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Proc. nº 867/2010
Recurso Cível e Laboral
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 01 de Março de 2012
Descritores:
-Nulidade de sentença
-Omissão de pronúncia
-Contrato de concessão de crédito para jogo
-Obrigações naturais; Obrigações civis


SUMÁRIO:

I- A nulidade por omissão de pronúncia prevista no art. 571º, nº1, al. d), do CPC só se verifica quando o tribunal ignora pura e simplesmente qualquer questão que devesse ser apreciada por essencial ao resultado ou desfecho da causa, não já em relação a alguns dos fundamentos invocados pelas partes

II- Por isso se diz que, mesmo sem abordar algum dos fundamentos alinhados por elas, não é nula a sentença se esta contiver todos os argumentos de facto e de direito que a sustentam, ainda que, porventura, em erro de julgamento.

III- Do contrato de concessão de crédito para posterior obrigação em jogo ou aposta não resultam obrigações naturais, mas sim obrigações civis.










Proc. Nº 867/2010
(Recurso Cível e Laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, na execução que contra si e B foi intentada por “C International Sociedade Unipessoal Limitada”, veio deduzir embargos de executado.
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Prosseguiu o processo os seus normais trâmites, vindo a ser proferida sentença que julgou improcedentes os embargos.
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É dessa decisão que ora vem interposto pela embargante o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. A embargante alegou que a execução foi instaurada contra ambas as executadas com base em documentos particulares, assinados pelos devedores, que importam constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.
II. Mas que a embargante assinou os documentos em causa na qualidade de fiadora.
III. Razão pela qual os referidos documentos não constituem títulos executivos contra a embargante na medida em que não são documentos particulares que importam constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias suas.
IV. Devendo, como tal, a execução contra a embargante ser declarada extinta.
V. Sobre esta matéria, porém, a decisão recorrida não se pronunciou.
VI. Pelo que é nula nessa parte nos termos do disposto no nº 2 do artigo 563º e na alínea d) do nº 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil.
VII. A certidão emitida pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos junta com a contestação como doc.1 e os documentos juntos aos autos a 14 de Abril de 2010 não provam que, nos dias 5 e 6 de Janeiro de 2009, a minuta dos referidos contratos se encontrava aprovada pelo Governo e que um dos exemplares dos mesmos foi enviado pela XXX Gaming (Macau) Limited à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos no prazo de 15 dias a contar da data da sua celebração.
VIII. A recorrente considera, como tal, que a matéria de facto mencionada foi incorrectamente julgada.
IX. E que os referidos meios de prova impunham, sobre a matéria em causa, decisão diversa da recorrida.
X. Nomeadamente que, da prova produzida nos autos, não resultava que a embargada estivesse, nos dias 5 e 6 de Janeiro de 2009, habilitada a exercer a actividade de concessão de crédito.
XI. Donde se conclui que a concessão de crédito pela embargada à executada B constitui, necessariamente, um crime de usura para jogo nos termos do disposto no artigo 13º da Lei nº 8/96/M, de 22 de Julho.
XII. Sendo, por isso, a mesma nula, assim como necessariamente nulos os títulos com base nos quais foi a presente execução foi instaurada, pelo que deveria esta ter sido declarada extinta.
XIII. Ainda que a concessão de crédito pela embargada à executada B fosse lícita, a mesma seria apenas fonte de obrigações naturais de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 1171º do Código Civil de Macau.
XIV. E, corno é sabido, o cumprimento das obrigações naturais não é judicialmente exigível segundo o disposto no artigo 396º do Código Civil de Macau.
XV. Não podendo a dívida ser judicialmente exigida, deveria, igualmente, a execução à qual os presentes embargos correm por apenso ter sido declarada extinta.
Pelo que requer a V. Exas. se dignem alterar a sentença recorrida, julgando procedentes os presentes embargos e ordenando, consequentemente, a improcedência da execução que é objecto dos mesmos.
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Não houve contra-alegações.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
1. A exequente/embargada C INTERNATIONAL SOCIEDAD, E UNIPESSOAL, LIMITADA, com sede em Macau é uma sociedade unipessoal, que se dedica ao exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino, sendo titular da licença de promotor de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na RAEM com o n.º E136.
2. A XXX Jogos (Macau) é concessionária na RAEM da Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar.
3. A exequente/embargada celebrou, por escrito, com a XXX Jogos (Macau) em 25 de Março de 2008 e em 23 de Dezembro de 2009, dois contratos de “Autorização para concessão de crédito”, com os teores constantes dos documentos de fls. 34 a 51 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
4. A Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos da RAEM emitiu a certidão constante do apenso A) a fls. 16, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Nos dias 05 e 06 de Janeiro de 2009, exequente/embargada e a executada B celebraram no território de Macau quatro contratos de crédito para jogo de fortuna ou azar em casino com os n.º 08594,08618,08625 e 08617, constantes da execução em apenso, a fls. 7 e 8, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos.
6. Em conformidade com os aludidos quatro contratos, a exequente/embargada concedeu à executada B crédito para jogo na quantia global de (HKD$500.000,00).
7. Conforme acordado nesses quatro contratos, a executada/embargante ficou obrigada a devolver à Autora quantia igual à concedida no prazo de 7 dias após a data do empréstimo, findo o qual seriam devidos juros convencionais desde a data do vencimento até integral pagamento, calculados à taxa de 29,25% ao ano.
8. A executada/embargante A assinou os quatro contratos aludidos em 5. na qualidade de fiadora.
9. Desde a data de empréstimo até o momento actual, as executadas/embargantes não devolveram à exequente/ embargada qualquer quantia.
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III- O Direito
1- Da nulidade da sentença
A recorrente imputa em primeiro lugar à sentença a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC. O argumento utilizado foi o de que, a respeito do que a embargante havia suscitado na petição de embargos sobre a inexequibilidade do título - devido ao facto de os documentos apresentados à execução pela exequente não serem documentos particulares que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias suas, uma vez que foram assinados por si na qualidade de fiadora – nada a sentença se pronunciou.
Ora bem. A embargada também não tinha dito na petição inicial com que base legal é que invocou a inexequibilidade do título. Mas nós percebemos onde quis chegar: uma vez que os documentos dados à execução, na parte que lhe dizem respeito, eram documentos particulares por si assinados na qualidade de fiador, escapariam por isso à previsão do art. 677º, al. c), do C.P.C., ou seja, não seriam títulos executivos que contra si pudessem ser utilizados.
Não tem razão, porém.
Como é sabido, na mencionada disposição legal impõe-se ao juiz o dever de conhecer todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Portanto, a nulidade prevista na referida disposição legal só se verifica quando o tribunal ignora pura e simplesmente qualquer questão que devesse ser apreciada por essencial ao resultado ou desfecho da causa, não já em relação a alguns dos fundamentos invocados pelas partes (entre outros, no direito comparado, Acs. do STA de 6/1/77, in BMJ nº 263/187; de 10/02/2000, Proc.nº 41 166 e de 09/11/2000, Proc. Nº 46 454; Ac. STJ, de 5/05/2005, Proc. nº JTRP00037731.dgsi.Net). Por isso se diz que, mesmo sem abordar algum dos fundamentos alinhados por elas, não é nula a sentença se esta contiver todos os argumentos de facto e de direito que a sustentam, ainda que, porventura, em erro de julgamento, (Ac. do STA de 15/03/94, in Ap. Ao DR de 21/12/96, pag. 1271).
No caso em apreço, verdade é que a sentença não fez uma pronúncia expressa e especifica sobre o tema. Porém, na medida em que reconheceu que aqueles documentos colocavam a recorrente na qualidade de fiadora mercantil e, portanto, solidária devedora ao lado da co-executada, podendo a execução ser intentada contra ambas, nos termos do art. 505º, nºs 1 e 2 do CC, fez um juízo implícito acerca da exequibilidade.
Com esta conclusão, achou o julgador que de nada mais precisava para concluir pela exequibilidade (para tanto disse “…, sem necessidade de outras considerações, …”: fls. 56 verso).
Assim, improcede o recurso nesta parte (arts. 1º a 8º das alegações e conclusões I a VI).
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2- Do mérito da sentença
A seguir, a recorrente acomete a sentença de erro na apreciação da prova.
A este respeito, assevera que não resulta dos autos que nos dias 5 e 6 de Janeiro de 2009 a embargada (exequente “C International Sociedade Unipessoal Limitada”) estivesse habilitada a exercer a actividade de concessão de crédito. E assim sendo, é sua opinião que a concessão de crédito feita à executada B constituiria “crime de usura para jogo” nos termos do art. 13º da Lei nº 8/96/M, de 22/07, sendo por isso nula e, consequentemente, nulos também os títulos com base nos quais a execução foi instaurada.
A questão assim posta gira em torno do art. 8º, nº2 da Lei nº 5/2004, de 16/04/2004, normativo segundo o qual “As minutas dos contratos, dos seus documentos complementares e de quaisquer alterações a esses instrumentos estão sujeitas a aprovação do Governo, o qual pode determinar a alteração de qualquer cláusula das referidas minutas por razões de legalidade ou de interesse público”. Isto é, para a recorrente não estaria provado que naqueles dias 5 e 6 de Janeiro de 2009 a embargada estivesse autorizada a conceder crédito para jogo, o mesmo é dizer que as minutas dos contratos tivessem já sido aprovadas pelo Governo.
Para produzir esta afirmação, a recorrente parece, pois, abrigar-se no nº2 do art. 8º citado. E ela assenta na circunstância de o documento (certidão da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos) junto com a contestação na execução apenas ter sido emitido no dia 15 de Janeiro de 2010, sem atestar a data em que as minutas dos contratos foram aprovados.
Ora, dos documentos de fls. 109 e sgs., juntos na sequência do nosso despacho de fls. 106, resulta que a minuta dos contratos foi enviada em Agosto de 2007 e aprovada pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos por ofício de 27/08/2007.
Sendo assim, não podemos acompanhar a recorrente nas alegações nos arts. 9º a 23º e conclusões VII a XII.
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Por fim, a recorrente entende, mesmo por hipótese concedendo, que a actividade da embargada fosse lícita na concessão de crédito à executada, a mesma seria, ainda assim, apenas fonte de obrigações naturais de acordo com o disposto no art. 1171º, nº1, do C.C, cujo cumprimento não seria judicialmente exigível, de acordo com o previsto no art. 396º do C.C.
Mas nem aqui tem razão.
Veja-se o que o art. 1171º, nº1, do CC dispõe: “O jogo e a aposta constituem fonte de obrigações civis sempre que lei especial o preceitue, …; de contrário, o jogo e a aposta, quando lícitos, são mera fonte de obrigações naturais”.
O conceito de obrigação natural encontra-se no art. 396º do CC: “A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”.
Ora, em primeiro lugar, o que está aqui em causa não é uma obrigação emergente de jogo ou da aposta. O que está subjacente aos autos de embargo é a natureza de um contrato de concessão de crédito para posterior utilização em jogo ou aposta. Ou seja, estamos ainda num plano situado a montante, ou antes do jogo propriamente dito. Por tal motivo, nunca se poderia falar em obrigação natural porque esta é a que resulta já do próprio exercício do jogo.
Em segundo lugar, tal como reza o art. 4º da referida Lei nº 5/2004, “Da concessão de crédito exercida ao abrigo da presente lei emergem obrigações civis” (destaque nosso). Quer dizer, da concessão de crédito para a actividade do jogo nascem obrigações civis, as quais, por isso, podem ser exigidas judicialmente.
Improcedem, pois, as alegações 23ª a 25ª e respectivas conclusões XIII a XV.
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Pelo que se acaba de dizer, a sentença recorrida não merece reparo e tem que ser confirmada.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

TSI, 01 / 03 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan