que justifiquem que o titular se oponha à comercialização posterior dos produtos, nomeadamente sempre que o estado desses produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no mercado”.
Não está em causa saber se o referido princípio vigora em Macau, onde não existe preceito expresso na matéria. Pretende-se, apenas demonstrar, com o referido princípio, que, nos sistemas jurídicos semelhantes ao de Macau, nunca esteve em causa, em matéria de direitos industriais, que a alteração do produto de marca registada constitua o crime de contrafacção de marca.
Quer dizer, independentemente de se poder defender que, em Macau, os titulares de marcas registadas podem proibir a circulação de produtos seus sempre que estes sejam modificados ou alterados após a sua colocação no mercado – questão que não nos cumpre resolver, pois só está em causa saber se foram praticados os crimes dos arts. 291.º e 292.º do CPI – tal proibição não é levada a cabo por meio da tutela garantida pelo direito penal.
É o que resulta, também, da explicação de PEDRO SOUSA E SILVA11que defende que há certas prerrogativas, que apelida de residuais, que subsistem mesmo após ter ocorrido o esgotamento do direito industrial, o que sucede particularmente no caso das marcas, prerrogativas essas destinadas a assegurar que a marca, enquanto os produtos permaneçam no mercado, isto é, em circulação – não, evidentemente, quando já estejam afectados ao uso privativo dos seus proprietários – continua a desempenhar o seu papel indicativo da proveniência. E acrescenta:
“Entre essa prerrogativas, inclui-se o direito exclusivo para a caracterização do produto, de que fala BEIER12, que se traduz na faculdade privativa de determinar a composição, a forma, o aspecto exterior e demais características do produto que o titular assinala e coloca no mercado sob determinada marca. Tal prerrogativa poderá ser posta em causa quando um produto - já introduzido no mercado mas ainda não saído da circulação - venha a ser objecto de modificações, deteriorações ou adulterações que modifiquem características importantes do mesmo. Nessas hipóteses, admite-se ao titular a faculdade de reagir judicialmente contra os autores das modificações e mesmo a de exigir que a marca seja retirada dos produtos modificados13. De facto, se um produto for sujeito a alterações ou adulterações significativas poder-se-á defender, fundadamente, que deixou de ser um produto genuíno, na medida em que se diferencie consideravelmente do seu estado original. Aliás, pode mesmo afirmar-se que a proveniência de um produto alterado é já diversa da do produto original. Se a mesma marca assinalar, indiferentemente, produtos alterados e "originais", ficará comprometida a indicação de proveniência, pois que não haverá só uma fonte, mas sim várias, para produtos da mesma marca.
Mas nem todas as intervenções de terceiros sobre os produtos marcados conduzirão ao efeito acima apontado: reparações, pequenas modificações ou simples manutenção dos produtos não têm, evidentemente, incidência sobre a caracterização dos mesmos. Aliás, existe um sector industrial que se dedica, legitimamente, à transformação de determinados produtos, como é o caso dos automóveis, e que deve ser respeitado. Por isso, só deverá considerar-se que há uma violação do direito da marca quando as alterações ou reparações provoquem uma modificação mais ou menos radical das características essenciais do produto, de tal forma que este fique desnaturado face ao seu estado original. Caso assim aconteça, é unanimemente reconhecido ao titular o direito de reagir judicialmente contra tais práticas.
Questões análogas se levantam a propósito da venda de bens usados14 e nos casos de produção de artigos que incorporam produtos de marca, embora estas hipóteses suscitem problemas específicos, que não iremos apreciar”.

10. Em conclusão:
Mesmo que se entenda que, em Macau, o titular de marca registada de produto em circulação, que venha a ser objecto de modificações, deteriorações ou adulterações, tem a faculdade de reagir judicialmente contra os autores das modificações e até de exigir que a marca seja retirada dos produtos modificados;
Mesmo que se considere que tal faculdade também se estende à venda de produtos usados;
O certo é que a venda dos mesmos produtos não constitui a prática dos crimes previstos e puníveis pelos arts. 291.º e 292.º do CPI.

11. A perda de coisas relacionada com o crime
O art. 296.º, n.º 1, alínea a) do CPI determina o perdimento a favor da Região relativamente aos objectos em que se manifeste uma infracção penal prevista no mesmo diploma.
É o que também resulta do n.º 1 do art. 101.º do Código Penal.
Sucede que com a venda dos relógios que estão, agora, em causa, não foi praticado qualquer crime, pelo que, obviamente, não podem tais objectos ser declarados perdidos a favor da Região e deverão ser entregues aos seus proprietários.
O n.º 2 do art. 101.º do Código Penal, nada tem que ver com a situação em apreço.
Nos termos de tal norma, a declaração de perdimento a favor da Região dos objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (crime), ou que por este tiverem sido produzidos “...tem lugar ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto”.
O que daí resulta é que há lugar a perdimento se se verificarem os elementos objectivos de um crime, mesmo que, em concreto, nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto, v. g, por ser inimputável, por se desconhecer o autor do crime, por ter havido extinção do procedimento criminal (por prescrição, por amnistia, etc.).15
Em conclusão, bem andou o acórdão recorrido em não declarar os relógios perdidos a favor da Região.
Está prejudicada a questão suscitada pelo recorrido B, para o caso de o recurso vir a ser procedente.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela assistente, com taxa de justiça que se fixa em 10 UC.
Macau, 28 de Julho de 2004

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
  1 E não em todos, já que não pode apreciar, por exemplo, as decisões absolutórias do TSI, confirmativas de decisões de primeira instância[art. 390.º, n.º 1, alínea d)], por mais graves que sejam os crimes imputáveis aos arguidos.
  2 O que pode suceder não só em casos de fixação de taxa de justiça em montante superior ao legalmente admitido, como também face a valor elevado dos encargos, como despesas efectuadas, retribuições a peritos, etc.
  3 Parece preferível esta solução a outra que privilegiasse o recurso à alçada do TSI, a que recorre o processo civil (art. 583.º do respectivo Código), sendo, no entanto, certo que face à lei processual civil a recorribilidade das decisões depende não só do critério do valor da acção, como da sucumbência, sendo esta, também, tal como na indemnização civil em processo penal, metade da alçada do tribunal de que se recorre.
  4 ALBERTO F. RIBEIRO DE ALMEIDA, Denominação de origem e marca, Coimbra Editora, 1999, p. 333.
  5 Sobre a querela doutrinal e jurisprudencial, cfr. LUÍS M. COUTO GONÇALVES, Função distintiva da marca, Almedina, Coimbra, 1999, p. 64 e segs. e Direito de marcas, Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 2003, p. 90 e segs.
  6 Art.2.º da Directiva 89/104/CEE, a Primeira Directiva do Conselho de 21 de Dezembro de 1988 que harmoniza as legislações dos Estados-membros em matéria de marcas. Esta directiva pode ser consultada em ALEXANDRE DIAS PEREIRA, Propriedade Intelectual II, Código da Propriedade Industrial, Coimbra, Quarteto, 2003, p. 317.
  7 Já o n.º 2 do art. 14.º do Decreto-Lei n.º 56/95/M, de 6 de Novembro, permitia a marca de forma.
  8 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, A reforma do Código da Propriedade Industrial, em Direito Industrial, APDI – Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Almedina, Coimbra, 2001, Vol. I, p. 499.
  9 Seguidamente, o mesmo autor dá conta do estado da questão na União Europeia, por força do art. 14.º da Directiva 98/71/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Outubro de 1998 relativa à protecção legal de desenhos e modelos, que permite alterações legais dos Estados-membros no sentido da maior permissividade das reparações e que pode ser consultada em ALEXANDRE DIAS PEREIRA, obra citada, p. 451.
  10 LUÍS M. COUTO GONÇALVES, Função..., p. 93.
  11 PEDRO SOUSA E SILVA, O “esgotamento de direitos industriais”, em Direito Industrial, APDI – Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Vol. I, p. 453 e segs., em particular, p. 462 e segs.
  12 Evolução e Características Básicas do Direito Europeu das Marcas, Revista Assuntos Europeus, 1982, p. 27.
  13 Essa possibilidade é expressamente reconhecida pelo artigo 7.° da Directiva 89/104/CEE e pelo Regulamento sobre a marca comunitária, bem como pelo n.° 2 do art. 208.° do CPI, que excluem a aplicação da regra do esgotamento do direito da marca nos casos em que o estado dos produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no mercado.
  14 O sublinhado é nosso.
  15 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 619 e 620.
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Processo n.º 18/2004

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Processo n.º 18/2004