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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso extraordinário de fixação de jurisprudência
N.° 29 / 2004

Recorrente: A







1. Relatório
O arguido A vem interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência por considerar que o acórdão ora recorrido do Tribunal de Segunda Instância proferido em 12 de Fevereiro de 2004 no processo de recurso penal n.° 300/2003 está em oposição com outro acórdão do mesmo Tribunal de 25 de Setembro de 2003 proferido noutro processo de recurso penal n.° 1/2003.
O ora arguido recorrente foi condenado por acórdão do Tribunal Judicial de Base no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-048-01-3 pela prática de cada um dos dois crimes de ofensa grave à integridade física por negligência previsto e punido pelo art.° 142.°, n.° 3 e 1 do Código Penal na pena de um ano e seis meses de prisão e de duas contravenções estradais nas penas de multa convertível em prisão. Em cúmulo, foi condenado na pena de um ano e dez meses de prisão e multa de duas mil oitocentas patacas, convertível em dezoito dias de prisão caso não for paga nem substituída por trabalho.
Inconformado com essa decisão condenatória, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por acórdão deste tribunal proferido em 12 de Fevereiro de 2004, acórdão ora recorrido no presente recurso extraordinário, foi negado provimento ao recurso.

Vem agora o recorrente interpor o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, apresentando as seguintes conclusões:
   “1. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 25 de Setembro de 2003, no processo n.º 1/2003, decidiram em sentido contrário, relativamente à mesma questão de direito, sendo certo que o Tribunal de Última Instância, até ao momento, não fixou jurisprudência sobre a questão em foco;
   2. Está em causa a aplicação, ou não, do art.º 48.º do Código Penal a crimes negligentes de ofensas corporais praticados durante a condução automóvel.
   3. O acórdão fundamento decidiu que, embora a conduta do arguido fosse grave e irresponsável, que o mesmo se mostrou insensível pela sua conduta e pelo resultado por ela causado, não tivesse confessado os factos e não se tivesse mostrado arrependido, uma vez que se tratava de um crime negligente, não se afigurava repugnável suspender a execução da pena de prisão;
   4. Ao invés, acórdão recorrido, decidiu, unicamente em face da não confissão dos factos e da falta de arrependimento por parte do arguido e das circunstâncias dos dois crimes de ofensa grave à integridade física por negligência, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a nível de prevenção especial na vertente da intimidação individual e também da prevenção geral na vertente da integração e não suspenderam a pena de prisão aplicada ao arguido;
   5. O acórdão recorrido não tomou em consideração qualquer dos pareceres lavrados pelos Dignos Representantes do Ministério Público, não tomou em consideração a conduta irrepreensível do arguido em termos processuais traduzida no cumprimento de todas as medidas de coação que lhe foram impostas e na vinda de Portugal especialmente para estar presente na audiência de discussão e julgamento do seu processo, e nem sequer tomou em consideração a prognose favorável do seu comportamento.
   6. Estas decisões contraditórias foram proferidas no domínio da mesma legislação penal.
   7. O acórdão recorrido já transitou em julgado, sendo insusceptível de recurso ordinário, atento o disposto no art.º 390.º, n.º 1, al. d) do C.P.P.;
   8. O acórdão fundamento é anterior ao recorrido e já transitou, também, em julgado;
   9. Deve, por tudo o exposto, decidir-se que, a existência de não confissão dos factos e a falta de arrependimento, por parte do arguido, não impede, por si só, a suspensão da pena de prisão, em virtude de, apenas por estes factos não ser de concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição a nível de prevenção especial na vertente da intimidação individual.
   10. E, que, apenas pela existência dos dois factos acima mencionados, não se pode colocar exigências de prevenção geral que imponham a aplicação de uma pena de prisão efectiva, pois só nos casos de homicídio, acompanhado de circunstâncias gravosas para o agente se pode colocar a questão da prisão efectiva.
   11. Não se deverá deixar de ter em conta que se trata de crimes negligentes e não dolosos.
12. E, por último, deverá tomar-se em consideração os dados disponíveis nos autos sobre a personalidade do arguido os quais apontam, no caso vertente, para uma prognose de personalidade favorável que não carece de socialização.”
Pedindo que seja decidido, em sede de fixação de jurisprudência, de acordo com a solução apontada.


O Ministério Público apresentou a seguinte resposta:
   “1. O recurso para fixação de jurisprudência, de um acórdão do Tribunal de Segunda Instância, pressupõe a existência de oposição desse acórdão com outro do mesmo Tribunal ou do Tribunal de Última Instância, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito (cfr. n.ºs 1 e 2 do art.º 419.º do C. P. Penal).
   É necessário, também, que o acórdão recorrido tenha transitado em julgado e seja insusceptível de recurso ordinário, bem como que a solução nele acolhida não esteja de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância (cfr. cit. n.º 2).
   Exige-se, finalmente, que o acórdão fundamento seja anterior ao recorrido e tenha transitado em julgado (cfr. subsequente n.º 4).
   
   2. E, no caso “sub judice”, não se verifica, a nosso ver, um dos requisitos substanciais do recurso extraordinário em causa.
   Trata-se, concretamente, da oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito.
   Historicamente, no domínio do C. P. Civil de 1876, falava-se, a propósito, de oposição sobre o mesmo ponto de direito (cfr. art.º 1176.º, na redacção do Dec. n.º 21287).
   O C. P. Civil de 1939, sem alterar o seu sentido, substituiu essa locução por questão de direito (cfr. art.º 763.º).
   E, no seio da respectiva Comissão Revisora, controverteu-se a interpretação que deveria ser dada à mesma.
   Ponderou-se, então, igualmente, a hipótese de adoptar uma formulação mais ampla, acabando, no entanto, por ser rejeitada, em substituição da expressão “acórdãos opostos sobre a mesma questão de direito”, uma outra que havia sido proposta: “acórdãos que sancionem princípios jurídicos divergentes” (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, VI, 246).
   Houve, assim, uma opção deliberada no sentido da restrição dos casos de recurso extraordinário.
   E, quando é que se dá a “oposição sobre a mesma questão de direito”?
   De acordo com os ensinamentos do saudoso Mestre, tal oposição ocorre “quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (loc. cit.).
   E não podemos, de facto, deixar de sufragar tal entendimento.
   No C. P. Civil de 1961, bem como no actual, a fórmula utilizada (nos art.ºs 763.º/764.º e 652.º-A, respectivamente) – “mesma questão fundamental de direito” – aponta, essencialmente, no mesmo sentido.
   Na área processual penal, o Código de 1929 consagrou a expressão “mesma matéria de direito” (cfr. art.ºs 668.º e 669.º).
   E a sua interpretação é, também, coincidente.
   Conforme decidiu, uniformemente, na sua vigência, o STJ de Portugal, “só existe oposição susceptível de determinar recurso para o Tribunal Pleno, quando ao mesmo preceito legal forem dadas interpretações diferentes ...” (cfr., por todos, ac. de 19/4/61, Bol. 106/372 – sublinhado acrescentado).
   Com a entrada em vigor do C. P. Penal de 1987 – que o C. P. Penal de Macau seguiu de perto – bem como nas versões posteriores, a Jurisprudência manteve-se, invariavelmente, a mesma.
   Basta atentar, entre outros, nos seguintes arestos do mesmo Tribunal:
   - “Para que exista a oposição a que se refere o art.º 437.º do Código de Processo Penal, é necessário que os acórdãos em confronto assentem, relativamente à mesma questão fundamental de direito, em soluções opostas e no domínio da mesma legislação, sendo ainda necessário que os mesmos preceitos sejam interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos e também que uma das decisões tenha estabelecido por forma expressa doutrina contrária à fixada na outra, não sendo suficiente que numa possa ver-se a aceitação tácita da doutrina contrária à enunciada na outra – a oposição tem de ser expressa, e não apenas tácita” (ac. de 18/9/91, BMJ, 409-664).
   - “Para que se tenha por existente a oposição a que se refere o art.º 437.° do CPP, é necessário que os mesmos dispositivos sejam interpretados e aplicados diversamente a factualidades idênticas, sendo ainda de exigir que uma das decisões tenha estabelecido por forma expressa entendimento contrário ao fixado na outra” (ac. de 6/5/99, proc. n.º 191/99-3ª).
   
   3. Vejamos, então, a hipótese vertente.
   O recorrente alega que, relativamente à mesma questão de direito – suspensão da execução da pena de prisão – “os acórdãos em apreço decidiram em sentido contrário”.
   Labora, todavia, num manifesto equívoco.
   Os acórdãos em confronto, na realidade, apreciaram a norma do art.º 48.º do C. Penal de modo convergente.
   Em ambos, com efeito, se interpretaram, da mesma forma, os respectivos requisitos.
   O acórdão fundamento, entretanto, decidiu que se verificava, no caso, o pressuposto material exigido no n.º 1 da mencionada norma.
   No acórdão recorrido, por seu turno, entendeu-se que não estava preenchido, na hipótese, esse pressuposto.
   Trata-se, assim, de uma dissonância que em nada contende com a dilucidação da pena de substituição em questão.
   É óbvio, em suma, que o recorrente inscreve a sua pretensão no âmbito da matéria de facto.
   E a oposição relevante só existiria, conforme se sublinhou, se os acórdãos em foco tivessem outorgado sentidos diferentes à mesma disposição legal.
   
4. Deve, pelo exposto, na conferência a que se refere o art.º 423.º do C. P. Penal, ser rejeitado o recurso em análise.”

   Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta.

   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   O fundamento do recurso de fixação de jurisprudência, como um recurso extraordinário, está previsto no art.° 419.° do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999 com a rectificação publicada no Boletim Oficial da RAEM de 24 de Janeiro de 2000:
   “1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
   2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
   3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
   4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”
   
   As condições cumulativas de admissibilidade e prosseguimento do recurso são:
   1. Dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas (art.° 419.°, n.° 1 do CPP);
   2. No domínio da mesma legislação (art.° 419.°, n.°s 1 e 3 do CPP);
   3. O acórdão fundamento foi proferido antes do acórdão recorrido e transitou em julgado (art.° 419.°, n.°s 1 e 4 do CPP);
   4. Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário (art.° 419.°, n.° 2 do CPP);
   5. A orientação perfilhada no acórdão recorrido não está de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância (art.° 419.°, n.° 2 do CPP).
   
   Estão em causa dois acórdãos do mesmo Tribunal de Segunda Instância. O acórdão fundamento, do processo n.° 1/2003, foi proferido em 25 de Setembro de 2003, anterior ao acórdão ora recorrido, e já transitou em julgado (fls. 13).
   Em relação ao acórdão recorrido do processo n.° 300/2003, não é admissível recurso ordinário face à moldura penal dos crimes cometidos nos termos do art.° 390.°, n.° 1, al. f) do CPP na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999.
   Está-se perante a mesma questão de direito, isto é, a suspensão da execução da pena de prisão no caso de crimes negligentes, no domínio do mesmo Código Penal.
   Inexiste jurisprudência fixada sobre a questão em causa.
   
   Resta apreciar se existe mesmo oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.
   Só há oposição de acórdãos quando estes assentem em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.
   A mesma questão de direito “deve considerar-se como verificado quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, seja idêntico. Com o esclarecimento de que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica devem ser coincidentes num e noutro caso, pouco importando que sejam diferentes os elementos acessórios da relação.
   Do que resulta que o conflito jurisprudencial se verifica quando os mesmos preceitos são interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos.”1
   Em nome da igualdade dos cidadãos perante a lei, a situação idêntica deve ter o mesmo tratamento jurídico.
   
   No acórdão fundamento, está em causa o crime de homicídio por negligência simples cometido pelo arguido na condução de automóvel ligeiro. O Tribunal de Segunda Instância, ao atender à natureza do crime, entendeu que não se mostrava tão evidente a censurabilidade da conduta do arguido e a exigência da punição que obstariam a suspensão da execução da pena de prisão.
   E ainda considerou a repartição da culpa entre o arguido e a vítima, a reduzida gravidade da ilicitude e o grau de culpa, a falta de prova de que o arguido estava a conduzir sob influência de álcool, embora não confessou nem se mostrou arrependido, concluindo ser adequada e suficiente a suspensão da pena de prisão para a realização da finalidade da punição.
   
   No acórdão ora recorrido, o mesmo Tribunal atendeu a não confissão dos factos praticados pelo arguido, a falta de arrependimento e as circunstâncias dos dois crimes de ofensa grave à integridade física por negligência, com consequências muito graves para os dois ofendidos.
   Representou como indevida a suspensão da pena de prisão, por ser de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, quer no plano de prevenção especial na vertente de intimidação individual, quer a nível de prevenção geral na vertente de integração.
   
   Da análise dos dois acórdãos em comparação, ressalta logo que o Tribunal de Segunda Instância, nesses dois arrestos, sempre aplicou o disposto no art.° 48.°, n.° 1 do CP, norma reguladora da suspensão da pena de prisão, de modo convergente.
   O que se difere são as circunstâncias dos dois processos que justifica soluções também diferentes.
   Por isso, não estamos com dois acórdãos com soluções opostas.
   Ao contrário do entendimento do recorrente, a falta de confissão e do arrependimento não foi elemento decisivo, nos dois acórdãos, para a concessão ou não da suspensão da execução da pena de prisão.
   Também é desprovido de fundamento ao afirmar que só nos casos de homicídio com circunstâncias gravosas para o arguido se pode colocar a questão de prisão efectiva.
   
   É certo que está-se perante igualmente crimes negligentes cometidos na condução de automóvel. No entanto, num caso, mesmo com o crime de homicídio por negligência simples, atendendo a reduzida ilicitude e o grau de culpa, a repartição da culpa entre o arguido e a vítima, o tribunal decidiu suspender a execução da pena de prisão. Noutro, o tribunal decidiu o contrário face à prática de dois crimes de ofensa grave à integridade física por negligência e valorou a conduta do arguido posterior aos crimes e as circunstâncias destes, nomeadamente as consequências muito graves para os dois ofendidos.
   Portanto, o Tribunal de Segunda Instância apreciou a questão de suspensão da execução da pena de prisão perante dois quadros de factos diferentes, não se pode concluir que o tribunal, nestes dois acórdãos, decidiu opostamente sobre a mesma questão de direito.
   Em conclusão, não há oposição de acórdãos quando o tribunal decidiu suspender a execução da pena de prisão num destes e o contrário noutro se os quadros dos factos dos dois, fundamento das decisões, são diferentes.
   Nos termos do art.° 423.°, n.° 1 do CPP, na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999, o presente recurso deve ser rejeitado pela não oposição de julgados.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 4 UC (duas mil patacas).
   
   
   
   Aos 20 de Outubro de 2004.


           Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., Almedina, 2003, p. 271.
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Processo n.° 29 / 2004 14