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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 6 / 2004

Recorrente: A







1. Relatório
Em 11 de Novembro de 2002, o arguido A, ora recorrente, para além dos outros dois arguidos, foi condenado no Tribunal Judicial de Base, no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-106-01-6, pela prática de:
- Um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 5 anos de prisão e multa de 5000 patacas, com alternativa de 33 dias de prisão;
- Um crime de detenção indevida de utensilagem previsto e punido pelo art.° 12.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 3 meses de prisão;
- Um crime de consumo de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 23.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 1 mês de prisão.
Em cúmulo, foi condenado na pena única de 5 anos e 2 meses de prisão e na multa de 5000 patacas, com alternativa de 33 dias de prisão.

Interposto recurso deste acórdão, foi determinado pelo Tribunal de Segunda Instância, por seu acórdão de 3 de Abril de 2003 proferido no processo n.° 12/2003, o reenvio do processo à primeira instância para realizar novo julgamento com o objectivo de apurar as quantidades de drogas destinadas ao seu próprio consumo e a proporcionar a terceiros e proferir nova decisão em conformidade.

Realizado novo julgamento, o arguido foi novamente condenado pelo acórdão do Tribunal Judicial de Base de 18 de Setembro de 2003 pela prática dos mesmos três crimes e nas mesmas penas parcelares e única, com a precisão de que o crime de consumo de estupefacientes é previsto na al. a) do art.° 23.° referido.

Inconformado com este acórdão, o arguido recorreu, de segunda vez, para o Tribunal de Segunda Instância. Por acórdão de 15 de Janeiro de 2004 proferido no processo n.° 260/2003, foi negado provimento ao recurso.

É deste último acórdão que o arguido vem agora recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
   “1. O presente recurso, que tem por objecto o douto Acórdão de 15 de Janeiro de 2004 do Tribunal de Segunda Instância, circunscreve-se apenas a matéria de direito;
   2. Entenderam os Ilustres julgadores do Tribunal de Segunda Instância que a factualidade apurada preenchia o tipo legal do art.º 8.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, com os seguintes fundamentos: que a droga não se destinava exclusivamente para o consumo do arguido, ora recorrente, que a quantidade de droga detida não pode ser tida como de consumo necessário por qualquer pessoa do tipo de homem médio durante três dias; que só a aquisição ou detenção de droga exclusivamente para consumo pessoal condiz com a circunstância excepcionante prevista na parte final do art.º 8.°, n.º 1;
   3. Mas são estes fundamentos que, ressalvado o devido respeito, não se podem aceitar, na medida em que resultam de uma interpretação incorrecta dos tipos legais dos art.ºs 8.°, 9.° e 23.°, e por levarem a resultados incongruentes com princípios fundamentais do Direito penal.
   4. Desde logo, a aplicabilidade do art.º 23.° não deve ser afastada nos casos em que não se prove que a droga não se destinava exclusivamente ao consumo do ora recorrente, pelo contrário, este tipo legal deverá aplicar-se a todas as situações em que se prove a existência de consumo de estupefacientes, isto é: nos casos em que se prove que a droga se destinava exclusivamente ao consumo próprio como nos casos, como o dos autos, em que se prove que a droga se destinava ao consumo próprio e à cedência a terceiros, doutra forma não se entendia a ressalva constante da parte final do n.º 1 do art.º 8.°;
   5. Punindo a lei o tráfico e o consumo de estupefacientes, o destino da droga para consumo do próprio agente impõe que se faça um diagnóstico diferencial relativamente ao tipo legal de tráfico de estupefacientes do art.º 8.°, apenas e sempre que estejam em causa actividades típicas de aquisição ou detenção, pois apenas estas têm coincidência normativa nos preceitos do art.º 8.°, n.º 1 e do art.º 23.°;
   6. É isso o que o art.º 8.°, n.º 1 impõe, como pressuposto da punição aí prevista, quando afirma que essas actividades se desenrolem «fora dos casos previstos no art.º 23.º»;
   7. Tendo-se provado que o arguido destinava a droga também para o seu consumo, não é a circunstância de a detenção ilícita de estupefacientes constituir um crime de perigo abstracto que impede que se tenha que determinar qual a porção que o arguido destinava ao seu consumo;
   8. Por outro lado, a punição pelo crime de consumo não exige que a quantidade da droga não seja superior à legalmente fixada para o consumo próprio durante 3 dias (cfr. art.º 9.°), é o que resulta do elemento sistemático e teleológico da interpretação, como de resto do elemento literal. Se o legislador tivesse querido estabelecer essa limitação, como o fez expressamente no crime de tráfico de quantidades diminutas, té-lo-ia feito, tal como o denota o facto de ter estabelecido o limite daquela quantidade diminuta por referência ao consumo pessoal;
   9. Pelo que se pode dizer com toda a segurança que, não fazendo, nem tendo querido fazer, a lei da Região de Macau, qualquer referência à quantidade de estupefaciente na previsão da punição do consumo (art.º 23.º), contrariamente ao que acontece, por exemplo, na homóloga lei portuguesa, à verificação do crime de consumo de estupefaciente é indiferente a quantidade da droga detida, tal como é indiferente, por exemplo, tratar-se de droga leve ou dura. À face da lei, importante é apenas que se prove que a droga detida se destinava ao próprio consumo do ora recorrente;
   10. Tendo feito a aplicação do art.º 23.°, com o sentido de que nele se impõe o conceito de “quantidade diminuta”, para concluir que a droga era superior à fixada para o consumo médio individual durante três dias, a douta decisão recorrida violou o princípio da tipicidade;
   11. Em face de se ter apurado que não destinava a droga exclusivamente ao seu próprio consumo, é indiscutível que o arguido, ora recorrente, praticou – em concurso real – dois crimes um de tráfico e um de consumo de estupefacientes, uma vez que estão em causa bens jurídicos diferentes;
   12. O problema está em que, na nossa ordem jurídico-criminal, não há apenas um só tipo legal de tráfico, mas antes três: o tipo comum (do art.º 8.°) e dois tipos especiais ou privilegiados (dos art.ºs 9.° e 11.°);
   13. E isto é assim porque o legislador de Macau, em vez de adoptar uma posição maximalista de punir do mesmo modo grandes e pequenos traficantes, optou por consagrar uma solução de gradação de responsabilidade, punindo de forma diferenciada o grande traficante, o pequeno traficante e o traficante-consumidor, sendo que, diferentemente do que acontece para os dois últimos casos, a pena para os grandes traficantes não pode deixar de ser a mais severa;
   14. Para que se verifique o crime de traficante-consumidor, previsto e punido pelo art.º 11.°, n.º 1, exige-se que se verifique a prática de actos referidos no art.º 8.° e exige-se ainda a prova do dolo específico, que privilegia o crime, e que consiste em o traficante praticar aqueles actos com a finalidade exclusiva de conseguir droga para o seu próprio consumo; por seu turno, a verificação do crime de tráfico de quantidades diminutas criminaliza a prática de actos referidos no art.º 8.°, quando estes actos tenham por objecto quantidades diminutas de substâncias estupefaciente, sendo que a quantidade diminuta, para este efeito, é, nos termos do n.º 3 do art.º 9.°, a que não excede o necessário para consumo individual durante três dias, o que a nossa jurisprudência considerou ser, no caso da canabis, aproximadamente, de 8 g.
   15. O tipo do art.º 8.°, por um lado, e os tipos dos art.ºs 9.° e 11.°, por outro, estão numa relação de alternatividade excludente, o que significa que apenas se pode aplicar, a uma dada realidade de tráfico, um deles: ou a hipótese do art.º 8.° ou, excludentemente, a hipótese do art.º 9.° ou a do art.º 11.°.
   16. No caso dos autos, a alternatividade verifica-se entre o tipo de ilícito do art.º 8.° e o do art.º 9.°, pelo que importaria saber qual a porção da droga detida pelo arguido, ora recorrente, era destinada à cedência a terceiros: se fosse mais de 8 g., o ora recorrente deveria ser condenado pelo crime de tráfico previsto e punido pelo art.º 8.°, se não, isto é, se fosse uma quantidade inferior a 8 g., deveria ser condenado pelo crime do art.º 9.°, n.º 1;
   17. Mas para isto era necessário que o tribunal tivesse provado qual a quantidade da droga destinada a ceder a terceiros, ou então, por exclusão de partes, qual a quantidade da droga destinada ao uso pessoal do ora recorrente, isto porque foi provado que o arguido não destinava a droga exclusivamente ao seu próprio consumo pessoal;
   18. E a determinação dessa quantia constituía um prius lógico para a correcta aplicação do art.º 8.º ou do art.º 9.°, n.º 1;
   19. Isto porque, presumir que a droga detida pelo ora recorrente, em virtude da sua quantidade, se destinava à distribuição, não seria juridicamente legítimo, uma vez que significaria fazer inverter o ónus da prova, o que não seria admissível face ao princípio da presunção de inocência do arguido, ou, pelo menos, criaria desigualdades, não admissíveis, entre os meios probatórios ao alcance da acusação e da defesa.
   20. Na verdade, e em grande medida foi isso o que aconteceu quando se deu como provado que o arguido destinava aquela droga também ao tráfico, tão-só em virtude do arguido deter 44,4 gramas de “canabis” (e independentemente de se ter dado por provado que também a destinava ao seu consumo próprio) e do argumento (salvo o devido respeito, inválido) de que se tratava de quantidade manifestamente superior à legalmente fixada para o consumo próprio durante três dias e isto sem se ter verificado qualquer base fáctica que pudesse materializar aquela conclusão;
   21. Tendo ficado provado que a droga não se destinava exclusivamente ao consumo próprio do arguido, impunha-se que se determinasse qual a quantidade, em concreto, destinada à cedência a terceiros e não tendo sido possível determinar essa quantia, o Tribunal não deveria ter condenado o arguido e ora recorrente pelo crime de tráfico do art.º 8.°;
   22. A dúvida sobre a quantidade detida pelo arguido destinada a ser cedida a terceiros teria de funcionar a favor deste e não contra este – impunha-se uma decisão favor libertatem e não favor societatem;
   23. É o que decorre, seja do princípio in dubio pro reo, seja do princípio da aplicação mais favorável da lei criminal;
   24. Em virtude da falta de conhecimento daquele elemento fáctico, e, em consequência, não se conseguindo esclarecer se a factualidade apurada integra o crime de tráfico do art.º 8.° ou o crime de tráfico de quantidades diminutas do art.º 9.°, n.º 1, o princípio da aplicação mais favorável da lei penal, deveria levar a que o tribunal devesse considerar preenchido o preceito que estabelece a sanção concretamente menos grave e não, como fez, o preceito que estabelece a sanção mais severa;
   25. O que significa que, nesse caso, o doutro tribunal deveria ter julgado o arguido de acordo com o princípio in dubio pro libertatem e não in dubio pro societatem;
   26. E nem se diga que com esta interpretação se escancarariam as portas por onde grandes traficantes escapariam ou veriam significativamente reduzidas as penas, porque esse mesmo foi o risco que o legislador conscientemente quis correr quando optou por perseguir criminalmente de forma diferenciada grandes traficantes, pequenos traficantes e traficantes-consumidores;
   27. Para além de que o combate ao tráfico só se revela legítimo quando exista a certeza de não se estar a condenar inocentes;
   28. E é essa a certeza que falta no caso dos presentes autos;
29. Pelo que se tem forçosamente de concluir que o douto colectivo do Tribunal de Segunda Instância, ao ter confirmado, com aqueles fundamentos, o acórdão do Tribunal Judicial de Base, de que se havia recorrido, fez uma interpretação das normas dos art.ºs 8.°, 9.° e 23.° não conforme ao princípio do in dubio pro reo ou ao princípio da aplicação mais favorável da lei penal (in dubio pro libertatem).”
Pedindo que seja julgado procedente o recurso, procedendo a convolação no sentido de condenar o recorrente pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas previsto e punido pelo art.° 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M em concurso real com o crime de consumo de drogas previsto e punido pelo art.° 23.° do mesmo diploma.

O Ministério Público emitiu a seguinte resposta:
   “Assiste, a nosso ver, razão ao recorrente.
   E a nossa posição pode, realmente, considerar-se coincidente.
   Daí, também, que nada de relevante tenhamos a acrescentar à respectiva motivação.
   
   Abstraindo dos demais crimes por que o recorrente foi condenado – que não integram o objecto do recurso – está em causa a subsunção dos factos à previsão do art.º 8.º, n.º 1 ou à do art.º 9.°, n.º 1, do Dec-Lei n.º 5/91/M, de 28-1.
   E, na esteira do parecer junto a fls. 589 e 590, não podemos deixar de propender pela segunda alternativa.
   
   Da matéria de facto dada como provada resulta, no âmbito em apreço, que o recorrente detinha 44,4 gramas de canabis, que não destinava “exclusivamente para o seu próprio consumo pessoal”.
   Apesar de “esgotados todos os meios de prova”, entretanto, não se logrou apurar “a quantidade de droga destinada para o consumo próprio e a destinada à cedência a terceiros”.
   
   Face à factualidade apontada, não é possível concluir, efectivamente, que o “quantum” de estupefaciente não destinado a consumo pessoal excedia o que preenche o conceito de “quantidade diminuta” a que se refere o citado art.º 9.° (fixado entre 6 e 8 gramas, no douto acórdão desse Alto Tribunal, proferido em 26-9-2001, no processo n.º 14/2001).
   E não se afigura razoável, a propósito, chamar à colação a quantidade de droga detida, apelando, também, para as regras gerais da experiência.
   Deve ter-se como normal, de facto, que um indivíduo detenha, só para consumo próprio, uma quantidade de droga que lhe “dê” para um período de duas / três semanas.
   
   Não é possível, pois, “in casu”, chegar-se a uma conclusão sobre a questão em debate, para além de qualquer “dúvida razoável”.
   
   Mas, sendo assim, não pode deixar de haver lugar à intervenção do princípio “in dubio pro reo”.
   Conforme salienta Figueiredo Dias, “a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” (cfr. D.P.P., I, 215).
   
   Consigna-se, finalmente, que a violação do princípio “in dubio pro reo” – princípio geral do processo penal – consubstancia uma verdadeira questão de direito, que cabe, como tal, nos poderes de cognição desse Venerando Tribunal (cfr. acs. de 9-10-2002 e 10-12-2003, procs. n.ºs 10/2002 e 28/2003, respectivamente).
   
Deve, pelo exposto, ser concedido provimento ao recurso.”

   Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta acima transcrita.

   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos nos seus últimos acórdãos:
   “No dia 18 de Novembro de 2000, cerca das 21:30, junto à entrada da escola secundária, sita na [Endereço(1)], em Macau, os agentes da Polícia Judiciária avistaram que o arguido A apresentava uma atitude suspeitosa, por isso, interceptaram-no para averiguação.
   Os agentes da P. J. encontraram na posse do arguido A 3 sacos de plástico transparentes, contendo substância com aparência de planta, MOP$1.800,00 em dinheiro (mil oitocentas patacas) e um telemóvel com número XXXXXXX.
   Seguidamente, os agentes da P. J. dirigiram-se à residência do arguido A, moradia [Endereço(2)], a fim de fazer busca, e lá foram encontrados um saco plástico transparente, contendo substância com aparência de planta, três utensílios para enrolar cigarro e um maço de papeis para enrolar cigarro.
   Feito o exame laboratorial, foi confirmado que a substância, contida nos sacos acima referidos, encontrados respectivamente na posse do arguido A e na sua residência, com peso líquido total de 44.4g contém canabis, substância abrangida na Tabela I-C, do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   A substância acima referida foi adquirida pelo arguido A, em 17 de Novembro de 2000, cerca das 19:00, no átrio do [Endereço(3)], junto ao arguido B, pelo preço de MOP$3.400,00 (três mil quatrocentas patacas), não destinando exclusivamente para o seu próprio consumo pessoal; os supracitados utensílios e maço de papeis, todos para enrolar cigarro são utensilagem que detinha para consumo de droga.
   Depois de detido, o arguido A quis colaborar com a polícia, portanto, segundo a indicação da polícia telefonou ao arguido B, fingindo que queria adquirir mais substâncias acima referias.
   Atendendo à chamada do arguido A, o arguido B disse que mais tarde iria fazer transacção com ele na zona junto ao [Endereço(3)].
   No mesmo dia, pelas 23:45, quando o arguido B aparecia na entrada do [Endereço(3)], foi interceptado por elementos da PJ.
   Estes encontraram na posse do arguido B dois sacos plásticos transparentes, contendo substância com aparência de planta, MOP$500,00 (quinhentas patacas) em dinheiro e um telemóvel com número XXXXXXX.
   Seguidamente, os agentes da P. J. dirigiram-se à residência do arguido B, moradia [Endereço(4)], Macau, a fim de fazer busca, onde foram encontrados cinco maços de papeis para enrolar cigarro, um utensílio para enrolar cigarro e duas pontas de cigarro, de fabrico manual, uma caixa plástica, contendo fragmentos de planta, MOP$3.500,00 (três mil quinhentas patacas) e REM$200,00 (duzentos Renminbis).
   Feito o exame laboratorial, foi confirmado que as plantas e os fragmentos de planta, contidos nos sacos e caixa plástica acima referidos, encontrados respectivamente na posse do arguido B e na sua residência, com peso líquido total, de 52,35g contém canabis, substância abrangida na Tabela I-C, do Decreto-Lei n.° 5/91/M; as duas pontas de cigarro, de fabrico manual, contêm tetra-hidro canabinol, substância abrangida na Tabela II-B, do mesmo decreto-lei.
   As drogas acima referidas foram adquiridas pelo arguido B, junto a indivíduo cuja identidade se desconhece, para consumo pessoal e proporcionar a outrem; os supracitados utensílios e maços de papeis, todos para enrolar cigarro são utensilagem que detinha para consumo de droga; o supracitado telemóvel XXXXXXX serve de meios de contactos para fazer transacção de substâncias com outrem.
   No dia 19 de Novembro de 2001, cerca da 01:00, agentes da P. J. dirigiram-se à residência do arguido C, ou seja, moradia [Endereço(5)], Macau, a fim de fazer busca, e lá foram encontrados dois maços de papeis para enrolar cigarro, um utensílio para enrolar cigarro e um saco plástico transparente, contendo fragmentos de planta.
   Feito o exame laboratorial, foi confirmado que existe nos utensílios para enrolar cigarro tetra-hidro canabinol, substância abrangida na Tabela II-B, do Decreto-Lei n.° 5/91/M e os fragmentos de planta, contidos no saco plástica acima referido, contém canabis, substância abrangida na Tabela I-C, do mesmo decreto-lei.
   O resíduo de droga acima referido é matéria remanescente, proveniente de consumo de droga, pelo arguido C e a droga que ele consumia foi fornecida pelo arguido B; os supracitados utensílios e maços de papeis, todos para enrolar cigarro são utensilagem para consumo próprio de droga.
   Os arguidos B, A e C agiram livre, consciente e voluntariamente.
   Tinham perfeito conhecimento da natureza e características dos produtos acima referidos.
   As suas condutas não foram legalmente autorizadas.
   Sabiam perfeitamente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
   
   (Em relação ao recorrente:)
   Confessou parcialmente os factos.
   Auferia, como vendedor de automóvel, cerca de MOP$7,000 a MOP$8,000 por mês.
   Possui como habilitações o 1º ano do ensino secundário.
   Tem a seu cargo a sua mãe.
   Nada consta em seu desabono do seu CRC junto aos autos.
   *
   Factos não provados:
   As quantias apreendidas ao arguido A, no montante de MOP$1.800,00 (mil oitocentas patacas) são produto de tráfico de substância estupefaciente.
   O telemóvel apreendido do arguido A, de n.° XXXXXXX servia para contactos para transacção de estupefaciente.
   As quantias apreendidas ao arguido B, no montante de MOP$4.000,00 (quatro mil patacas) e REM$200,00 (duzentos Renminbis) são produto de tráfico de substância estupefaciente.”
   
   
   2.2 A integração nos crimes de tráfico de drogas
   O recorrente não aceitou a interpretação do tribunal recorrido que considera só a aquisição ou detenção de droga destinada exclusivamente ao consumo pessoal do agente constituir circunstância excepcionante prevista no art.° 8.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M e que a quantidade de 44,4g de canabis não é quantidade diminuta para efeitos do art.° 9.° do mesmo diploma.
   
   A questão do presente recurso consiste em saber se a conduta do recorrente é qualificada como crime de tráfico de drogas previsto no art.° 8.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M ou, ao invés, como crime de tráfico de quantidades diminutas de drogas previsto no art.° 9.° do mesmo Decreto-Lei.
   Após o novo julgamento realizado na primeira instância, ficou nomeadamente provado que foi encontrada no posse e na residência do recorrente substância com peso líquido total de 44,4g contendo canabis que não é destinada exclusivamente para o seu próprio consumo pessoal.
   É de afastar, antes de mais nada, a hipótese de enquadrar a conduta do recorrente no crime de traficante-consumidor previsto no art.° 11.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M, pois não ficou provado que o recorrente deteve ou cedeu canabis com finalidade exclusiva de conseguir mais droga para o seu uso pessoal.
   Por outro lado, também não oferece dúvida que o recorrente praticou os crimes de consumo de drogas previsto no art.° 23.°, al. a) e de detenção indevida de utensilagem de drogas previsto no art.° 12.°, ambos do Decreto-Lei n.° 5/91/M, parte da condenação não impugnada pelo recorrente.
   Foi ainda o recorrente condenado na prática do crime de tráfico de drogas previsto no art.° 8.°, n.° 1 do referido diploma, decisão confirmada pelo acórdão recorrido.
   Discute-se a qualificação dos actos praticados pelo recorrente nesse crime de tráfico de drogas.
   Dispõe assim o art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M:
   “1. Quem, sem se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 23.º, substâncias e preparados compreendidos nas tabelas I a III será punido com a pena de prisão maior de 8 a 12 anos e multa de 5 000 a 700 000 patacas.”
   A lei pune os actos de detenção e venda, por exemplo, de drogas com base nesta norma, excepcionando a aquisição ou detenção de drogas para consumo pessoal, que passam a ser objecto de incriminação autónoma prevista no art.° 23.° do mesmo Decreto-Lei.
   No entanto, de acordo com o sentido do referido art.° 8.°, n.° 1, ao incriminar com o crime de tráfico de drogas previsto neste preceito não está excluída a possibilidade de condenação simultânea pela prática do crime de consumo previsto no art.° 23.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   É possível coexistir os actos de detenção de drogas para o consumo pessoal e os mesmos actos para outras finalidades, por exemplo, cedência ou venda a terceiros, isto é, pode acontecer que parte da droga detida serve para próprio consumo e outra parte para ceder a outras pessoas.
   Perante esta situação, é necessário apurar a quantidade, entre outras características, da droga para o fim de consumo pessoal e a para outros fins, não só para determinar o crime de tráfico de drogas efectivamente praticado pelo arguido, por estar consagrado o tipo privilegiado de tráfico de quantidades diminutas de drogas previsto no art.° 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M, mas também para servir de circunstância a ser considerada na graduação da pena concreta.
   O tribunal de julgamento deve esforçar-se neste sentido, utilizando os seus poderes de investigação, bem como as regras de experiência, para formar a sua convicção, de modo a procurar encontrar essas quantidades, ou pelo menos as quantidades relativamente determinadas.
   Não se mostra correcto o entendimento do acórdão recorrido no sentido de que a totalidade da droga detida pelo agente deve ser considerada para a integração nos crimes de tráfico, privilegiado ou não, quando a detenção não ter sido exclusivamente para o consumo pessoal do agente, por constituir uma presunção não consentida pelos art.°s 8.° ou 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M, em violação dos princípios de legalidade e de presunção de inocência.
   
   Se a quantidade de drogas destinadas para os fins além de consumo pessoal for diminuta nos termos do art.° 9.°, n.° 3 do Decreto-Lei n.° 5/91/M, então é enquadável no crime de tráfico de quantidades diminutas de drogas.
   Quando não for possível determinar se essa quantidade de drogas é diminuta, por razões nomeadamente processuais ou técnicas, a incriminação deve ser feita para o mesmo crime de tráfico de quantidades diminutas de drogas, em nome do princípio in dubio pro reo.1
   
   No presente caso, provou-se que o recorrente detinha 44,4g canabis, não destinando exclusivamente para o seu próprio consumo pessoal. Ou seja, a droga que se encontrava na posse do recorrente servia para o seu próprio consumo e outras finalidades. No entanto, não ficou apurada a quantidade de canabis para o consumo pessoal e a para outros fins.
   Da matéria de factos provados se pode concluir apenas que a quantidade de canabis detida pelo recorrente para os fins além de consumo pessoal é inferior a 44,4g, e já não permite saber qual é essa quantidade em concreto e se é diminuta ou não.
   Assim, em nome do princípio in dubio pro reo, para além dos crimes de detenção indevida de utensilagem de drogas e de consumo de drogas, o recorrente deve ser condenado apenas pelo crime de tráfico de quantidades diminutas de drogas previsto no art.° 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M, em vez do crime de tráfico de drogas previsto no art.° 8.°, n.° 1 deste Decreto-Lei, julgando, deste modo, procedente o presente recurso.
   
   
   2.3 Medida concreta da pena
   Em consequência da convolação feita, devem ser revistas a pena concreta e a única em resultado do cúmulo jurídico.
   O crime de tráfico de quantidades diminutas de drogas previsto no art.° 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M é punido com a pena de prisão de 1 a 2 anos e multa de 2.000 a 225.000 patacas.
   Considerando os actos praticados pelo recorrente, o tipo de droga, a colaboração com a polícia, a ausência de antecedentes criminais, é equilibrado fixar a pena concreta para este crime em 18 meses de prisão e 45.000,00 patacas de multa, convertível equitativamente em 150 dias de prisão caso não for paga nem substituída por trabalho.
   
   Foi o recorrente condenado ainda pela prática de um crime de detenção indevida de utensilagem de drogas previsto e punido pelo art.° 12.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 3 meses de prisão e de um crime de consumo de drogas previsto e punido pelo art.° 23.°, al. a) do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 1 mês de prisão.
   Tendo em conta todos os factos praticados pelo recorrente e a sua personalidade, fixa-se, em cúmulo jurídico, a pena única em 20 meses de prisão e multa de 45.000,00 patacas, convertível em 150 dias de prisão se não for paga nem substituída por trabalho.
   
   O recorrente foi preso preventivamente desde 7 de Março de 2002 (fls. 236) até agora. Considerando o período da prisão preventiva sofrida, fica expiada no dia 7 de Novembro de 2003 a pena de prisão descontada nos termos do art.° 74.°, n.° 1 do Código Penal, pelo que deve o recorrente ser restituído imediatamente à liberdade.
   Quanto à pena de multa, uma vez que o recorrente ficou mais 124 dias em prisão preventiva (de 8/11/2003 a 10/3/2004) depois de descontar o tempo de pena de prisão, ao abrigo do n.° 2 do referido artigo, conjugado com o art.° 6.°, al. b) do Decreto-Lei n.° 58/95/M, a quantia que tem de pagar é reduzida a 7.800,00 patacas, convertível em 26 dias de prisão se não for paga nem substituída por trabalho.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido, e passar a condenar o recorrente, para além dos crimes de detenção indevida de utensilagem de drogas e de consumo de drogas, pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas de drogas previsto e punido pelo art.° 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 18 (dezoito) meses de prisão e 45.000,00 (quarenta e cinco mil) patacas de multa, convertível em 150 (cento e cinquenta) dias de prisão caso não for paga nem substituída por trabalho e, em cúmulo jurídico com as penas cominadas aos outros dois crimes, na pena única de 20 (vinte) meses de prisão e multa de 45.000,00 (quarenta e cinco mil) patacas, convertível em 150 (cento e cinquenta) dias de prisão se não for paga nem substituída por trabalho.
   Descontando o tempo de prisão preventiva já sofrida, fica expiada a pena de prisão e a pena de multa é reduzida a 7.800,00 (sete mil oitocentas) patacas, convertível em 26 (vinte e seis) dias de prisão se não for paga nem substituída por trabalho.
   Passe imediatamente mandado de libertação e comunique nos termos do art.° 462.°, n.° 2 do Código de Processo Penal.
   Sem custas neste Tribunal e no Tribunal de Segunda Instância.
   
   
   
   Aos 10 de Março de 2004.


           Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cf. ac. do TUI de 9 de Outubro de 2002, processo n.° 10/2002.
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Processo n.° 6 / 2004 21