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Processo n.º 18/2012 Data do acórdão: 2012-3-8 (Autos de recurso penal)
  Assuntos:
– julgamento da matéria de facto
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– regra da experiência
– prova do fim da aquisição da droga
– presunções judiciais
– acusação
– contestação escrita
– tema probando
– fundamentação fáctica da decisão
– especificação de factos não provados
– art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– tráfico de estupefacientes
– prevenção geral do crime
– medida da pena
S U M Á R I O
1. Não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do vigente Código de Processo Penal, se o Tribunal ad quem, após examinados crítica e globalmente todos os elementos probatórios constantes dos autos e referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, concluir que não é patente que o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal a quo tenha violado alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou alguma norma atinente à prova legal, ou quaisquer legis artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto.
2. O acusado facto sobre o fim da aquisição da droga pelo arguido pôde razoavelmente ter sido deduzido pelo Tribunal a quo, com recurso a presunções judiciais, a partir de outros factos dados por provados, tais como as deslocações intensamente frequentes do arguido ao Interior da China apenas em meia hora de tempo em cada deslocação, e a quantidade não pouca da Ketamina pura, em 11,834 gramas líquidos, detida pelo arguido ao passar nesta vez pelo posto alfandegário da Porta do Cerco e apreendida nos autos.
3. Se na contestação escrita então apresentada à acusação, o arguido não invocou nenhum outro facto para além dos factos inicialmente descritos na acusação pública, todo o tema probando do processo penal já se encontrou delimitado na factualidade imputada pelo Ministério Público.
4. Daí que estando já provada toda essa factualidade acusada, é justo e legal ao Tribunal a quo afirmar na fundamentação fáctica do seu acórdão, em jeito de cumprimento do seu dever de especificação de factos não provados inclusivamente imposto no n.o 2 do art.o 355.o do Código de Processo Penal, que não havia factos importantes para o julgamento a provar.
5. A já prova positiva do fim da aquisição e detenção da droga pelo arguido como destinada ao fornecimento a outrem, prejudica irremediavelmente a tese fáctica alegada oralmente pelo arguido na audiência de julgamento feita perante o Tribunal a quo, de que a droga foi adquirida para ser consumida por ele próprio.
6. Não sendo o arguido delinquente primário, nem tendo ele admitido materialmente a prática do crime de tráfico ora em causa (por ter negado o fim da compra da droga como destinada ao fornecimento a outrem), atenta também a quantidade concreta da Ketamina pura em questão, e ponderadas as elevadas exigências da prevenção geral desse delito, é inconcebível qualquer hipótese de reduzir mais ainda a pena de prisão aplicada pelo Tribunal recorrido.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 18/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Em 30 de Novembro de 2011, foi proferido acórdão em primeira instância no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR3-11-0153-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por força do qual o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de sete anos de prisão (cfr. o teor desse acórdão, a fls. 169 a 172 dos presentes autos correspondentes).
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para imputar concreta e materialmente ao Tribunal a quo o seguinte como objecto do recurso:
– 1) o erro notório na apreciação da prova referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do vigente Código de Processo Penal (CPP) (porquanto inexiste nos autos qualquer prova directa ou indirecta de que a droga por ele detida se destine ao fornecimento a outrem, sendo certo que ele próprio já declarou que a droga detida era para seu consumo pessoal, e que o facto provado de frequente vaivém dele pela Porta do Cerco não pode servir para comprovar que a droga detida não se destine ao seu consumo pessoal);
– 2) e como questão subsidiária: a falta de especificação de factos não provados ao arrepio do art.o 355.o, n.o 2, do CPP, com consequente nulidade do acórdão recorrido nos termos do art.o 360.o, alínea a), do CPP (visto que o Tribunal a quo não chegou a indicar no seu aresto, se tenha sido dado como não provado o facto alegado pelo próprio arguido na audiência de julgamento aí feita, de que a droga por ele detida se destinava ao seu consumo e não ao fornecimento a outrem);
– 3) e seja como for: o excesso na medida concreta da pena (pois defende ele que a duração da pena de prisão justa para o seu caso se deva situar entre quatro e quatro anos e meio).
Pediu, pois, na parte final da sua motivação (de fls. 189 a 192), o reenvio do processo para novo julgamento, e, subsidiariamente, a declaração da nulidade do acórdão recorrido, ou a nova medida da pena.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 196 a 199v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 208 a 210v), pugnando materialmente pela manutenção do julgado.
Feito subsequentemente o exame preliminar e corridos os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento.
Cumpre, pois, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, resulta que o Tribunal Colectivo a quo, no texto do seu acórdão (constante de fls. 169 a 172) ora recorrido pelo arguido, acabou por dar por provada toda a factualidade descrita na acusação pública (deduzida a fls. 108 a 109), de acordo com a qual, e na sua essência:
– desde pelo menos o dia 1 de Dezembro de 2010, o arguido tem-se deslocado, com intensa frequência, por entre Macau e Zhuhai, com meia hora de tempo em cada deslocação, com o objectivo de levar droga do Interior da China para Macau e de a fornecer a outrem;
– em 11 de Março de 2011, às 19:45, no posto alfandegário da Porta do Cerco, nas cuecas vestidas pelo arguido, que acabou de entrar em Macau, foi descoberto, pelo pessoal alfandegário, um saco de pó branco, com 11,834 gramas líquidos de Ketamina no seu interior;
– tal droga foi adquirida pelo arguido cerca das 19:00 desse dia em Zhuhai a um indivíduo de identidade não apurada pelo preço de novecentas patacas, com o fim de a fornecer a indivíduos de identidade não apurada;
– o arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, com o propósito de praticar a conduta acima referida;
– a compra e a aquisição da droga acima referida pelo arguido tinha por fim o fornecimento da mesma a outrem;
– o arguido sabia da natureza e características da droga referida;
– o arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e punível.
Na fundamentação fáctica do seu acórdão, o Tribunal a quo fez constar ainda o seguinte em chinês (na página 4 do mesmo texto decisório, a fl. 170v) (e ora traduzido literalmente para português pelo relator):
– <<[…]
Factos não provados:
Sem factos importantes para o julgamento a provar.
*
Julgamento dos factos:
O arguido prestou declarações na audiência de julgamento, negou o fornecimento da droga a outrem, afirmou que destinava toda a droga ao consumo pessoal.
O registo de entrada e saída fronteiriça do arguido mostra a situação de entrada e saída fronteiriça intensamente frenquente do arguido.
O pessoal alfandegário prestou declarações na audiência de julgamento, relatando clara e objectivamente o decurso da intercepção e investigação do arguido e da descoberta da droga no corpo do arguido.
O relatório de análise laboratorial junto aos autos comprova a natureza e a respectiva quantidade da droga contida na substância apreendida.
Depois de feita a análise objectiva, em global, das declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas na audiência de julgamento, conjugadas com a prova documental, o apreendido como prova da coisa, e outros elementos probatórios tudo examinados no decurso da audiência de julgamento, o presente Tribunal Colectivo deu por provados os factos acima referidos>>.
Por outra banda, do exame do processado anterior, sabe-se que o arguido chegou a apresentar (a fl. 150) contestação escrita à acusação, na qual pediu ao Tribunal que julgasse com justiça o caso, sem ter alegado algum outro facto para além dos factos descritos no libelo acusatório.
O Tribunal a quo deu ainda por provado que:
– segundo o certificado do registo criminal, o arguido tem antecedentes criminais: no Processo n.o CR1-08-0303-PCS, foi condenado em 17 de Dezembro de 2009, pela prática, em 4 de Maio de 2005, de um crime de uso de documento alheio, na pena de 120 dias de multa, já paga pelo arguido;
– o arguido declara que antes de estar preso preventivamente, trabalha como operário de transporte, com rendimento mensal de cerca de nove mil dólares de Hong Kong, que precisa de contribuir “despesas domésticas” à família, e que tem por habilitações literárias o 2.o ano do ensino secundário.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido ora recorrente começou por assacar ao Tribunal recorrido o cometimento do erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, entende o presente Tribunal ad quem, após examinados crítica e globalmente todos os elementos probatórios constantes dos autos e referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, que não é patente que o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal a quo tenha violado alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou alguma norma atinente à prova legal, ou quaisquer legis artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, sendo, pois, razoável a convicção formada por esse Tribunal recorrido, pelo que o arguido não pode aproveitar o mecanismo de recurso ordinário do acórdão da Primeira Instância para pretender sindicar gratuitamente, ao arrepio do princípio plasmado no art.o 114.o do CPP, a livre apreciação da prova então feita, sendo certo que o acusado facto sobre o fim da aquisição da droga pelo arguido pôde razoavelmente ter sido deduzido, com recurso a presunções judiciais, a partir de outros factos dados por provados, tais como as deslocações intensamente frequentes ao Interior da China apenas em meia hora de tempo em cada deslocação, e a quantidade não pouca da Ketamina pura, em 11,834 gramas líquidos, apreendida nos autos (com o que fica prejudicada a tese fáctica defendida pelo arguido na sua motivação a respeito do vício de erro notório na apreciação da prova).
E agora no concernente à subsidiariamente arguida nulidade do acórdão por falta de especificação de factos não provados: a razão também não está no lado do arguido, dado que o dever de especificação de factos não provados, inclusivamente imposto no n.o 2 do art.o 355.o do CPP, já foi materialmente cumprido in casu pelo Tribunal a quo, ao ter afirmado que não havia factos importantes para o julgamento a provar, depois de ter elencado, um por um, todos os factos acusados como factos provados.
De facto, como na contestação escrita então apresentada à acusação, o arguido não invocou nenhum outro facto para além dos factos inicialmente descritos em concreto na acusação pública, todo o tema probando do processo penal subjacente já se encontrou delimitado na factualidade acusada pelo Ministério Público, pelo que estando já provada toda essa factualidade imputada ao arguido (conforme o que se pode vê nitidamente na fundamentação fáctica do aresto ora sob impugnação), é justa e legal tal afirmação genérica feita pelo Tribunal a quo sobre factos não provados.
Aliás, como uma nota à parte, a já prova positiva do fim da aquisição e detenção da droga pelo arguido como destinada ao fornecimento a outrem, prejudica irremediavelmente a tese fáctica alegada oralmente pelo arguido na audiência de julgamento então feita, de que a droga foi adquirida para ser consumida por ele próprio.
Resta agora apreciar a última questão posta no recurso, ligada à medida da pena.
O crime por que vinha condenado o recorrente é punível com prisão de três a quinze anos. E o Tribunal a quo fixou a pena concreta aos sete anos de prisão.
Não sendo o arguido delinquente primário, nem tendo ele admitido materialmente a prática do crime de tráfico ora em causa (por ter negado o fim da compra da droga como destinada ao fornecimento a outrem), atenta também a quantidade concreta da Ketamina pura em questão, e ponderadas as elevadas exigências da prevenção geral desse delito, é inconcebível qualquer hipótese de reduzir mais ainda tal pena de prisão aplicada pelo Tribunal recorrido.
Há-de improceder, pois, o recurso in totum.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido, com seis UC de taxa de justiça, e duas mil patacas de honorários ao seu Exm.o Defensor Oficioso, ora a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 8 de Março de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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