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Processo n.º 56/2013
Recurso Civil
Recorrentes: A, B, C, D, E e F
Recorrida: G
Data da conferência: 19 de Fevereiro de 2014
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Oposição entre os fundamentos e a decisão
- Nulidade do Acórdão
 - Insuficiência da matéria de facto
 - Impugnação do fundamento subsidiário do Acórdão


SUMÁRIO

1. Nos termos do art.º 571.º n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
2. A norma contida no n.º 4 do art.º 629.º do Código de Processo Civil confere ao Tribunal de Segunda Instância o poder de anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, “quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
3. A insuficiência da matéria de facto só existe quando as partes alegaram factos que o tribunal não investigou, o que não ocorre nos casos em que não se provaram os factos necessários.
4. Se o Tribunal deduzir fundamento subsidiário, para além do fundamento principal, a fim de reforçar a sua decisão, não se deve conhecer da impugnação feita pelo recorrente desse fundamento subsidiário, desde que se mantenha erecto o fundamento principal, pois é inútil tal conhecimento, uma vez que, independentemente da resolução da questão, sempre se manteria a decisão recorrida.
  
A Relatora
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  
1. Relatório
Na acção declarativa com processo comum na forma ordinária intentada pela G junto do Tribunal Judicial de Base contra H, I, F, C, B, A, J, E, D, K e interessados incertos, a Exma. Juíza do Tribunal Judicial de Base julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, preferindo a seguinte decisão:
1. Condenar os 1º a 10º Réus, H, I, F, C, B, A, J, E, D e K, a reconhecer a Autora, G, como titular do direito de arrendamento sobre os seguintes prédios:
- [Endereço(1)], urbano, com a área de 83,24 m2, descrito sob o n.º XXXXX, a fls. 54 do Livro BXX na Conservatória do Registo Predial de Macau;
- [Endereço(2)], urbano, com a área de 66,44 m2, descrito sob o n.º XXXXX, a fls. 54v do Livro BXX na Conservatória do Registo Predial de Macau;
- [Endereço(3)], rústico, com a área de 495,34 m2, descrito sob o n.º XXXXX, a fls. 103 do Livro BXX na Conservatória do Registo Predial de Macau;
- [Endereço(3)], rústico, com a área de 1110,32 m2, descrito sob o n.º XXXX, a fls. 213 do Livro BXX na Conservatória do Registo Predial de Macau;
2. Condenar os Réus a desocupar os referidos prédios n.º XXXXX e n.º XXXXX e restituí-los devolutos e livres de pessoas e bens à Autora;
3. Absolver os Réus dos restantes pedidos formulados pela Autora;
4. Absolver a Autora da instância relativa ao pedido de declaração de que os dois edifícios então existentes nos prédios n.º XXXXX e n.º XXXXX foram incendiados e não eram aptos a serem habitados;
5. Declarar que os dois edifícios actualmente existentes nos prédios n.º XXXXX e n.º XXXXX foram construídos a expensas do 1º Réu, H;
6. Absolver a Autora dos restantes pedidos reconvencionais formulados pelos 3º, 4ª, 5º, 6º, 8º e 9º Réus F, C, B, A, E e D;
7. Condenar os 3º, 4ª, 5º, 6º, 8º e 9º Réus como litigantes de má fé na multa de 10 UCs.

Inconformados com a decisão, recorreram a Autora G e os Réus D, F, C, B, A e E para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu, por Acórdão proferido em 25 de Abril de 2013, julgar improcedente o recurso interposto pelos Réus e parcialmente procedente o recurso da Autora, condenando os Réus a restituir à Autora os dois terrenos rústicos descritos na Conservatória do Registo predial sob os n.º s XXXXX e XXXX, mantendo as restantes decisões tomadas pelo Tribunal Judicial de Base.
Deste Acórdão vêm agora os Réus D, F, C, B, A e E recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
A. O fundamento usado pelo Tribunal a quo (na fundamentação da decisão de provimento do recurso da Autora sobre a restituição dos dois prédios s/n ora em causa) de que “Além disso, também foi indeferido o pedido da aquisição por usucapião do respectivo terreno.” (fls. 2004), radica nas razões recortadas a fls. 1866v-1867 na sentença da primeira instância que, nessa parte, foi confirmada pelo acórdão recorrido.
B. Os fundamentos da sentença do tribunal de primeira instância na parte que julgou improcedente o pedido de usucapião dos Réus integram, portanto, a fundamentação do acórdão recorrido quanto à decisão do recurso da Autora sobre a restituição dos prédios s/n.
C. O fundamento da improcedência do recurso dos Réus quanto à usucapião do domínio útil que o Tribunal a quo usou a fls. 2004 para conceder provimento ao recurso da Autora sobre a restituição dos dois prédios s/n ora em causa, opõe-se, assim, à própria decisão de provimento, por essa decisão de provimento pressupor exactamente o fundamento oposto (no que respeita à existência e objecto da relação de arrendamento) àquele no qual também se funda a decisão de improcedência do supra referido recurso dos Réus.
D. Assim, a proceder a apontada nulidade do acórdão, nada obsta a que a mesma seja suprida, com as legais consequências.
E. Por outro lado, sucede que na sentença da primeira instância (fls. 1866v-1867) acabou por ficar estabelecido que os Réus gozam dos quatro prédios dos autos com base na relação de arrendamento constituída no ano de 1948.
F. Sendo que a matéria de facto na qual se funda este juízo de facto quanto à existência e objecto da relação de arrendamento, nomeadamente a matéria provada na alínea V) dos Factos Assentes e nas respostas aos quesitos 1.º, 7.º-E, 16.º e 22.º e 17.º da Base Instrutória, não foi modificada pelo Tribunal a quo.
G. Tal significa que a matéria provada nos factos assentes, nas respostas aos quesitos da base instrutória e na fundamentação da sentença recorrida onde se funda o juízo de facto quanto à existência e objecto da relação de arrendamento obsta à decisão de revogar a absolvição dos Réus do pedido de restituição dos dois prédios s/n descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.os XXXXX e XXXX.
H. A decisão do acórdão recorrido de revogar a absolvição dos Réus do pedido de restituição dos dois prédios s/n descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.os XXXXX e XXXX é, portanto, nula, face ao disposto na alínea c) do artigo 571 do CPC, devendo, por conseguinte, ser revogada, com as legais consequências.
I. Por outro lado, na perspectiva do Tribunal a quo, faltam factos essenciais à fundamentação da decisão de direito proferida pelo tribunal de primeira instância, designadamente os factos relativos a) ao título a que os Réus usam os dois terrenos em causa, b) à relação familiar entre o L e os Réus, c) à extensão do objecto do contrato de arrendamento de 02/06/2003 e d) ao recebimento de renda pela Autora pelos dois terrenos em causa.
J. Nesta medida, sendo a insuficiência da matéria de facto fixada pelo tribunal de primeira instância uma questão de conhecimento oficioso para o tribunal de recurso e tendo o Tribunal a quo considerado essa matéria de facto insuficiente, devia ter anulado a sentença e determinado a ampliação do julgamento aos factos tidos em falta para fundamentar a decisão do direito, conforme lhe impunha o disposto no artigo 629/4 do CPC.
K. Deve, portanto, o acórdão ser revogado por violação da lei de processo, na parte ora recorrida, com as legais consequências.
L. Isto sem prejuízo da possibilidade prevista no artigo 650 do CPC da remessa dos autos ao Tribunal de Segunda Instância, para que neste (ou por determinação deste, no tribunal de primeira instância) se apreciem os factos tidos em falta para a decisão de direito ou de que também cumpra apreciar, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
M. Por outro lado, para ter hipótese de ser válida, teria uma qualquer denúncia da relação de arrendamento para habitação e exercício de empresa comercial dos prédios especificados nas alíneas B) a E) dos Factos Assentes que ter observado o disposto quanto à forma e prazo no artigo 79.º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei n.º 12/95/M, de 14 de Agosto ex vi do artigo 17/3, segunda parte, do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto que aprovou o Código Civil.
N. A relação de arrendamento entre a Autora e os Réus relativamente aos prédios especificados nas alíneas B) a E) dos Factos Assentes que o tribunal de primeira instância julgou existir com base na factualidade apurada em juízo, não foi, portanto, denunciada a todos a quem devia ter sido, nem pela forma e no prazo legais, o que, salvo melhor opinião, obstava ao provimento do recurso da Autora na parte relativa à restituição dos dois terrenos descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.os XXXXX e XXXX.

Contra-alegou a G, formulando as seguintes conclusões:
I. Estando provado que a A. se comporta como “dona dos prédios” desde a data em que os adquiriu, contraditório seria dar por provado que os RR. também o fazem, decorrendo a falta de “animus” de proprietários dos RR. contestantes não só dos factos provados nos art.s 1.º e 17.º da Base Instrutória, mas de muitos mais outros como dos artigos 2.º a 7.º-H da Base Instrutória.
II. Inexistindo o “animus” de proprietários nunca poderia o seu pedido de aquisição por usucapião dos prédios proceder – entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação dos arts. 1212.º e 1215.º “a contrario”, do C.C.
III. A pretensão dos RR. de que dos factos provados nos artigos 1.º a 17.º se deve extrair a existência de uma relação de arrendamento entre os RR. contestantes e a A. não é possível, os RR. nunca alegaram tal excepção e, por tal, não resultaram provados factos para o efeito, e é tal o que o acórdão recorrido exara – nos termos dos factos alegados e provados inexiste qualquer facto que prove a que título os RR. usam os dois terrenos, embora esteja provado que L e sua família usaram os prédios desde 1948, incluindo os dois referidos terrenos para operar uma estância de madeiras e que pagam um determinado montante a título de renda à A., nada nos autos prova que os RR. e L tenham uma relação de parentesco” – , inexiste pois qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão que condena os RR. a restituir os terrenos à A.
IV. Aos RR. contestantes cabia alegar todos os meios e formas de defesa às pretensões formuladas pela A. na sede própria, a contestação, cabendo a si o ónus de provar todos os factos que pudessem constituir excepção aos pedidos formulados pela A., e não o havendo feito no momento oportuno precludiu a possibilidade de o fazerem – entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação do art. 409.º do C.P.C.
V. O Governo da Colónia de Macau concedeu à A. um terreno com a área de 1,755.34 m2, situado junto à [Endereço(3)], que constituía o Talhão n.º XX da planta de distribuição de terrenos desta cidade, destinados a estaleiros e estâncias de madeira, confrontando por NE, com o estaleiro n.º XX da [Endereço(3)], por SE, com a [Endereço(3)], por SW, com a Trav. dos Estaleiros e por NW, com a Bacia do Patane, que era constituído por quatro parcelas, uma primeira, com a área de 1,110.32 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial desta Comarca sob o n.º XXXX, fls. 213, do Livro B-XX, uma segunda, com a área de 83.24 m2, descrita na mesma Conservatória sob o n.º XXXXX, a fls. 54 do Livro B-XX, sobre a qual está construído o prédio [Endereço(1)], uma terceira, com a área de 66.44 m2, descrita na mesma Conservatória sob o n.º XXXXX, a fls. 54v do Livro B-XX, sobre a qual está construído o prédio [Endereço(2)], e uma quarta, com a área de 495.34 m2, descrita na mesma Conservatória sob o n.º XXXXX, a fls. 103 do Livro B-XX, pelo prazo de 50 anos a contar de 01.01.1944 (já renovado por um período de 10 anos, a contar de 01.01.1994, e por outro período de 10 anos a contar de 01.01.2004), com a taxa anual de ocupação, nos primeiros 10 anos, de MOP$0.09 por m2, a rever de 10 em 10 anos pela Comissão de Terras, paga adiantadamente de 1 a 15 de Janeiro de cada ano, para manter uma estância de madeira, bem como os prédios [Endereço(1)] a [Endereço(2)], por escritura de X.XX.1950, lavrada a fls. 67 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º XX da Repartição dos Serviços de Fazenda.
VI. Quando do registo da aquisição do direito a favor da A. na Conservatória do Registo Predial – inscrição n.º XXXX, fls. 181 do Livro F-X, determinada pela Ap. 11 de XX.XX.1950 –, que teve por título a referida escritura, deveria ter sido feita oficiosamente a anexação das descrições relativas aos quatro prédios, pois objecto da concessão era um terreno, composto dos prédios descritos sobre esses quatro números, pois o art. 219.º do Código do Registo Predial [Decreto n.º 17070 de 04.07.1929], assim o impunha.
VII. Um terreno onde estão implantados edifícios, que servem de loja à estância de madeiras explorada no terreno, é um prédio urbano, à altura da aquisição (1950) e desde então até ao presente – entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do art. 374.º do Código de Seabra, em vigor em 1950.
VIII. A A. tem a seu favor as presunções legais juris tantum estabelecidas nos art.s 1178.º, n.º 2 – que estabelece que a pessoa que tem título está na posse do direito desde a data do mesmo título –, 1193.º, n.º 1 – o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, se inexistir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse – ambos do C.C. e no art. 7.º do Código do Registo Predial – o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito –, resultantes da posse titulada, ainda que o transmitente, no caso L em 1950, houvesse continuado a deter a coisa, a título de arrendatário –, ao abrigo do constituo possessório, previsto no art.1188.º, n.º 1, do C.C.
IX. A A. logrou provar que, desde a venda, se passou a comportar como dona do terreno (art. 7.º-B da Base Instrutória), pagou os encargos inerentes (art. 7.º-C da Base Instrutória), arrenda-o e recebe a renda (art. 7.º-D da Base Instrutória), com a convicção de não lesar os direitos de outrem (art. 7.º-H da Base Instrutória), ou seja, que está a exercer uma posse titulada e de boa fé, desde a data em que adquiriu o terreno.
X. Os RR., nos termos da lei, estão pois obrigados a reconhecer que o direito de propriedade desmembrado e o direito parcelar de arrendamento concedido, relativos ao terreno, composto pelas quatro descrições, são, respectivamente, da titularidade da Região Administrativa Especial de Macau e da A..
XI. Os RR. só poderiam ser absolvidos do dever de restituir o terreno a A. se provassem a existência de uma relação obrigacional que lhes concedesse o direito de reter ou deter o terreno cuja restituição a A. pediu.
XII. A “natureza” dos prédios que consta da descrição na Conservatória do Registo Predial de Macau é uma “natureza fiscal”, que provém do Regulamento da Contribuição Predial Urbana (art. 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 19/78/M de 12.08), sendo considerados urbanos os prédios que devam constar inscritos na Matriz Predial e rústicos os que o não devam –, que em nada coincide com a classificação dos prédios em rústicos e urbanos que consta do art. 195.º do Código Civil – que seria sempre a que relevaria para determinação do regime do arrendamento.
XIII. Só constam provados factos para integrar um contrato de arrendamento da totalidade do terreno e prédios nele implantados celebrado, para fins comerciais, com H, feito por forma de escrito particular em 02.06.2003, renovado, igualmente por escrito particular, pelo prazo de dois anos, com termo em 31.05.2007.
XIV. Este contrato, foi denunciado pela A. por carta registada de 15 de Fevereiro de 2007, efectivamente recebida pelo arrendatário, com a antecedência de 90 dias – antecedência para a denúncia exigida para contratos ou renovações de prazo igual ou superior a um ano e inferior a seis anos –, relativamente ao termo do prazo do contrato ou da renovação, pelo que se tem de ter por finda a relação contratual de arrendamento entre a A. e o 1.º R., H, única existente – entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação dos artigos 1038.º e 1039.º do C.C.

Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Foram dados como provados os seguintes factos:
- A A. é uma associação reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa. (A dos factos assentes)
- O prédio com [Endereço(1)], com a área de 83,24m2, está descrito sob o n.º XXXXX, a fls. 54 do Livro B-XX na Conservatória do Registo Predial de Macau. (B dos factos assentes)
- O prédio com [Endereço(2)], com a área de 66,44m2, está descrito sob o n.º XXXXX, a fls. 54v do Livro B-XX na Conservatória do Registo Predial de Macau. (C dos factos assentes)
- Existe prédio [Endereço(3)], com a área de 495,34m2, descrito sob o n.º XXXXX, a fls. 103 do Livro B-XX na Conservatória do Registo Predial de Macau. (D dos factos assentes)
- Existe prédio [Endereço(3)], com a área de 1.110,32m2, descrito sob o n.º XXXX, a fls. 213 do Livro B-XX na Conservatória do Registo Predial de Macau. (E dos factos assentes)
- Por inscrição n.º XXXX, Livro FX, a fls. 181 de XX/XX/1950, foi registada na Conservatória do Registo Predial de Macau, a favor da A., o direito de concessão por arrendamento sobre os prédios referidos em B) a E). (F dos factos assentes)
- Por escritura de XX de X de 1948, lavada a fls. 35v do Livro de Notas para Escrituras diversas n.º XXX do Notário M, L declarou vender à A. o direito de ocupação temporária sobre os prédios referidos em B) a E) pelo preço de MOP$8.000,00. (G dos factos assentes)
- Pelo mesmo documento, a A. declarou que aceitava o declarado pelo L. (H dos factos assentes)
- Por escritura de XX de X de 1950, lavrada a fls. 67 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º XX da Repartição dos Serviços de Fazenda, foi autorizada pelo Governo de Macau a transmissão do direito de ocupação temporária sobre os prédios referidos em B) a E) à A. pelo L. (I dos factos assentes)
- Os prédios com [Endereço(1)] e [Endereço(2)] encontram-se inscritos na Matriz Predial do Concelho de Macau sob os artigos n.ºs XXXXX e XXXXX. (J dos factos assentes)
- Em 02/06/2003, a A. e 1º R. celebraram um contrato de arrendamento nos termos do qual o A. arrendou os prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)], ao 1º Réu para finalidade comercial, pela renda mensal de MOP$1.800,00 (mil e oitocentas patacas) e pelo prazo de dois anos. (K dos factos assentes)
- O contrato de arrendamento referido em K) foi renovado por mais dois anos, com actualização da renda para MOP$2.250,00. (L dos factos assentes)
- Nos prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)], foram instalados os estabelecimentos comerciais denomina dos por “Agência comercial XXXX” e “XXXX”. (M dos factos assentes)
- Os dois estabelecimentos comerciais acham-se inscritos no cadastro industrial sob os nºs XXXXX e XXXXX em nome do 1º R, H. (N dos factos assentes)
- Ocorreu um grande incêndio na noite de 10 de Outubro de 1960, os prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)] foram completamente arruinados. Av. (O dos factos assentes)
- A A. conhece o facto referido em O) dos factos assentes. (P dos factos assentes)
- O 1º Réu reconstruiu tais prédios no local original, incluindo quadro paredes, portão, tectos, quartos e casa de banho, etc. (Q dos factos assentes)
- O 1º Réu efectuou os seguros contra o risco de incêndio dos prédios. (R dos factos assentes)
- O 1º Réu pediu o estabelecimento do abastecimento de água. (S dos factos assentes)
- O 1º Réu pediu o estabelecimento do abastecimento de electricidade. (T dos factos assentes)
- O 1º Réu requereu a instalação de telefone. (U dos factos assentes)
- O 1º Réu pagava rendas à Autora. (V dos factos assentes)
- Desde 1948, L e a sua família vêm utilizando os prédios mencionados em B) a E) dos factos assentes para a exploração de uma estância de madeiras, mediante o pagamento de uma determinada quantia monetária a título de renda à Autora. (art. 1.º da Base Instrutória)
- Em 15 de Fevereiro de 2007, a Autora enviou carta registada ao 1º Réu que a recebeu, em que manifestou a intenção de pôr em termo o contrato de arrendamento mencionado em K) para o dia 31 de Maio de 2007. (art. 2.º da Base Instrutória)
- O 1º R. recusou-se a entregar referidos prédios mencionados em B) a E) livre e devoluto. (art. 3.º da Base Instrutória)
- Os Réus arrogaram-se ser proprietários dos prédios referidos em D) e E) dos factos assentes. (art. 4.º da Base Instrutória)
- Os RR. enviaram à A. cartas com declaração de seguinte teor: “através de actos impróprios pretender, o A. subtrai-lhe o terreno, de haver aproveitado brecha da lei para registar a seu favor mil e setecentos e tal metro quadrados, quando só lhe foram vendidos cerca de cento e cinquenta, pelo seu antepassado L, de usurpar o terreno e defraudar os elementos da família X”. (art. 5.º da Base Instrutória)
- Os Réus fizerem declarações com o mesmo teor, em conferências de imprensa, em artigos de jornais chineses locais e cartazes afixados nos prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)] (art. 6.º da Base Instrutória)
- O teor de tais declarações é susceptível de atingir a credibilidade, prestígio e confiança que a maioria da população de Macau confere à Autora (art. 7.º da Base Instrutória)
-A A. desde a venda mencionada em G) dos factos assentes tomou conta dos prédios em causa. (art. 7.º-A da Base Instrutória)
- E passou a comportar-se como sua dona. (art. 7.º-B da Base Instrutória)
- Pagando os encargos inerentes, como as rendas devidas pelo terreno à Região Administrativa Especial de Macau. (art. 7.º-C da Base Instrutória)
- Não pagando contribuição predial pelos prédios por estar isenta do pagamento de tal imposto. (art. 7.º-D da Base Instrutória)
- A Autora arrenda os prédios e recebe as respectivas rendas. (art. 7.º-E da Base Instrutória)
- Com a convicção de não lesar os direitos de outrem. (art. 7.º-H da Base Instrutória)
- Autora pretende construir, nos prédios referidos em B) a E) dos factos assentes, um edifício, em regime de propriedade horizontal, no âmbito dos contratos de desenvolvimento para habitação (art. 8.º da Base Instrutória)
- Para o efeito, tendo solicitado à DSSOPT a planta de alinhamento oficial que defere os condicionalismos fixados à construção no local (art. 9.º da Base Instrutória)
- O atraso na construção significa um acréscimo no preço das obras de demolição e construção (art. 12.º da Base Instrutória)
- Dada a taxa de inflação nos custos dos materiais e mão de obra que se verifica em Macau (art. 13.º da Base Instrutória)
- A Autora aos Réus não deu nenhum objecto ou dinheiro necessário para a reconstrução dos dois prédios referidos em Q) dos factos assentes. (art. 15.º da Base Instrutória)
- Ao longo dos anos, para construir no terreno em causa várias casas de ferro com tecto destinadas ao depósito de madeiras e ao estacionamento de veículos, os Réus compraram materiais de construção, às suas expensas, tendo suportado parte destas com a indemnização que tinha recebido de seguradora. (art.s 16.º e 22º da Base Instrutória)
- Os Réus têm residido nos prédios referidos em B) a E) dos factos assentes e têm utilizado os mesmos para a exploração de uma estância de madeiras até à presente data. (art. 17.º da Base Instrutória)

3. Direito
Com o presente recurso pretendem os recorrentes a revogação do Acórdão recorrido na parte respeitante à restituição à Autora dos dois prédios rústicos sem número e descritos na Conservatória do Registo predial sob os n.ºs XXXXX e XXXX.
E foram suscitadas as seguintes questões:
- Oposição dos fundamentos com a decisão;
- Nulidade do Acórdão nos termos da al. c) do art.º 571.º do CPC;
- Insuficiência da matéria de facto.
E impugnam ainda os recorrentes o fundamento subsidiário deduzido pelo Tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão, que se refere à denúncia do contrato de arrendamento.

3.1. Da oposição dos fundamentos com a decisão
Alegam os recorrentes que “o fundamento da improcedência do recurso dos Réus quanto à usucapião do domínio útil que o Tribunal a quo usou a fls. 2004 para conceder provimento ao recurso da Autora sobre a restituição dos dois prédios s/n ora em causa, opõe-se, …, à própria decisão de provimento, por essa decisão de provimento pressupor exactamente o fundamento oposto (no que respeita à existência e objecto da relação de arrendamento) àquele no qual também se funda a decisão de improcedência do supra referido recurso dos Réus”.
Na óptica dos recorrentes, para efeitos do julgamento do recurso quanto à usucapião do domínio útil, o Tribunal recorrido pressupôs a existência de uma relação de arrendamento entre os Réus e a Autora, enquanto considera não existir essa relação para efeitos do julgamento do recurso sobre a restituição dos dois prédios em causa.
Vamos ver se assiste razão aos recorrentes.
Ora, constata-se no Acórdão recorrido, a fls. 2002 dos autos, que o Tribunal de Segunda Instância decide manter a decisão de 1.ª instância, que absolveu a Autora do pedido reconvencional formulados pelos Réus relativo à aquisição de domínio útil dos terrenos por usucapião, porque julga não verificado um dos requisitos necessários para o efeito, uma vez que, não obstante se dar como provado que, desde 1948, L e a sua família vêm utilizado os terrenos em causa para a exploração de uma estância de madeiras, mediante o pagamento de uma determinada quantia monetária a título de renda à Autora, e que os Réus estão a utilizar os terrenos para exploração de uma estância de madeiras, não ficou provado nenhum facto revelador de que os Réus têm feito como se fossem donos, faltando assim o animus da posse (de usar o objecto como é o possuidor).
Nota-se aqui que o Tribunal recorrido não faz nenhuma referência à existência ou não da relação de arrendamento entre os Réus e a Autora. O que pretende mostrar é que os Réus não agem como donos.
Daí que não corresponde à verdade a alegação dos recorrentes de que “para efeitos do julgamento do recurso quanto à usucapião do domínio útil, o Tribunal a quo pressupõe a existência de uma relação de arrendamento entre os Réus e a Autora”.
Por outro lado e em relação à restituição dos dois prédios rústicos, o Tribunal recorrido salienta que na matéria de facto assente não consta nenhum facto sobre a que título estão os Réus a utilizar os dois terrenos rústicos, não obstante ficar provado que desde 1948 L e a sua família têm utilizado os quatro terrenos (incluindo os dois rústicos) para exploração de uma estância de madeiras, pagando à Autora uma determinada quantia como renda, sem que no entanto haja qualquer facto respeitante à ralação familiar entre os Réus e L. E o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e o 1.º Réu refere-se aos terrenos [Endereço(1)] e [Endereço(2)], não abrangendo os dois terrenos rústicos em causa.
Acresce ainda que a renda recebida pela Autora desde 2 de Junho de 2003 diz respeito aos terrenos [Endereço(1)] e [Endereço(2)], não havendo nenhum facto no sentido de a Autora receber dos Réus a renda relativa aos dois terrenos rústicos, tendo também os Réus negado ter arrendado tais terrenos rústicos.
Assim sendo, não se pode considerar existente a relação de arrendamento, constituída entre a Autora e os Réus, sobre os dois prédios rústicos.
Ora, face ao acima exposto pelo Tribunal recorrido, é evidente não verificada a contradição entre os fundamentos e a decisão.
É certo que o Tribunal recorrido fundamenta a asserção no facto de desde 1948 L e a sua família terem utilizado os quatro prédios (incluindo os dois rústicos) mediante o pagamento duma determinada quantia. Isto serve apenas para fundamentar que os Réus não agem como donos. Pretendem os Réus agir como arrendatários, mas o Tribunal não considera haver arrendamento sobre os dois prédios rústicos. Não há aqui qualquer contradição entre uma coisa e outra.
Improcede o argumento dos recorrentes.

3.2. Da nulidade do Acórdão recorrido
Na perspectiva dos recorrentes, a matéria provada nos factos assentes (nomeadamente na alínea V), nas respostas aos quesitos da Base Instrutória (designadamente quesitos 1.º, 7.º -E, 16.º e 22.º e 17.º) e na fundamentação da sentença recorrida onde se funda o juízo de facto quanto à existência e objecto da relação de arrendamento obsta, face ao disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, à decisão de revogar a absolvição dos Réus do pedido de restituição dos dois prédios s/n descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.os XXXXX e XXXX, sendo por conseguinte nulo o Acórdão recorrido, nesta parte.
A tese dos recorrentes baseia-se na convicção de que, face aos factos provados, o Tribunal considera existir a relação de arrendamento, constituída entre os Réus com a Autora, sobre os dois terrenos rústicos em causa.
Na verdade, o que ficou provado, com interesse para a análise da questão colocada pelos recorrentes, é o seguinte:
- Em 02/06/2003, a A. e 1º R. celebraram um contrato de arrendamento nos termos do qual o A. arrendou os prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)], ao 1º Réu para finalidade comercial. (K dos factos assentes)
- O 1º Réu pagava rendas à Autora. (V dos factos assentes)
- Desde 1948, L e a sua família vêm utilizando os prédios com [Endereço(1)] e [Endereço(2)], descritos na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os n.ºs XXXXX e XXXXX, bem como os dois prédios [Endereço(3)], descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXX, para a exploração de uma estância de madeiras, mediante o pagamento de uma determinada quantia monetária a título de renda à Autora. (art. 1.º da Base Instrutória e B a E dos factos assentes)
- A Autora arrenda os prédios e recebe as respectivas rendas. (art. 7.º-E da Base Instrutória)
- Ao longo dos anos, para construir no terreno em causa várias casas de ferro com tecto destinadas ao depósito de madeiras e ao estacionamento de veículos, os Réus compraram materiais de construção, às suas expensas, tendo suportado parte destas com a indemnização que tinha recebido de seguradora. (art.s 16.º e 22º da Base Instrutória)
- Os Réus têm residido nos quatro prédios acima referidos e têm utilizado os mesmos para a exploração de uma estância de madeiras até à presente data. (art. 17.º da Base Instrutória)
Ora, da factualidade transcrita e dos demais factos provados não se pode extrair a existência de uma relação de arrendamento, constituída entre os Réus com a Autora, sobre os dois terrenos rústicos em causa.
Ora, não obstante ficar provadas a relação de arrendamento entre a A. e o 1º Réu sobre os prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)] bem como a utilização, desde 1948, por L e pela sua família, dos quatro prédios (incluindo os prédios [Endereço(1)] e [Endereço(2)] e dois prédios s/n rústicos), para exploração de uma estância de madeiras, mediante o pagamento de renda à Autora, certo é que não se pode tirar daí a conclusão quanto à relação de arrendamento entre os Réus com a Autora sobre os dois terrenos rústicos, face à falta de factos que revelem a relação familiar entre os Réus e L.
Não há nenhuma oposição entre os fundamentos e a decisão, alegada pelos recorrentes com a referência ao disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil.
O Acórdão recorrido limitou-se a julgar de direito, com base nos fatos dados como assentes, não tendo modificado o julgamento de factos.
Daí que, improcedente o pressuposto indicado pelos recorrentes para imputar a nulidade do Acórdão recorrido, há que julgar não verificado o vício alegado.

3.3. Da Insuficiência da matéria de facto
Alegam ainda os recorrentes que, uma vez que o Tribunal recorrido entendeu faltarem factos essenciais à fundamentação da decisão de direito proferida pelo Tribunal de primeira instância, designadamente relativos ao título a que os Réus usam os dois terrenos em causa, à relação familiar entre o L e os Réus, à extensão do objecto do contrato de arrendamento de 02/06/2003 e ao recebimento de renda pela Autora pelos dois terrenos em causa, devia ter anulado a sentença e determinado a ampliação do julgamento aos factos tidos em falta para fundamentar a decisão do direito, conforme o disposto no n.º 4 do art.º 629.º do CPC, sendo certo que a insuficiência da matéria de facto fixada pelo Tribunal de primeira instância é uma questão de conhecimento oficioso para o Tribunal de recurso.
Ora, é verdade que a norma contida no n.º 4 do art.º 629.º do CPC confere ao Tribunal de Segunda Instância o poder de anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, “quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
E a necessidade de ampliação da matéria de facto verifica-se quando há insuficiência de factos provados para a decisão, o que ocorre quando o tribunal de 1.ª instância não investigou os factos essenciais, de entre os quais constantes do art.º 5.º do CPC, designadamente, quando não levou à base instrutória os factos necessários (independentemente se houve reclamação e qualquer que fosse a decisão sobre a reclamação) e quando, na audiência de julgamento, o presidente do tribunal não providenciou pela ampliação da base instrutória, nos termos do art.º 553.º n.º 2, al. f) do CPC.1
Por outras palavras, a insuficiência da matéria de facto só existe quando as partes alegaram factos que o tribunal não investigou. O que não é o nosso caso, pois apenas não se provaram os factos necessários, para além de os fatos que agora se entende essenciais nem sequer terem sido alegados pelas partes, conforme o teor das peças processuais apresentadas pelas partes na 1.ª instância.
A alegação dos recorrentes não tem nada a ver com a insuficiência da matéria de facto, pelo que improcede a questão suscitada.

3.4. Da denúncia do contrato de arrendamento
Defendem os recorrentes que a relação de arrendamento entre a Autora e os Réus relativamente aos prédios especificados nas alíneas B) a E) dos Factos Assentes não foi denunciada a todos a quem devia ter sido, nem pela forma e no prazo legais, o que obstava ao provimento do recurso da Autora na parte relativa à restituição dos dois terrenos descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.os XXXXX e XXXX.
Ora, tal com resulta claramente do Acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância revogou a decisão de 1.ª instância que absolvera os Réus do pedido de restituição dos dois terrenos rústicos porque os Réus não provaram ter arrendamento com a Autora, sendo esta titular do domínio útil.
E para reforçar esta parte da decisão, o Acórdão recorrido acrescentou que, mesmo que se entendesse que existisse a relação de arrendamento sobre os dois terrenos rústicos, não se aplicaria o disposto no art.º 1039.º n.º 1, al. a) do Código Civil, pelo que os Réus teriam obrigação de desocupar os terrenos e restituí-los à Autora.
Impugnam os recorrentes este fundamento subsidiário.
No entanto, tratando-se do fundamento deduzido a título subsidiário e mantendo-se erecto o fundamento principal, é de considera inútil conhecer desta questão, uma vez que, independentemente da resolução da questão, sempre se manteria a decisão do Acórdão recorrido, que revogou a sentença de 1.ª instância na parte que absolvera os Réus do pedido de restituição dos dois terrenos rústicos.
Não se conhece da questão.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
  
Macau, 19 de Fevereiro de 2014

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2.ª edição, 2010, p. 703 e 704.
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Processo n.º 56/2013