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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 17 / 2003


Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças





1. Relatório
   O recorrente A interpôs recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância, pedindo a anulação do acto praticado pelo Secretário para a Economia e Finanças em 24 de Outubro de 2001.
   Por acórdão de 18 de Abril de 2002 do Tribunal de Segunda Instância, proferido no processo de recurso contencioso n.° 229/2001, foi negado provimento ao recurso.
   Após várias vicissitudes processuais ligadas ao pedido de apoio judiciário do recorrente, este veio, a final, recorrer do referido acórdão para este Tribunal de Última Instância com a apresentação das seguintes conclusões de alegação:
“1. Não se deveria quedar o Tribunal a quo meramente pela prova produzida pela Administração mas, ao contrário, deveria tido atenção ao argumento do deficit probatório apresentado pelo recorrente.
   2. Pois que nos autos sub judice, foram questionados alguns dos passos do iter disciplinar (os quais, salvo melhor opinião, são fundamentais para abalar todo o edifício acusatório) tendo, contudo, o acórdão recorrido somente aferido, maxime, da tal “... coincidência entre os factos e as prova produzida ...” e, consequentemente, decretado a improcedência do Recurso por considerar que inexistiu “... erro sobre situações ou circunstâncias que foram pressuposto da decisão punitiva”. Ora,
   3. Salvo o devido respeito, erradamente, porquanto foi violado o princípio da busca intransigente da verdade material e o n.º 1, art.º 111.º do CPP, em razão de a produção do thema probandi apresentado pelo recorrente possuir a virtualidade de demonstrar a inocência deste e, consequentemente, provar o vício em que incorria o acto administrativo punitivo. Já que,
   4. O thema probandi referido pelo ora recorrente foi possível de ter sido realizado no âmbito do processo disciplinar, podia ter sido produzido e apreciado directamente em juízo... Mas, quedou-se o acórdão recorrido pelas provas apresentadas pela Administração e pela coincidência das mesmas com os artigos da Acusação. Assim,
   5. Ficou o recorrente impedido de trazer a juízo provas comprovativas da debilidade de um processo disciplinar que teve por trave mestra as palavras de um particular, impedido de demonstrar que coerência entre factos e prova (por si) não podem impressionar julgador mais avisado, impedido de demonstrar que a vontade punitiva da Administração estava viciada de erro sobre as circunstâncias. Enfim,
   6. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo, quedando-se pela prova produzida pela Entidade Recorrida e ignorando que o deficit probatório referido pelo ora recorrente era possível de ser colmatado (sem esforço) pela Administração, violou princípio da busca intransigente da verdade material e o n.º 1, art.º 111.º do CPP.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso e, em consequência, ordene a baixa do processo para produzir em julgamento toda a prova requerida pelo recorrente ou a feitura de julgamento a fim de se comprovar o efectivo erro sobre as circunstâncias imanentes ao acto impugnado.
   
   O recorrido, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1. O processo penal não é subsidiário do processo disciplinar;
   2. O objecto da prova restringe-se aos factos juridicamente relevantes;
   3. O instrutor do processo disciplinar efectuou todas as diligências necessárias a apurar a responsabilidade do recorrente;
   4. A prova adicional requerida pelo recorrente no processo disciplinar foi produzida;
   5. Os factos que o recorrente enumera nas suas alegações para sustentar a tese de insuficiência de prova são irrelevantes ou supérfluos;
   6. O tribunal a quo decidiu correctamente ao entender que não era necessária produção de prova sobre esses factos;
   7. O tribunal a quo decidiu também correctamente ao entender que a prova angariada pela instrução do processo disciplinar tinha sido devidamente valorada e permitia concluir pela responsabilidade disciplinar do recorrente;
   8. O tribunal a quo não violou o art.º 111.º, n.º 1 do Código de Processo Penal – nem o poderia ter violado já que essa norma não é aplicável nem em sede de processo disciplinar, nem em sede de processo administrativo contencioso.”
   Pedindo que seja negado provimento ao recurso.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
“No seu recurso interposto para este Alto Tribunal de Última Instância, o recorrente A imputa ao Acórdão recorrido a violação do princípio da busca intransigente da verdade material e da norma contida no n.º 1 do art.º 111.º do Código de Processo Penal de Macau, requerendo “a baixa do processo a fim de ser produzida em sede de julgamento toda a prova requerida”.
   Na verdade, quando interpôs o recurso contencioso do douto despacho proferido pelo Exmo. Senhor Secretário para a Segurança que decidiu aplicar-lhe a pena de demissão, o recorrente apresentou o seu rol de testemunha que é composto por nove testemunhas (fls. 10 dos autos), não obstante não ter indicado os factos sobre que cada testemunha deve depor (art.º 43.º n.º 1, al. c) do CPAC), o que é suprível nos termos do art.º 51.º n.º 1 do CPAC.
   Alega o recorrente que a produção do thema probandi apresentado por si possui “a virtualidade de demonstrar a inocência deste e, consequentemente, provar o vício em que incorria o acto administrativo punitivo”.
   Nos termos do art.º 63.º n.º 1 do CPAC, o juiz pode conhecer do mérito do recurso se tal se afigurar possível sem necessidade de produção de prova.
   No seu douto Acórdão proferido em 27-11-2002 e no processo n.° 12/2002, o Tribunal de Última Instância decidiu o seguinte:
   “ ... o tribunal só pode conhecer do fundo da causa, findos os articulados, sem produção de prova adicional que tenha sido, como foi, requerida, quando os factos pertinentes à decisão se encontrarem já assentes, o que é o mesmo que dizer que não há factos relevantes controvertidos.
   Explicando melhor, a menos que os factos relevantes estejam assentes – (i) seja, porque o recorrente na petição de recurso contencioso aceitou factos que constituíam pressupostos do acto administrativo, (ii) seja, por acordo, tácito ou expresso, das partes nos articulados, (iii) seja, porque os factos estão provados por meio de prova que faça prova plena – o Tribunal tem de permitir que as partes produzam a prova legalmente permitida, como é o caso da prova testemunhal, sobre tais factos, ainda que o Tribunal considere inverosímil o facto alegado.
   É que o momento próprio para o Tribunal formar a sua convicção sobre os factos, apreciando livremente as provas, a que se refere o art.º 558.º, n.° 1, do Código de Processo Civil, é apenas após a produção dos meios de prova que forem legalmente possíveis.
   Em conclusão, desde que os factos relevantes não estejam assentes, por acordo das partes, ou provados por meio de prova que constitua prova plena, como é o caso dos factos provados por documento autêntico a que não foi oposta falsidade, o tribunal não pode fazer funcionar o princípio da livre apreciação das provas, sem que as partes tenham tido a possibilidade de produzir provas.”
   E se o Tribunal considera provados factos controvertidos, não cobertos por prova legal plena, sem permitir que as partes produzam a prova a que se propõem, viola o princípio do contraditório, o princípio da igualdade e o princípio que se extrai das disposições conjugadas dos art.°s 63.° n.° 1 e 65.° n.° 3 do CPAC.
   Seguindo este entendimento, parece-nos que se deve determinar a produção de prova requerida pelo recorrente, uma vez que, não obstante a não indicação pelo recorrente dos factos sobre que cada testemunha deve depor, resulta da sua petição que o recorrente não estava de acordo nem aceitou os factos pertinentes para a decisão impugnada, nem todos os factos foram provados por meio de prova com força plena, existindo assim os factos relevantes controvertidos, que podem ser comprovados pela prova testemunhal.
   
   Nos termos do art.º 65.º n.º 3 do CPAC, “o juiz ou o relator devem limitar a produção de prova aos factos que considerem relevantes para a decisão da causa e sejam susceptíveis de prova pelos meios requeridos”.
   Por outro lado, nota-se que entre as nove testemunhas arroladas pelo recorrente, cinco já foram ouvidas no processo disciplinar, sendo certo que quatro na qualidade de testemunha de defesa apresentada pelo recorrente (B, C, D e E), pelo que a produção de prova deve ser limitada à audição daquelas testemunhas que não foram ainda ouvidas em sede de processo disciplinar.
   Pelo exposto, parece-nos que merece provimento (parcial) o recurso interposto.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
“O recorrente era Inspector de 2º Classe do quadro da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego;
   2. Exercia funções no Departamento da Inspecção do Trabalho;
   3. No dia 12 de Janeiro de 1999, F, trabalhador da G apresentou queixa contra a sua entidade patronal, por não lhe terem sido dadas férias anuais;
   4. O processo foi instruído pelo Inspector H;
   5. No dia 10 de Maio de 1999, aquela sociedade depositou $41.305,00 patacas, à ordem da D.S.T.E., a título de indemnização ao trabalhador;
   6. O recorrente foi encarregado de entregar o cheque daquele montante ao F;
   7. Mas dividiu o total em dois cheques (n.º AAXXXXXX(1), de $21.305,00 patacas e n.º AAXXXXXX(2), de $20.000,00 patacas);
   8. Nada disse ao trabalhador, entregando-lhe, apenas o cheque de $21.305,00 patacas;
   9. Reteve-lhe o B.I.R., e, com ele, levantou o cheque n.º AAXXXXXX(2), apropriando-se das $20.000,00 patacas;
   10. Em princípios de Agosto de 2000, e por ter recebido a liquidação do imposto profissional da qual constava a percepção de $41.305,00 patacas, o F deslocou-se à D.S.T.E.;
   11. O recorrente afirmou à hierarquia que, por lapso de computador, a quantia fora dividida em dois cheques;
   12. No dia 20 de Setembro de 2000, intitulando-se funcionário do banco, contactou telefonicamente o F dizendo-lhe que o Banco, por lapso, não lhe tinha pago um cheque de $20.000,00 patacas;
   13. O recorrente deslocou-se, depois, à sua residência e entregou-lhe aquela quantia em notas de banco;
   14. O instrutor do processo disciplinar propôs a aplicação da pena de demissão;
   15. O Senhor Secretário para a Economia e Finanças proferiu, em 24 de Outubro de 2001, o seguinte despacho:
   “Concordo com o relatório decisivo do processo disciplinar. Aplica-se a pena de demissão, devendo a D.S.T.E. efectuar a respectiva notificação.”
   
   
   2.2 Sobre a prova no processo disciplinar e no respectivo recurso contencioso
   O recorrente imputa ao acórdão recorrido a violação do principio da busca da verdade material dos factos e da disposição do art. 111.°, n.° 1 do Código de Processo Penal que define o objecto da prova, por considerar que o tribunal recorrido não usou de todos os poderes colocados ao seu alcance para sindicar da eventual existência de défice probatório que inquinasse a vontade ao autor do acto recorrido e discorda da decisão da improcedência do recurso que fundou na coincidência entre os factos e as provas produzidas.
   
   Embora não concretizou em que termos se verificou tal violação, o que o recorrente pretende impugnar é a insuficiência da prova para o tribunal recorrido concluir provados os factos que fundamentam o acto punitivo.
   Ora, segundo o art.° 152.° do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), o recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada.
   Em coerência com esta norma, é aplicável o disposto no art.° 649.° do Código de Processo Civil por remissão subsidiária consagrada no art.° 1.° do CPAC, ou seja, aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente; a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   Assim, “o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes.”1
   Por isso, fora dos casos de violação de normas ou princípios que presidem à formação da convicção do julgador, aliás não alegados pelo recorrente, a mera afirmação de que existem factos que são passíveis de abalar a base da acusação e consequentemente a decisão punitiva conduz necessariamente à improcedência do presente recurso.
   
   O recorrente alega que o tribunal recorrido não apreciou todo o material probatório relevante para a demonstração da sua inocência. Parece que, com isso, o recorrente está a suscitar implicitamente a falta de produção de prova testemunhal indicada na sua petição do recurso contencioso apresentada ao Tribunal de Segunda Instância, tendentes a ilibar a sua responsabilidade disciplinar.
   Mesmo com este fundamento, o presente recurso jurisdicional é igualmente votado ao insucesso.
   Está em causa a decisão punitiva proferida no processo disciplinar desenvolvido segundo o prescrito no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) aprovado pelo Decreto-Lei n.° 87/89/M.
   O processo disciplinar nele previsto está estruturado de forma contraditória com amplas possibilidades de defesa, manifestação do princípio da presunção da inocência, de processo equitativo, etc.
   No recurso contencioso, os tribunais administrativos não apreciam a prova produzida sobre uma determinada infracção como os tribunais criminais perante as acusações que têm de apreciar, mas sim aprecia a existência de vício que contamine o acto administrativo, neste caso, o acto punitivo.2 Relacionado com o processo disciplinar, a jurisdição administrativa contenciosa tem outra natureza.
   De facto, segundo o art.° 334.°, n.° 2 do ETAPM, após a acusação, o arguido pode apresentar defesa escrita em que expõe os factos e as razões da sua defesa, bem como juntar documentos, indicar o rol de testemunhas e requerer outras diligências de prova. Na realidade, o recorrente foi notificado para apresentar defesa escrita e apresentou efectivamente, indicando o rol de testemunhas que posteriormente foram todas ouvidas, conforme as fls. 239, 250 e seguintes do processo administrativo apensado.
   Perante os trâmites totalmente contraditórios do processo disciplinar em que o arguido tem ampla possibilidade de defesa, não faria sentido que o recurso contencioso fosse uma repetição do processo disciplinar, com uma segunda oportunidade de produção de prova, até com as mesmas testemunhas que podem contradizer do que depuseram, tendo por objecto a matéria da acusação disciplinar. A admitir a nova produção de prova sobre esses factos, retiraria o carácter definitivo, no domínio do procedimento administrativo, da decisão punitiva da Administração Pública, deslocando o centro da formação da vontade punitiva administrativa daquela para o Tribunal, subverteria o princípio da separação das funções administrativas e judiciais.
   O que se pode fazer no recurso contencioso da decisão punitiva disciplinar é discutir se essa decisão é correcta ao considerar provados determinados factos, arguindo o vício de erro nos pressupostos de facto. Mas não pode vir pretender produzir nova prova quando o pôde fazer oportunamente.
   Até porque, se porventura verificar circunstâncias ou meios de provas novos susceptíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição, o arguido pode lançar meio de revisão do processo disciplinar tendo por objectivo a revogação ou alteração da decisão (art.° 343.°, n.°s 1 e 2 do ETAPM).
   Assim, os art.°s 42.°, n.° 1, al.s g) e h) e 64.° do CPAC devem ser interpretados restritivamente, no sentido de que não é possível fazer prova no recurso contencioso tendente a infirmar a prova produzida no processo disciplinar.
   Não merece censura o acórdão recorrido que não considerou necessária a produção de prova, ouvindo as testemunhas indicadas pelo recorrente na sua petição do recurso contencioso, todas relacionadas com a matéria fáctica da acusação e a sua personalidade.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 4 UC (duas mil patacas).
   
   
   Aos 2 de Junho de 2004.



           Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 Cfr. acórdão do Tribunal de Última Instância de 27 de Novembro de 2002 do processo n.° 12/2002.
2 Cfr. Alberto Augusto Oliveira e Alberto Esteves Remédio, Sobre o Direito Disciplinar da Função Pública, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. II, Coimbra Editora, 2001, p. 641.
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Processo n.° 17 / 2003 13