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Processo n.º 39/2004. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Secretário para a Segurança.
Recorrido: A.
Assunto: Procedimento administrativo. Audiência dos interessados. Imigração clandestina.
Data da Sessão: 10 de Novembro de 2004.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
No procedimento de expulsão de indivíduos em situação de clandestinidade, regulado pela Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio, não havia lugar à audiência dos interessados prevista nos arts. 93.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo (CPA), por se tratar de decisão urgente (art. 96.º, alínea a) do CPA), em virtude de, entre a detenção e a apresentação da proposta para decisão, não poder decorrer um período superior a 48 horas (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 2/90/M).
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 12 de Agosto de 2003, que manteve, em recurso hierárquico, o despacho do Comandante Substituto da Polícia de Segurança Púbica (PSP), que o expulsou de Macau e interditou a sua entrada na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) pelo período de 2 anos.
Por acórdão de 27 de Maio de 2004, do Tribunal de Segunda Instância, (TSI) foi concedido provimento ao recurso e anulado o acto impugnado, por falta de audiência do interessado no procedimento administrativo.
Inconformado interpõe o Secretário para a Segurança o presente recurso jurisdicional, terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1 - O Tribunal de Segunda Instância anulou o acto administrativo recorrido (expulsão e interdição de entrada) considerando-o ferido do vício de forma por omissão da audiência do interessado antes de tomada a decisão final.
2 - Designadamente considerando que o acto em causa embora qualificável como medida de polícia é um acto administrativo sujeito à audiência prévia prevista no art.º 93.º do CPA, se não ocorrerem as situações previstas nos artigos art.os 96.º e 97.º do mesmo código.
3 - Considerando seguidamente o TSI que a integração das normas dos art.os 96.º e 97.º do CPA, quanto à urgência e ao prejuízo da audiência para a execução ou utilidade da decisão devem ser concretamente avaliadas em face das circunstâncias do caso e por referência à preservação da ordem e segurança públicas que podem ser postas em perigo com a entrada e permanência de indesejáveis.
4 - O TSI, na argumentação que expende, tem em mente quase exclusivamente a interdição de entrada, quando o que em primeira linha está em causa é a expulsão, embora secundada pela interdição de entrada como sua consequência necessária.
5 - A interdição de entrada é imperativamente prevista pela lei, quando precedida de expulsão, não constituindo um acto discricionário e por isso não se procedendo a qualquer avaliação de quaisquer circunstâncias ou interesses.
6 - O que está fundamentalmente em causa na decisão impugnada é a expulsão e esta é, nos termos da Lei n.º 2/90/M, imperativamente determinada ante a verificação de circunstâncias extremamente objectivas, sem margem para qualquer valoração.
7 - O processo de expulsão é sempre instruído em presença do visado, o qual é sempre ouvido antes de tomada a decisão final, o que constitui uma verdadeira audiência e permite a reparação de qualquer erro que possa ter ocorrido.
8 - A expulsão, com os contornos que assume no ordenamento jurídico de Macau, não pode conter-se na norma do art.º 93.º do CPA, ou se sim, não pode deixar de ser vista como excepção enquadrável nas alíneas a) e b) do art.º 96.º do mesmo código.
9 - Os objectivos da expulsão não são conciliáveis com o mecanismo da audiência prévia.
10 - O objectivo primeiro da expulsão é a reacção, imediata, contra a quebra da inviolabilidade do espaço da RAEM.
11 - Reacção essa que totalmente se frustra e perde sentido se o seu imediatismo for afastado pela interposição de um prazo mínimo de 10 dias para um segunda audiência do visado.
12 - São inquestionáveis o carácter de urgência do acto de expulsão, e o prejuízo para a sua execução ou utilidade que pode ser ocasionado pela realização da audiência nos termos prescritos no CPA, porquanto a mesma deve, por regra, integrar as normas de excepção das alíneas a) e b) do art.º 96.º do mesmo código.
13 - O douto Acórdão recorrido interpretou incorrectamente a natureza do acto administrativo em causa, e por via disso, não o excluiu da previsão do art.º 93.º do CPA ou não o subsumiu às alíneas a) e b) do art.º 96.º do mesmo código, como devia, sendo, por isso, anulável.

A Exm.ª Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“A questão suscitada no presente recurso prende-se com a existência, ou não, do vício de forma por preterição da audiência prévia do interessado antes de tomada a decisão em causa.
Por despacho do Senhor Secretário para a Segurança, proferido em 12-8-2003, foi mantida a decisão tomada pelo Senhor Comandante substituto do CPSP que interditou a entrada em Macau do ora recorrido A pelo período de 2 anos.
Nota-se que tal decisão foi tomada sem prévia audição do recorrido.
Como se sabe, nos termos do art° 93° do Código do Procedimento Administrativo, os interessados têm o direito de ser ouvidos antes de ser tomada a decisão final, com as excepções previstas nos art°s 96° e 97° do mesmo diploma.
E ao abrigo do disposto nas al.s a) e b) do referido art° 96°, não há lugar a audiência dos interessados "quando a decisão seja urgente" ou "quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão".
Conforme escrevem os Drs. Lino Ribeiro e Cândido de Pinho no seu Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, pág. 497, "as razões de urgência são compreensíveis, mas não podem confundir-se com preocupações de celeridade. Quer dizer, não será a mera vontade de rapidamente pôr fim ao procedimento que preencherá esta previsão legal, mas será a circunstância concreta e objectiva que ditará a omissão. O factor tempo aparece-nos aqui como imprescindível e inexorável. Um perigo sério de fuga imediata ou o risco iminente da queda de um prédio são exemplos que justifiquem a não realização da audiência.
No que tange ao segundo dos factores, ele assenta uma vez mais em elementos circunstanciais que, a verificarem-se com alguma previsibilidade, podem tornar a decisão final de escassa utilidade ou difícil a sua execução."
E "só o caso concreto com todos os elementos em presença fornecerão a '. matéria subsumível aos conceitos" incluídos nas alíneas do art° 96°.
E este Alto Tribunal também entendeu que "a urgência e o prejuízo da audiência para a execução ou utilidade da decisão devem ser avaliadas em conjunto com as circunstâncias concretas". (Ac. do TUI, de 18-2-2004, proc. n° 13/2003)
Daí que há de ponderar todos os elementos constantes no caso concreto em apreciação para ver se está verificada alguma das situações acima referidas.
A proibição de entrada do ora recorrido em Macau foi determinada no âmbito da Lei n° 2/90/M.
Como é sabido, devem ser expulsos todos os indivíduos que se encontrarem em Macau em situação de clandestinidade, aos quais é emitida ordem de expulsão, referida no art° 4º da Lei n° 2/90/M, cujo n° 2 prevê que "a ordem de expulsão deve indicar o prazo para a sua execução, o período durante o qual o indivíduo fica interditado de reentrar no Território e o seu local de destino".
Para efeitos de expulsão, os indivíduos em situação de clandestinidade devem ser detidos por qualquer agente de autoridade e entregues à PSP, que elaborará o processo de expulsão e a respectiva proposta dentro do prazo de 48 horas a partir do momento da detenção (art° 3º da Lei n° 2/90/M).
Daí que, é por imposição da lei que a Administração deve emitir, aos indivíduos em situação de clandestinidade, as ordens de expulsão, proibindo a sua reentrada em Macau durante um certo período do tempo. Tratando-se das medidas de polícia, a expulsão e a respectiva proibição de entrada visam "intervir no exercício de actividades individuais susceptíveis de fazerem perigar interesses gerais, mais concretamente, a manutenção de da ordem pública e segurança do Território, que podem ser postas em perigo com a entrada de não residentes e a sua permanência nele". (cfr. Ac. do antigo TSJM, de 20-10-1999, de 10-11-1999 e de 3-12-1999, Proc. n 1135, 1186 e 1208)
Por outro lado, a lei estabelece um procedimento próprio para o processo de expulsão, segundo o qual a ordem de expulsão deve ser executada num curto período do tempo.
Acresce que a detenção efectuada pela Polícia de qualquer indivíduo deve obedecer à regra geral de não poder ultrapassar o prazo de 48 horas.
E a fixação do período durante o qual o indivíduo expulso fica interditado de reentrar em Macau é um dos elementos essenciais que deve conter a ordem de expulsão, o que significa que aquele prazo também deve ser fixado num curto tempo.
Por isso, é impossível, na prática, conceder um prazo de 10 dias, no mínimo (art° 94º do CPA), para proceder à audiência prévia do visado antes de tomar decisão sobre o prazo de interdição.
Tal como foi frisado pela entidade recorrente, "não há conciliação possível entre, designadamente, os objectivos naturais da expulsão e a lógica de funcionamento, especialmente temporal, da audiência prévia".
E não faria sentido permitir a estadia em Macau e durante aquele período de um imigrante ilegal que deve ser expulso, só para efeitos de garantir a sua audição prévia.
Tendo em consideração que o acto administrativo posto em crise visa não só proibir a entrada em Macau de um indivíduo que se encontra em Macau em situação de clandestinidade mas também a sua expulsão, que deve ser executada num curto período do tempo, parece-nos que se pode concluir pela natureza urgente da decisão tomada pela Administração, não resultante da vontade de celeridade da Administração, mas sim da imposição legal, bem como a previsibilidade razoável de que a prévia audiência do ora recorrido poderá comprometer a execução da ordem de expulsão.
Admite-se que a não audiência do recorrido pode prejudicar os seus interesses particulares, diminuindo-lhes as hipóteses de defesa. Porém, não deixa de poder recorrer a todo o mecanismo de impugnação hierárquica e contenciosa para defender-se.
Assim sendo, face ao tipo e aos efeitos que o acto administrativo em causa visa produzir e considerando os interesses que estão em jogo, parece-nos que se está perante as situações previstas nas al.s a) e b) do artº 96º do CPA, pelo que não há lugar à prévia audiência do recorrido.
Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto merece provimento”.

II – Os factos
O acórdão recorrido considerou assentes os seguintes factos (embora com outra sequência):
A) A, cidadão da República Popular da China, foi detido, em Macau, a 28 de Junho de 2003, por não possuir documento legalmente exigido para estar autorizado a permanecer ou residir na RAEM;
B) Organizado processo de expulsão, o A não foi ouvido nos termos do art. 93.º do Código do Procedimento Administrativo, tendo o Comandante substituto da PSP, proferido, em 30 de Junho de 2003 o seguinte despacho:
"ASSUNTO: Expulsão de Imigrante Ilegal
Ref. A
1. O cidadão da República Popular da China, de nome A, foi interceptado no dia 27 de Junho por elementos da Polícia Judiciária, e apresentou como documento de identificação o Salvo-Conduto n.º X XXXXXXXX, utilizando o nome B ou B1,
2. documento e identificação que já tinha utilizado quando passou para a RPC, dias antes a 22 de Junho;
3. Posteriormente, interceptado de novo por aquela polícia, apresentou o passaporte n.º XX XXXXXXX, sem estar acompanhado dos respectivos carimbos ou talões de embarque que demonstrassem a sua situação na Região e a regularidade da sua saída da RPC,
4. pelo que não tendo assim documento legalmente exigido para poder permanecer em Macau, resulta a sua situação em clandestinidade;
5. Assim, por força das funções especificas da PSP, e das atribuições constantes no Regulamento Administrativo n.º 22/2001, de 22 de Outubro, sempre que hajam elementos probatórios que determinado indivíduo se enquadra na tipologia da alínea b), do n.º 1, do artigo 1.º, da Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio, como é o presente caso, fundamentam a sua expulsão, o que determino, e que deve ser executada nos termos do mesmo diploma - artigo 4.º pelo órgão competente, de acordo com o Despacho n.º 62/CPSP/2001, de 12 de Maio, ficando interdito de reentrar em Macau pelo prazo de 2 (dois) anos.
CPSP, 30 de Junho de 2003
O Comandante Subst.,
Lei Siu Peng
Superintendente";
C) O referido A veio recorrer do despacho referido na alínea B) para o Secretário para a Segurança;
D) Sobre o requerimento de interposição de recurso foi emitida a seguinte informação:
"Assunto: Recurso Hierárquico
Acto Impugnado: Despacho do Comandante Substituto da PSP, de 30 de Junho, referente à expulsão de A para a RPC.
Recorrente: A
Enquadramento legislativo: Informação elaborada nos termos do artigo 159.º, do CPA.
O cidadão de nacionalidade chinesa A, vem recorrer da decisão de expulsão, e a consequente interdição de entrada na RAEM, pelo período de 2 anos, que lhe foi imposta através do despacho de 30 de Junho, de 2003, expondo em síntese as seguintes razões:
- Que não é verdade que o recorrente não possuia documento legalmente exigido para permanecer em Macau e, portanto, não estava em situação de clandestinidade, pois tinha na sua posse o Passaporte n.º X XXXXXXXX, documento de viagem genuíno e válido;
- Que não foi dada ao recorrente a faculdade de se explicitar o que afigura o desrespeito ao direito de audiência prévia ao interessado previsto no CPA;
- E portanto, a situação fáctica é destinta da prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 1.º da Lei n.° 2/90/M, de 3 de Maio;
- E que, mesmo admitindo que a norma legal invocada é correcta, a interdição de reentrada por 2 anos, peca por severidade em demasia e, por isso, violou o princípio da proporcionalidade em vigor no CPA;
- Acabando por pedir,
- a suspensão da eficácia do acto durante a pendência do processo porque não vislumbra grave e irreparável dano para o interesse público, e
- que seja dado provimento ao recurso ou, alternativamente, que seja reduzido o prazo de interdição para 1 ano.
*
Vejamos se o recorrente tem razão e em que medida.
FACTOS
1. O recorrente foi interceptado por agentes da PJ, no dia 27 de Junho passado, e identificou-se como sendo B ou B1, tendo apresentado o Salvo-Conduto n.° X XXXXXXXX,
2. documento e identificação que utilizou, quando dias antes a 22 de Junho passara para a RPC;
3. Dias depois o recorrente voltou a ser interceptado pela PJ, e exibiu o Passaporte n.º XX XXXXXXX,
4. que não estava acompanhado dos devidos carimbos ou talões de embarque que demonstrassem a regularidade da sua situação na RAEM e a sua saída da RPC;
5. Desse uso da dualidade de identificações e respectivos documentos que as suportam, segundo impulso da PJ, corre junto das autoridades judiciais as competentes investigações e eventual prossecução criminal;
TERMOS DO DESPACHO RECORRIDO
6. Porém, sendo o fundamento da decisão o disposto na Lei n.° 2/90/M, de 3 de Maio, vejamos porque a situação do recorrente infringe as regras do diploma, e se a reacção administrativa igualmente nele se enquadra;
7. Retira-se do despacho, que o recorrente quando entrou em Macau utilizou o documento anteriormente referido, (cujos contornos criminais estão á ser investigados e apurados, mas não foram o pressuposto da decisão),
8. e quando foi interceptado pela segunda vez pela Polícia Judiciária, apresentou o Passaporte n.º XX XXXXXXX, com a identificação A;
9. Identificação e documentos esses, que o recorrente afirma na sua petição serem os correspondentes à sua pessoa e que são válidos e genuínos;
10. Ora, o órgão recorrido tomou justamente a decisão em relação a esse documento, Passaporte n.° XX XXXXXXX, donde se verifica, então, o seguinte:
11. O titular não utilizou o referido documento e a sua correcta identificação para processar a sua entrada na RAEM;
12. Não existe por isso, nenhum registo da sua entrada nem nenhum duplicado de qualquer talão que comprove a passagem;
13. Nem o recorrente possui, no caso de utilização deste documento de viagem, garantia de entrada em terceiro país, pois os nacionais da RPC, titulares de passaporte e que o utilizem, passam na RAEM simplesmente em trânsito para terceiro país, pois nos outros casos, terão de ser possuidores de salvo-conduto apropriado,
14. pelo que, além de não ter entrado oficial e qualificadamente pelos postos fronteiriços da RAEM (com o referido documento), encontra-se em situação de clandestinidade também, por não ter documento legalmente exigível para a sua permanência em Macau, sendo que documento, aqui, se refere igualmente aos vistos, autorizações específicas (casos de salvos-condutos, visas, talões de embarque, etc.), que acompanham os documentos de viagem e demonstram a regularização da estadia;
15. E, se é assim, o diploma legal em que se enquadrou a decisão estabelece que: a) os indivíduos em situação de clandestinidade devem ser expulsos da Região, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que incorram; b) que qualquer indivíduo que seja encontrado em situação de clandestinidade deve ser detido por qualquer agente de autoridade e entregue à PSP; c) que a PSP, elaborá o respectivo processo e apresentará para decisão; d) que compete ao Chefe do Executivo (ou ao órgão delegado) a expulsão dos indivíduos em situação de clandestinidade; e) que a ordem de expulsão deve indicar o prazo para a sua execução, o período durante o qual o indivíduo fica interditado de reentrar na Região e o seu local de destino, e f) compete à PSP executar a ordem de expulsão (artigos 1.º a 4.º, da Lei n.º 2/90/M).
16. Assim, individualizada a violação ao diploma da Imigração Clandestina (Lei n.º 2/90/M), e tomadas as medidas estabelecidas na lei, que são por isso as necessárias e proporcionais, a qual, por não padecer de nenhum vício que possa levar à sua anulação, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se integralmente o acto recorrido.
Por outro lado, por o órgão recorrido considerar que a não continuidade da execução do acto causa grave prejuízo ao interesse público, não é concedida a suspensão da sua eficácia.
CPSP, aos 5 de Agosto de 2003
O Comandante Subst.,
Assin..."
E) Em 12 de Agosto de 2003, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho:
"Concordo com a análise e conclusões constantes da informação de fls. produzida pelo Cmdt. substituto do CPSP, que aqui dou por reproduzida.
Acresce àquela análise que a não inclusão da factualidade do caso "sub judice" na previsão do artigo 93.º do CPA, se deve ao facto de medida administrativa em causa configurar um acto de natureza policial/secuitária, cujos fins (preservação da segurança pública) desaconselham e explicam o desenquadramento da mesma norma, pelo não há, assim, lugar à audiência prévia do interessado.
Porquanto, por considerar que o acto do Cmdt. substituto do CPSP que interditou a entrada de A pelo período de 2 anos, não padece de qualquer vício, decido mantê-lo integralmente, negando provimento ao presente recurso.
Notifique.
Gabinete do Secretario para Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 12 de Agosto de 2003.
O Secretário para Segurança
Cheong Kuoc Vá. "
Este é o acto recorrido.

III – O Direito

1. A questão a apreciar
A questão a resolver é a de saber se o interessado devia ter sido ouvido, nos termos do art. 93.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), antes de proferido o despacho de expulsão de Macau e de proibição de reentrada na RAEM.

2. O direito à audiência do interessado no procedimento administrativo
O acórdão recorrido anulou o acto administrativo por ter sido violado o direito à audiência prévia do interessado, no decurso do procedimento administrativo de expulsão de Macau.
Vejamos, pois, como está regulada a audiência dos interessados no procedimento administrativo.
O direito de audiência dos interessados está previsto nos arts. 93.º a 98.º do CPA, tendo a sua previsão obedecido a preocupações garantísticas, com a vista a permitir o exercício do contraditório, antes da decisão final.
Dispõe o art. 93.º, n.º 1, do CPA que, “concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta”.
A audiência do interessado pode ter lugar por escrito ou oralmente, cabendo a escolha da modalidade ao órgão instrutor (n.º 2 do art. 93.º do CPA).
Quando o órgão instrutor optar pela audiência escrita, notifica os interessados para, em prazo não inferior a dez dias, dizerem o que se lhes oferecer (n.º 1 do art. 94.º do CPA).
Se o órgão instrutor optar pela audiência oral, ordena a convocação dos interessados com a antecedência de, pelo menos, oito dias (n.º 1 do art. 95.º do CPA).
Há, porém, casos em que não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada (art. 96.º do CPA).
Há, por outro lugar, casos em que o órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados (art. 97.º do CPA).

3. A proibição de entrada na RAEM de não-residentes, com fundamento na alínea b) do n.º 2 do art. 14.º do Decreto-Lei n.º 55/95/M e a expulsão de imigrantes clandestinos, com a consequente fixação de período de interdição de reentrada em Macau, regulada na Lei n.º 2/90/M.
Como se disse, o acórdão recorrido anulou o acto administrativo por ter sido violado o direito à audiência do interessado, no decurso do procedimento administrativo de expulsão de Macau. Para tal, invocou um acórdão deste Tribunal de Última Instância, de 18 de Fevereiro de 2004, no Processo n.º 13/2003, em que se entendeu que no procedimento que culmina com a decisão de proibição de entrada em Macau deve, em princípio, ser ouvido o interessado, se não ocorrerem as situações previstas nos arts. 96.º e 97.º do CPA.
Cremos, no entanto, que a doutrina enunciada no referido acórdão não é aplicável ao caso dos autos.
Na verdade, na situação decidida pelo acórdão de 18 de Fevereiro de 2004, estava em causa uma decisão de proibição de entrada na RAEM de um residente de Hong Kong, com fundamento na alínea b) do n.º 2 do art. 14.º do Decreto-Lei n.º 55/95/M, de 31 de Outubro, diploma este já revogado, e que regulava a entrada, permanência e fixação de residência em Macau.
O mencionado fundamento da decisão de proibição de entrada na RAEM baseava-se em condenação em pena privativa de liberdade de duração não inferior a 1 ano.
Em tal caso era conhecida no procedimento administrativo a residência do interessado em Hong Kong e, por isso, se entendeu que nada obstava a que a Administração tivesse ouvido aquele antes de ser proferida decisão final. Considerou-se que não se aplicava o art. 96.º do CPA, que trata da inexistência da audiência dos interessados, porque a decisão não era urgente, nem a diligência poderia comprometer a execução ou a utilidade da decisão, nem era grande o número de interessados (apenas um estava em causa), nem tinha aplicação o art. 97.º do CPA, que se refere à dispensa de audiência.
Pois bem, o caso dos autos é completamente diferente. Trata-se da expulsão de um indivíduo em situação de clandestinidade, com a consequente fixação de período de interdição de reentrada em Macau, situação regulada, ao tempo, pela Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio, entretanto, também revogada.
No recente acórdão de 6 de Outubro de 2004, no Processo n.º 17/2004, tivemos oportunidade de descrever o processo de expulsão dos indivíduos em situação de clandestinidade.
Aí se disse o seguinte:
“2. A Lei n.º 2/90/M, alterada pelos Decretos-Lei n. os 39/92/M, de 20 de Julho e 11//96/M, de 12 de Fevereiro e pela Lei n.º 8/97/M, de 4 de Agosto, veio regular várias situações relacionadas com a imigração clandestina.
O art. 1.º da Lei n.º 2/90/M estabelece quem é considerado em situação de clandestinidade em Macau:
1 “Artigo 1.º
(Clandestinidade)
1. Os indivíduos que não estejam autorizados a permanecer ou residir no território de Macau, são considerados em situação de clandestinidade, quando nele tenham entrado em qualquer das seguintes circunstâncias:
a) Fora dos postos de migração oficialmente qualificados;
b) Sem serem titulares de qualquer dos documentos legalmente exigidos;
c) Durante o período de interdição determinado na ordem de expulsão prevista na presente lei.
   2. Consideram-se ainda em situação de clandestinidade os indivíduos que permaneçam no Território para além dos prazos legalmente estabelecidos”.

O art. 2.º determina a expulsão da Região dos indivíduos em situação de clandestinidade:
2 “Artigo 2.º
(Expulsão)
Os indivíduos em situação de clandestinidade devem ser expulsos do Território, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que incorram e das demais sanções previstas na lei”.

O art. 3.º prevê a detenção dos clandestinos e a elaboração do processo de expulsão:
3 “Artigo 3.º
(Detenção e proposta de expulsão)
1. Os indivíduos que sejam encontrados em situação de clandestinidade devem ser detidos por qualquer agente de autoridade e entregues à Policia de Segurança Pública.
2. A Polícia de Segurança Pública elaborará o processo de expulsão e a respectiva proposta, que apresentará a decisão do Governador, no prazo de quarenta e oito horas contado a partir do momento da detenção”.

O art. 4.º prevê a competência para a ordem de expulsão dos clandestinos e para a sua execução, sendo que o n.º 2 especifica o conteúdo da ordem de expulsão:
4 “Artigo 4.º
(Ordem de expulsão)
1. Compete ao Governador ordenar a expulsão dos indivíduos em situação de clandestinidade.
2. A ordem de expulsão deve indicar o prazo para a sua execução, o período durante o qual o indivíduo fica interditado de reentrar no Território e o seu local de destino.
3. Na fixação dos prazos previstos no número anterior devem ser considerados os prazos de procedimento processual, designadamente para os efeitos do artigo 2.º da Lei n.º 8/97/M , de 4 de Agosto.
4. Compete à Polícia de Segurança Pública executar a ordem de expulsão.”

4. O caso dos autos
Pois bem, no caso da expulsão dos clandestinos, entre o momento da detenção dos indivíduos e o da apresentação da proposta para decisão, não se pode exceder o prazo de 48 horas (n.º 2 do art. 3.º da Lei n.º 2/90/M).
Ora, como vimos atrás, nas normas gerais sobre o procedimento administrativo, se o órgão instrutor optar pela audiência escrita, os interessados não podem ter, para o efeito, um prazo inferior a 10 dias (n.º 1 do art. 94.º do CPA).
Se o órgão instrutor optar pela audiência oral, os interessados têm de ser notificados com a antecedência de, pelo menos, 8 dias (n.º 1 do art. 95.º do CPA).
Quer isto dizer que no caso dos autos não podia haver lugar a audiência dos interessados porque a decisão era urgente (art. 96.º, alínea a) do CPA), incompatível com o cumprimento dos prazos previstos para a audiência escrita ou oral dos interessados.
É certo que a lei poderia ter previsto uma audiência muito célere - compatível com o período máximo de 48 horas de duração do procedimento administrativo - para casos como o dos autos, mas o certo é que não o fez.
Entretanto, entrou em vigor a Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, lei que regula a imigração ilegal e a expulsão de não-residentes, que revogou expressamente, no seu art. 29.º, a Lei n.º 2/90/M. Agora a detenção das pessoas detectadas em situação de imigração ilegal pode prolongar-se por período até 60 dias (art. 4,º, n. os 2, 3 e 4 da Lei n.º 6/2004).
Evidentemente que este diploma legal não se aplicava ao caso dos autos e não cabe, por isso, neste momento, pronunciarmo-nos sobre se a nossa decisão seria a mesma se o caso fosse regido pela Lei n.º 6/2004.
Em resumo, no caso versado no acórdão deste Tribunal de Última Instância, de 18 de Fevereiro de 2004, no Processo n.º 13/2003, embora estivesse em causa um acto administrativo de proibição de entrada na RAEM, a situação era regida pelo art. 14.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 55/95/M e fundamentava-se na condenação do interessado em pena privativa de liberdade de duração não inferior a 1 ano. Entendeu-se que a Administração podia e devia ter ouvido previamente o interessado antes de tomar a decisão final, porque esta não era urgente de modo a inviabilizar a audiência.
Já no caso dos autos tal audiência não era possível visto que esta necessita, de acordo com o CPA, no mínimo, de um prazo de 8 dias, o que não é possível no procedimento de expulsão de clandestinos, regulado na Lei n.º 2/90/M, que impõe que, entre o momento da detenção e o da conclusão do processo para a decisão final, não decorram mais de 48 horas.
Em conclusão, o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação do art. 96.º, alínea a) do CPA e do art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 2/90/M.

IV - Decisão
Face ao expendido, julgam procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido.
Deve o Tribunal de Segunda Instância conhecer dos restantes fundamentos do recurso contencioso, se nada obstar a tal.
Sem custas.

Macau, 10 de Novembro de 2004

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

Fui presente:
Song Man Lei
1 Redacção original.
2 Redacção original.
3 Redacção original.
4 Os n. os 1 e 2 têm a redacção original. O n.º 3 foi introduzido pela Lei n.º 8/97/M, que passou o n.º 3 da redacção original a n.º 4.
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1
Processo n.º 39/2004

26
Processo n.º 39/2004