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Proc. nº 788/2011
(Recurso Civil e Laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Maio de 2012
Descritores:
-Contrato
-Mora
-Perda de interesse no negócio
-Resolução do contrato

SUMÁRIO:
I- Tendo uma das partes contratantes que fazer acompanhar os artigos de vestuário que a outra contratante vendeu a um cliente seu em Itália de um certificado sanitário por si devidamente preenchido, é sua a responsabilidade se a encomenda não pôde ser levantada na alfândega por esse cliente da ré em virtude de tal documento estar incompleto e só o pôde ser um mês depois, após o envio por aquela de novo certificado completamente preenchido.
II- Tendo o cliente da ré perdido o interesse na 2ª parte da encomenda, devido à retenção alfandegária e levantamento tardio dela, a ré pode resolver o contrato celebrado com a autora pela mesma razão, com fundamento em perda de interesse fundado no incumprimento do negócio por parte da autora.







Proc. nº 788/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
“A”, intentou acção de condenação com processo ordinário contra “B”, ambas com os demais sinais dos autos, pedindo a condenação esta no pagamento da importância de Mop$ 248.784,86 e juros de mora, respectivos, por alegados prejuízos decorrentes de incumprimento contratual da demandada.
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Contestou e deduziu reconvenção a ré, invocando prejuízos provocados pela própria autora.
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Na oportunidade, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a acção, em consequência do que condenou a ré a pagar à autora, a indemnização de Mop$ 223.784,86 e juros de mora, e improcedente o pedido reconvencional.
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É dessa decisão que vem interposto pela ré/reconvinte o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«1. Conforme os arts. 6.º e 7.º do contrato assinado entre a Ré e a Arguida, estava explícito que o porto de descarga de mercadoria era Milão e o destino era a Itália - vide o conteúdo do Anexo II da petição inicial constante da fl. 18 dos autos, que aqui se dá por integral reproduzido.
2. Portanto, segundo o estabelecido no contrato acima referido, o local de entrega dos bens adquiridos era Milão. Logo, o art. 23.º da base instrutória do despacho saneador (“Nos termos do aludido contrato, o local de entrega dos bens adquiridos era Milão, na Itália”) ficou provado.
3.Conforme já foi provado pelos quesitos 8º, 34º, 35º e 37º: Era a autora que estava encarregada do tratamento de certificado sanitário. Existe erro de preenchimento de certificado sanitário. O lote de bens em questão foi retido no Porto de Milão e não era possível levantá-lo, a menos que passasse a ter um certificado sanitário novamente emitido e devidamente preenchido.
4. Por conseguinte, foi por razões imputáveis à Autora que era preciso emitir um novo certificado sanitário. Foi pela mesma razão que o cliente da Ré demorou a receber os respectivos bens adquiridos. Portanto, isso devia ser dado como a razão da demora de entrega dos bens adquiridos.
5. Daí devia ser dado como provado o quesito 39º do acórdão de referência (“Tal constituiu nova causa de atraso na entrega dos bens”), ou seja, o art. 39.º da base instrutória do despacho saneador.
6. Durante o julgamento, duas testemunhas da Ré disseram que o lote de vestuário todo era para a venda na estação que vinha (ouvi gravações “recorded on 30-Nov-2010 at 18.28.08 e 18.42.32”). Mas nenhuma das testemunhas disse que apenas uma parte do vestuário era para a venda na seguinte estação.
7. Portanto, devia ser provado na sua íntegra o facto n.º 42 (i.e.: “os artigos de vestuário têm um período comercial temporalmente bem delimitado, quer por causa da estação do ano em que são vendidos, quer por causa das tendências sazonais de moda”) da base instrutória do despacho saneador.
8. Foi provado no juízo pela testemunha da Ré que a primeira tranche foi retida na alfândega de a Itália por um período de um mês. Por conseguinte, o cliente da Ré demorou um mês a receber os bens adquiridos, o que justifica o procedente cancelamento da segunda tranche exigido pelo cliente (ouvi gravações “recorded on 30-Nov-2010 at 18.10.55). Não se assistiu a qualquer prova em contrário, nem houve nenhuma testemunha que dissesse o oposto.
9. Por outro lado, segundo o quesito 46º do acórdão, conjugado com o quesito 47º, os quesitos 6º, 8º, 28º, 32º ao 35º, bem como os quesitos 27º e 38º, sabemos que ao receber a primeira tranche de bens que já tinha sido detida no Porto de Milão, o cliente comunicou à Ré que não queria continuar a adquirir os bens, nem pagar os restantes bens que a Ré tinha tencionado obter da Autora. A Autora tinha a responsabilidade de preparar para a Ré um certificado sanitário devidamente preenchido da Itália, obrigatório pelas autoridades italianas. Por causa do preenchimento errado ou omisso do certificado sanitário obrigatório, a entrega dos bens adquiridos exportados para a Itália foi adiada por um mês.
10. Por isso, a culpa era da Autora, o que pode ser interpretado como uma entrega atrasada por motivos da Autora. O referido atraso de entrega esteve na origem de indisponibilidade manifestada pelo cliente da Ré para adquirir a segunda tranche de mercadoria.
11. Portanto, devia ser provado na sua íntegra o facto n.º 43 da base instrutória do despacho saneador.
12. Em conformidade com os nºs 8 a 10, devia ser provado na sua íntegra o facto n.º 46 da base instrutória do despacho saneador.
13. No juízo, duas testemunhas da Ré certificaram que o acontecimento tinha feito com que a imagem da Companhia fosse prejudicada (ouvi gravações “recorded on 30-Nov-2010 at 18.19.17 e at 18.42.32). Além disso, não se assistiu a qualquer prova em contrário, nem houve nenhuma testemunha que dissesse o oposto.
14. Portanto, devia ser provado por completo o facto n.º 48 da base instrutória do despacho saneador.
15. Pelo exposto, existem erros no exame de prova cometidos pelo tribunal a quo.
16. Além disso, segundo os quesitos 8º, 28º, 32º e 33º do acórdão, estamos cientes de que era a autora que estava encarregada do tratamento de certificado sanitário. E era a Autora que estava sujeita a preencher devidamente o certificado sanitário, que constitui documento obrigatório segundo as exigência das autoridades italianas.
17. Conforme os quesitos 6º e 35º, a razão pela qual houve mora na entrega a primeira tranche dos bens é o preenchimento incompleto de certificado sanitário.
18. Os quesitos 37º e 46º denotam que ao levantar finalmente a primeira tranche que tinha sido retida no Porto de Milão, o cliente comunicou à R. que não iria adquirir e pagar pelos restantes bens adquiridos. Foi por isso que a Ré perdeu a encomenda de um cliente italiano, isso resultando da mora de entrega de bens adquiridos por culpa da Autora.
19. Por outro lado, foi provado pelo quesito 29º do acórdão: a Ré fazia comércio (cujo objecto é a primeira e a segunda tranche de bens adquiridos) com uma Companhia italiana chamada C, através do qual a Ré vendia mercadoria à tal Companhia italiana.
20. Foi por falta da Autora, que levou à demora de entrega de bens adquiridos, que a Companhia sobredita não queria continuar a adquirir bens nem pagar os restantes bens. Sendo assim, a Ré perdeu o negócio de vender a segunda tranche de bens adquiridos.
21. A razão pela qual a Ré adquiriu a segunda tranche de bens é que tinha um negócio combinado com a Companhia italiana em que conseguiria vender mercadorias a esta. Como por ora a Companhia já não queria adquirir nem pagar os restantes bens, a segunda tranche de bens adquiridos não implica qualquer interesse para a Ré.
22. O erro da Autora, i.e., a demora de entrega, provocou a perda de interesse na prestação da Ré (a aquisição de bens pela Ré da Autora tinha como objectivo vender os mesmos à Companhia italiana. A cessação de aquisição de bens pela Companhia italiana denota a perda de todos os interesses que a Autora poderia ter obtido através da venda das mercadorias).
23. Pelo exposto, sabemos que existe nexo de causalidade entre a cessação de aquisição da segunda tranche de bens pela Ré e a culpa da Autora, designadamente a demora de entrega de bens adquiridos.
24. Portanto, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 797.º do Código Civil, o contrato celebrado entre a Autora e a Ré pode ser rescindido por causa imputável à Autora.
25. Segundo o disposto do n.º 2 do art. 793.º e da al. a) do n.º2 do art. 794.º do mesmo diploma legal, os actos da Ré enquadra-se em mora de cumprimento de prestação.
26. Em conformidade com os arts. 797.º e 790.º, considera-se como não cumprida a obrigação por razões imputáveis à Autora o facto de a Ré perder o interesse que tinha na prestação devido à mora da Autora.
27. Portanto, conforme o n.º 1 do art. 426.º do Código Civil, é admitida a resolução do contrato fixado entre a Autora e a Ré por causas imputáveis à Autora.
28. Ao abrigo da parte aplicável ao n.º 1 do art. 282.º estabelecida no art. 427.º ainda do mesmo Código, a resolução tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tinha sido prestado.
29. Por isso, não devia ter condenado a Ré a pagar à Autora o montante de MOP$223.784,86, ao invés, a Autora devia devolver a quantia de HK$100.000,00 (al. G dos factos provados constantes na fl. 97 dos autos) à Ré que a Ré tinha pago à Autora.
30. Pelo expendido, a decisão do Tribunal a quo violou o disposto da al. a) do n.º1 do art. 797.º, do n.º 2 do art. 793.º e da al. a) do n.º2 do art. 794.º, do art. 790.º, do n.º1 do art. 426.º e do art. 427.º do Código Civil.
31. A Ré considera desde sempre que não devia pagar a segunda tranche de bens adquiridos à Autora. Isso traduz-se em que a Ré julga que os bens em questão são pertença da Autora. Mas se o Tribunal a quo entender que a Ré está sujeito a efectuar o pagamento respeitante, o órgão judicial deve condenar a Autora a prestar à Ré os bens adquiridos em boas condições de conservação e na sua íntegra dentro das suas competências.
32. Como a natureza do contrato constitui o pagamento por uma parte e a recepção dos bens adquiridos pela outra, o facto de o Tribunal a quo condenar apenas uma parte a efectuar o pagamento sem obrigar a outra a entregar os bens em boas condições de conservação e na sua íntegra perfila-se como uma violação do princípio da liberdade contratual (segundo o qual uma parte realiza o pagamento e a outra recebe os bens adquiridos). Logo, existe vício na decisão em referência.
Pelo exposto, pedimos ao Sr. Juiz uma sentença de procedência do recurso, a anulação da decisão a quo, condenar a Autora a devolver/pagar a quantia de HK$100.000,00 à Ré que a Ré tinha pago à Autora, a pagar indemnização à Ré, com todas as suas consequências jurídicas».
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Contra-alegou a autora da acção, concluindo a sua peça do seguinte modo:
«1.ª Analisadas as alegações da Recorrente não se vislumbra um só argumento válido que destrua os fundamentos da douta decisão recorrida e que quase nos levaria a dispensar de produzir alegações de resposta;
2.a A Recorrente sustenta, basicamente, que a decisão recorrida violou o princípio da liberdade contratual ao dar maior relevância a determinados quesitos dados como provados do que a outros também dados por provados;
3.ª No entanto, não assiste, evidentemente, qualquer razão à Recorrente no que alega, pois a douta decisão ora recorrida não violou nem o princípio da liberdade contratual nem existe qualquer contradição na matéria de facto dada como provada;
4.ª Com efeito, não basta nem se pode admitir que a Recorrente se limite a fazer uma impugnação genérica dos factos que impugna. Ela teria de concretizar um a um quais os pontos de factos que considera mal julgados, seja por terem sido dados como provados, seja por não terem sido considerados como tal;
5.ª É preciso que ela indique, em relação a cada um dos pontos que considera mal julgados, quais os meios de prova que, em sua opinião, levariam a uma decisão diferente e quando esses meios de prova tenham sido gravados, a Recorrente terá de indicar ainda quais os depoimentos em que fundamenta a sua impugnação, por referência ao indicado na acta da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 438.odo Código de Processo Civil;
6.ª Na presente situação a Recorrente identificou os quesitos da base instrutória que pretende que tenham outra resposta. No entanto, não precisou qual(is) o(s) dessa(s) resposta(s), nem o(s) meio(s) probatórios em que essas novas respostas deveriam assentar;
7.ª Por isso, o uso pelo Tribunal de Segunda Instância dos poderes de alteração da decisão da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
8.ª Do teor das suas alegações recursivas, resulta que a Recorrente apresenta a sua interpretação sobre depoimentos e documentos e pretensas explicações sobre as respostas dadas pelo tribunal a quo, referindo-se, de forma geradora de confusão e dificultadora da tarefa desse tribunal de recurso, a impugnação de quesitos com a numeração da base instrutória e concomitantemente a factos de acordo com a numeração da sentença e indicando como pretenso meio de prova que fundamenta a impugnação a testemunha X, sem localizar no respectivo CD-Rom o seu depoimento e sem transcrever os depoimentos concretos dessas testemunhas em que se funda ou as concretas passagens da sua localização;
9.ª Da leitura das suas doutas alegações não vemos que a ora Recorrente logre demonstrar nas alegações de recurso desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e as referidas decisões sobre a matéria de facto da base instrutória posta em causa;
10.ª Com efeito, a decisão da matéria de facto de 09.12.2010, encontra-se exemplarmente fundamentada, no que diz respeito aos factos provados, parcialmente provados ou não provados, contendo essas decisões as razões dessas respostas e as provas em que se fundamentam, nomeadamente os depoimentos das testemunhas aí referidos, acompanhados das razões e relatos dos termos dos respectivos depoimentos, no que foi entendido como relevante para aferir a valoração do julgador, provas essas sujeitas ao princípio da livre convicção do tribunal;
11.ª Não basta à Recorrente atacar a convicção do tribunal recorrido para provocar uma alteração da matéria de facto. É indispensável, sob pena de rejeição, que cumpra os ónus de especificação impostos pelo artigo 599. do Código de Processo Civil;
12.ª Estes ónus consistem em: a) especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, b) indicar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto, c) desenvolver a análise critica dessas provas que demonstre que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível nem plausível;
13.ª Sendo que dispõe o n.2 do citado artigo que “No caso na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda”;
14.ª É justamente isto que a recorrente não faz; ou melhor, só na aparência o faz e não, de modo algum, em substância;
15.ª Efectivamente, percorrendo toda a peça recursiva - quer a alegação quer as conclusões, que não sintetizam, antes reproduzem, o que antes se disse - apenas nos deparamos com fórmulas vagas e genéricas, a propósito da impugnação da decisão de facto.
16.ª Por fim, importa salientar que a credibilidade que o julgador atribui ao depoimento de cada testemunha é insusceptível de sindicância, já que assenta no contacto directo que o próprio estabelece dialecticamente com as testemunhas, em que, para além da razão de ciência e da expressão verbalizada, intervém um conjunto de outros elementos, físicos e psicológicos, inerentes à postura mantida em audiência por cada testemunha ao longo do seu depoimento;
17.ª Em conclusão, improcede tudo o que a Recorrente invoca e conclui na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio do presente recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.
Termos em que, considerando tudo o exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente, por total ausência de suporte legal, e, em consequência mantida o douto Acórdão, assim se fazendo dessa forma a habitual boa e sã JUSTIÇA!».
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Cumpre decidir
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II- Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
   A A. é uma sociedade regularmente constituída em Macau, dedicando-se à importação e exportação de grande variedade de mercadorias. (A)
   Na sequência desta actividade, a A. celebrou com a R., em 4 de Junho de 2007, um contrato. (B)
   A R. comprometeu-se a pagar à A. os valores que resultam, quer do contrato, quer de acordos posteriores das partes, nos termos que resultam do contrato. (C)
   Assim, em 29 de Junho de 2007, a A. recebeu um cheque da R., no montante de HKD$31.322,50 e em 30 de Junho desse mesmo ano, igualmente, recebeu um cheque no valor de HKD$212.993,00. (D)
   A R. procedeu ao pagamento de HKD$165.857,64, em 14 de Setembro de 2007, ou seja, cinco dias antes da data do voo de Shenzhen para Milão. (E)
   Em 16 de Novembro de 2007, a A. recebeu da R. um cheque, no montante de HKD$100.000,00, relativo ao pagamento parcial do montante em causa. (F)
   Em 31 de Janeiro de 2008, A R. entregou um cheque no montante de HKD$100.000,00 para fazer face não à segunda tranche de mercadorias mas à eventual aquisição de bens futuros. (G)
   A R. veio alegar que “... a vossa empresa cometeu um erro grave no certificado sanitário da primeira encomenda ..., o qual implicou que os bens ficassem retidos na fronteira italiana durante mais de um mês para prejuízo do cliente ...” (H)
   A R. é uma sociedade regularmente constituída em Hong Kong, que se dedica ao comércio de vestuário. (1º)
   Nos termos do contrato a A. tinha a incumbência de adquirir vestuário previamente escolhido e seleccionado pela R. e de o armazenar em Zhuhai. (2º)
   Conforme resulta do contrato celebrado entre a A. e a R., as partes acordaram em determinados valores monetários, cadenciando os pagamentos. (3º)
   Após a A. ter adquirido a primeira tranche de mercadoria pretendida pela R., prontamente a informou da necessidade desta efectuar o pagamento em dívida antes do envio, via aérea, pela R. da mencionada mercadoria. (4º)
   Era da competência exclusiva da R. tratar de todas as formalidades respeitantes ao envio da mercadoria, via aérea, de Shenzhen para Milão. (5º)
   O transporte da primeira tranche de mercadorias (first shipment) sofreu atrasos provocados pelo incompleto preenchimento do certificado sanitário. (6º)
   O transporte de Zhuhai para Shenzhen e desta região para Milão eram tarefas da R. (7º)
   A preparação do certificado sanitário com vista a importação era da responsabilidade da A. (8º)
   Enviada a primeira tranche de mercadoria (first shipment), a A., de imediato, seleccionou e armazenou em Zhuhai a segunda tranche de mercadorias (second shipment) a enviar para Itália. (9º)
   A A. solicitou o pagamento de HKD$590.834,79, correspondente ao valor da mercadoria acrescida do valor do serviço prestado pela A. (10º)
   Após ter recebido a factura para efectuar o supra mencionado pagamento a R. solicitou um desconto. (11º)
   Pelo que, após negociações entre as partes, a A. efectuou um desconto de HKD$17 3. S 67, 94. (12º)
   A R. não pagou a quantia de HKD$317.266,8S. (13º)
   Embora a segunda tranche de mercadorias nunca tenha sido retirada pela R. do armazém de Zhuhai, a A. atempadamente procedeu ao pagamento integral dessa aquisição. (14º)
   Encontrando-se presentemente a mercadoria armazenada num armazém para o efeito arrendado em Zhuhai pela A. (15º)
   A R., por carta do seu mandatário judicial, pôs termo ao contrato em causa alegando incumprimento dos deveres por parte da A. (16º)
   Alegando justa causa e impedindo a continuação do contrato para o futuro. (17º)
   A A. para propositura da presente acção despendeu MOP$2S.000,00 em honorários de advogados. (19º e 20º)
   Provado o que consta da resposta dada ao quesito 12º. (21º)
   A data de expedição acordada contratualmente era o dia 28 de Agosto de 2007, relativamente a uns bens, e o dia 10 de Setembro de 2007, relativamente a outros bens. (26º)
   Por acordo das partes, a A. fez o envio da primeira tranche de bens em 19 de Setembro de 2007. (27º)
   A importação para Itália de artigos de vestuário implica o preenchimento de um certificado sanitário, sem o qual os bens não são admitidos a descarga no porto de destino. (28º)
   A R. havia comercializado os bens adquiridos com uma empresa Italiana, denominada C., a quem os venderia. (29º)
   A primeira e única entrega (first shipment) ocorreu por acto de expedição dos bens (para Milão) de 19 de Setembro de 2007, não tendo após essa data sido recebidos pela R. os bens em falta. (30º)
   Era preciso cumprir as formalidades necessárias ao envio dos bens para entrega no local de destino. (32º)
   Tais formalidades implicam, designadamente, o preenchimento do certificado sanitário respectivo. (33º)
   Provado o que consta da resposta dada ao quesito 8º. (34º)
   O certificado sanitário relativo à primeira tranche foi defeituosamente preenchido, faltava a seguinte informação: “Numeral oxygen índex per 100 grams of product: 2.4”. (35º)
   Foram enviados os seguintes emails entre A. e R., que se dão por integralmente reproduzidos:
   a) email de 27 de Setembro de 2007, juntamente com os certificados sanitários de fls. 68 a 72;
   b) email de 17 de Outubro de 2007, de fls. 73;
   c) email de 18 de Outubro de 2007, de fls. 74;
   d) email de 20 de Outubro de 2007, de fls. 75;
   e) email de 13 de Novembro de 2007, de fls. 76. (36º)
   Os bens ficaram retidos no porto de Milão, sem autorização de levantamento pelo destinatário, até que chegasse um novo certificado sanitário devidamente preenchido. (37 º)
   A A. só conseguiu obter o novo certificado sanitário no dia 15 de Outubro de 2007. (38º)
   Provado o que consta da resposta dada ao quesito 37º. (39º)
   Alguns artigos de vestuário têm um período comercial temporariamente bem delimitado, quer por causa da estação do ano em que são vendidos, quer por causa das tendências sazonais de moda. (42º)
   O cliente da R. (empresa C) aceitou receber os artigos da primeira tranche mas decidiu não adquirir os artigos que havia prometido adquirir à R. respeitante à segunda tranche. (43º)
   Provado o que consta da resposta dada ao quesito 12º. (45º)
   Em consequência do incidente descrito na resposta dada ao quesito 37º, na entrega da primeira tranche dos bens, a cliente da R. em Itália comunicou à R. que não iria adquirir e pagar pelos restantes bens adquiridos pela R. à A. (46º)
   A R. contratou mandatário judicial. (50º)
   Na Itália o Inverno dura de finais de Outubro a Março. (52º)
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III- O Direito
A relação contratual firmada entre A. e R., tal como provada, era a seguinte:
a) A ré “B” escolhia o vestuário que pretendia (facto 2º);
b) A autora “A”, adquiria-o na RPC e procedia ao seu armazenamento na cidade de Zhuhai (facto 2º).
c) A ré pagava à autora a mercadoria por esta adquirida.
d) Posteriormente, a mercadoria seria expedida via aérea de Shenzen para Milão, sendo da exclusiva responsabilidade da ré não só o transporte dela de Zhuhai para Shenzen (facto 7º), como as formalidades respeitantes a esse envio (facto 4º e 5º).
e) Era, porém, da responsabilidade da A. a preparação e envio do certificado sanitário do vestuário com vista à importação (facto 8º) e consequente entrega no local de destino (factos 32º e 33º).
O que sucedeu?
De acordo com a matéria de facto apurada, a ré tinha um cliente em Itália que lhe fez uma encomenda daqueles artigos de vestuário. A autora, para satisfazer o contrato com a ré, procedeu a duas aquisições de bens, a que chamou “tranches” e que separadamente iriam ser remetidas para Milão àquele cliente italiano da ré, tal como contratado (doc. fls. 17 dos autos).
Verifiquemos o que se passou com a primeira.
A autora da acção, aqui recorrida, começou por adquirir uma primeira “tranche de mercadoria” (facto 4º), mas o seu transporte (“first shipment”) sofreu atrasos por incompleto preenchimento do certificado sanitário (facto 6º e 35º), cuja responsabilidade é exclusivamente a si imputada (facto 8º). O valor dessa primeira “tranche”, importando em HKD$ 510.173,14, foi paga integralmente pela ré (factos D), E) e F)).
Tais mercadorias destinaram-se a uma empresa italiana “C” (facto 29º), cliente da ré. Todavia, porque esse certificado era necessário ao envio e à recepção no local de destino (factos 32º e 33º), devido à referida insuficiência do seu preenchimento pela autora, os bens ficaram retidos no porto de Milão, sem autorização para que o destinatário pudesse levantá-los, até que chegasse um novo certificado devidamente preenchido (facto 37º), o que só sucedeu no dia 15/10/2007 (facto 38º).
Quer dizer, a mercadoria foi expedida em 19/09/2007 (factos 27º e 30º). E em consequência da retenção da mercadoria no porto de Milão e não autorização de levantamento pelo destinatário até que chegasse o novo certificado – o que demorou cerca de um mês – a cliente da ré em Milão comunicou a esta que não pretendia já adquirir e pagar os restantes artigos de vestuário adquiridos pela ré à autora (facto 46º). Ou seja, esta cliente aceitou receber os artigos da 1ª tranche mas decidiu não adquirir os artigos respeitantes à segunda (facto 43º).
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Agora, quanto à segunda “tranche”.
Após o envio da primeira (como se viu, verificado em 19/09/2007: facto 27º), a Autora da acção adquiriu e armazenou a segunda tranche de artigos de vestuário (facto 9º), tendo solicitado o seu pagamento (facto 10º). A ré, porém, não chegou a pagar a factura, nem mesmo com desconto (factos 11º, 12º e 13º). A mercadoria aliás, nunca chegou a sair do armazém de Zhuhai (factos 14º e 15º). A ré, alegando justa causa, pôs termo ao contrato alegando incumprimento dos deveres contratuais por parte da A. (factos 16º e 17º).
Estes, em resumo e devidamente sistematizados, os factos principais.
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A partir deles, a sentença considerou que a primeira tranche foi recebida pela ré e, posteriormente, pela cliente deste em Milão (fls. 11 do julgado). Ora, isso está demonstrado, de facto. Isto é, ninguém duvida que a mercadoria da 1ª “tranche” foi expedida e recebida em Itália.
E avançou imediatamente para a questão referente à segunda tranche. Quer dizer, partiu do princípio que a Autora cumpriu a sua parte no acordo contratual e, por essa razão, apenas teve preocupação em discutir se houve ou não incumprimento de alguém em relação à 2ª “tranche”.
Mas é sobre esse juízo, precisamente, que a recorrente se insurge, uma vez que para si as coisas não se passaram assim. E, para o efeito, vem a este TSI tentar demonstrar-nos o erro de julgamento na matéria de facto em que o tribunal “a quo” incorreu.
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Começa por considerar que o quesito 23º deveria ter sido provado e “não provado”, como aconteceu.
Nesse quesito 23º perguntava-se se “Nos termos do aludido contrato, o local de entrega dos bens adquiridos era Milão, na Itália”.
Ora, esta matéria de facto estava contida na alínea E), bem como nos artigos 5º, 7º, 9º, 29º, 30º, 32º, 37º, 43º da Base Instrutória, que mereceram respostas claras no sentido de que a mercadoria se destinava a Milão. Ou seja, se para nós é muito claro que a mercadoria tinha por destino um cliente em Itália, concretamente em Milão, com a designação “C”, a resposta “não provado” tem que ruir. Ou seja, consideramos desacertada a resposta, se todos os elementos apontam em sentido contrário! Parece haver aqui alguma contradição, não só em função das respostas acima citadas, mas também em razão do documento de fls. 18 dos autos, sobre o qual, de resto, não foi feita qualquer referência específica na motivação do acórdão de fls. 190 dos autos.
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Não compreende também a recorrente como possa ter o tribunal recorrido ter dado como não provado o quesito 39º da Base Instrutória, onde se perguntava “Tal constituiu nova causa de atraso na entrega dos bens”.
Trata-se de um quesito que não pode ser visto isoladamente, dado que a sua compreensão decorre necessariamente da matéria do precedente art. 38º, segundo o qual “A autora só conseguiu enviar o novo certificado sanitário no dia 18-10-2007, pelo que os bens adquiridos ficaram retidos no porto de Milão durante mais de um mês, até recepção, em Itália, do novo certificado sanitário”.
O tribunal, porém, ao quesito 39º apenas considerou “Provado o que consta da resposta dada ao quesito 37º”, ou seja, que “Os bens ficaram retidos no porto de Milão, sem autorização de levantamento pelo destinatário, até que chegasse um novo certificado sanitário devidamente preenchido”.
Quer dizer, o tribunal não considerou que o envio, um mês depois do primeiro, do novo certificado sanitário e que a retenção da mercadoria no porto de Milão tivesse sido causa de atraso na entrega da encomenda! Mas também aqui nos parece que a resposta dada carece de correcção, dada a forma como foi respondido o quesito 37º. Em rigor, estaremos perante respostas obscuras e contraditórias.
Na verdade, embora o quesito 37º não inclua a palavra “atraso”, somos a pensar que ele é um conceito conclusivo que estará patente (implícito e consequente) na retenção verificada durante um mês da mercadoria devido à falta de um certificado sanitário devidamente preenchido. Se nada disso tivesse acontecido, isto é, se não se tivesse verificado aquela retenção, a empresa destinatária da mercadoria em Milão tê-la-ia recebido um mês antes. Ora, se por causa daquele incidente – cuja falta é imputada à autora - o cliente só levantou os bens um mês depois, como é possível não dizer que o envio retardado do certificado sanitário não foi causa de atraso na entrega dos bens?! Não se pode aceitar tal resposta, sobretudo depois da que foi dada ao quesito 6º, segundo o qual se deu por “Provado que o transporte da primeira tranche de mercadorias (first shipment” sofreu atrasos provocados pelo incompleto preenchimento do certificado sanitário”.
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Descontente se mostra ainda a recorrente com a forma como foi dada resposta ao quesito 42º, onde se pretendia saber se “Os artigos de vestuário têm um período comercial temporalmente bem delimitado, quer por causa da estação do ano em que são vendidos, quer por causa das tendências sazonais de moda”.
A resposta foi “ Provado apenas que alguns artigos de vestuário têm um período comercial temporalmente bem delimitado, quer por causa da estação do ano em que são vendidos, quer por causa das tendências sazonais de moda”.
Entende a recorrente que todo o quesito devia ter sido provado na íntegra, face ao que disseram as testemunhas ouvidas sobre o assunto (“recorded on 30 Nov 2010 at 18.28.08 e 18.42.32”).
Efectivamente, tem razão. Na verdade, resulta da prova que a encomenda foi feita por via aérea por urgência da encomenda por parte do cliente italiano, uma vez que aqueles artigos em concreto (casacos de penas) eram para ser vendidos nessa estação de Inverno. Foi o que as testemunhas da ré disseram peremptoriamente.
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Indigna-se ainda a recorrente quanto à resposta ao quesito 43º, onde se pretendia apurar se “O atraso na entrega dos bens fez com que o cliente da Ré (“C”) decidiu não adquirir os artigos que havia projectado adquirir à Ré”.
Entende a recorrente que a resposta “Provado apenas que o cliente da R. (empresa C) aceitou receber os artigos da primeira tranche, mas decidiu não adquirir os artigos que havia prometido adquirir à R. respeitante à segunda tranche” é insuficiente e que toda a pergunta devia ter sido respondida afirmativamente.
E o mesmo pensa quanto ao art. 46º da base Instrutória, onde se perguntava se “Em consequência da mora da Autora na entrega dos bens, a cliente da ré em Itália comunicou à ré que não iria adquirir e pagar pelos bens adquiridos pela Ré à Autora” e que foi respondido da seguinte maneira: “Provado apenas que em consequência do incidente descrito na resposta dada ao quesito 37º, na entrega da primeira tranche dos bens, a cliente da R. em Itália comunicou à R. que não iria adquirir e pagar pelos restantes bens pela R. à A”.
Estas respostas merecem-nos o mesmo comentário que fizemos a propósito da resposta ao art. 39º. Com efeito, ainda que nas respostas transcritas não esteja mencionada a palavra “atraso” cremos que a resposta ao quesito 46º parece não deixar margem para dúvida de essa ter sido a causa para o cancelamento da compra da 2ª tranche de produtos de vestuário da cliente italiana da ré. Com efeito, o “incidente” de que trata o quesito 37º - impossibilidade de levantamento da mercadoria por incompleto preenchimento do certificado sanitário que a acompanhava e que fora preenchido pela A. - consequenciou uma demora no levantamento da mercadoria em um mês. Se é assim, por que razão o tribunal não consignou nas respostas esse atraso? Ao ter respondido negativamente aos quesitos que envolviam o “atraso” na entrega dos bens, tê-lo-á feito contraditoriamente, se, com todo o respeito, nos é permitido dizê-lo.
E se tivermos em conta que as testemunhas da A. não responderam à matéria dos art.s 37º, 38º, 39º, 40º, 43º, 46º, tal como se depreende da acta de julgamento, e se os documentos juntos ao processo, nomeadamente os apresentados em audiência, não têm nenhuma correspondência com aquela factualidade, a resposta a tais quesitos só poderia advir do depoimento das testemunhas da Ré.
Ora, as duas testemunhas da ré – ouvida a gravação do seu depoimento por este TSI na sua íntegra - são unânimes em dizerem que realmente foi esse atraso decorrente do incidente alfandegário (não levantamento por causa de incompleto preenchimento do certificado sanitário) que fez o cliente italiano cancelar a aquisição da parte restante da mercadoria, com o argumento de que, sendo para vender nessa estação, a parte restante podia já não ser vendida.
Entendemos, pois, estar aí encontrada a causa para o cliente italiano ter perdido o interesse na aquisição da parte restante da mercadoria.
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Nesta parte, portanto, temos que dar razão à recorrente acerca do julgamento da matéria de facto efectuado na 1ª instância. Em consequência, a subsunção dos factos ao direito nela tomada não pode manter-se. Na verdade, o que se verificou foi um atraso da recepção de parte da encomenda pelo cliente da ré em Itália por razões somente imputáveis à autora da acção. Aliás, se a 1ª parte da encomenda deveria, por força do contrato, ser expedida em 28/08/2007, conforme facto 26º (ver também contrato de fls. 17), a verdade é que ela só partiu em 19/09/2007 (facto 27). Mais ainda: essa parte da encomenda deveria ter sido preenchida com o envio de 587 peças (resulta do contrato de fls. 17 dos autos) e, segundo o que resulta do documento de fls. 187, apenas foi enviada com 451.
Aliás, ainda que se desconsiderasse o atraso como causa, isto é, mesmo que o desinteresse desse cliente não radicasse nesse facto (atraso), mas no incidente da retenção alfandegária durante cerca de um mês (facto 46º), sempre a culpa iria ter com a autora. Na verdade, quer o cancelamento se devesse à causa remota (incidente reportado a mau e incompleto preenchimento do certificado sanitário), quer à causa imediata (demora no levantamento), uma e outra são exclusivamente imputadas à autora, face à prova que decorre das respostas aos quesitos 6º, 8º, 32º, 33º, 35º 37º, 38º, 43º e 46º.
Por outro lado, se a segunda partida de bens deveria ter ocorrido em 10/09/2007, já a autora não podia mais respeitar esta data se a própria primeira remessa (que deveria ter sido feita em 28/08/2007) apenas foi feita em 19/09/2007.
Assim sendo, a autora, que deveria fazer a encomenda integral a tempo e horas, não o fez. Diga-se o que se quiser, a verdade é que a autora não cumpriu devidamente a sua parte no negócio, obrigando a um atraso de um mês da 1ª remessa de bens, isto é, não cumpriu pontualmente a sua obrigação, ao contrário do que o afirma a sentença recorrida. É que não está em causa somente a expedição da mercadoria, mas também o recebimento dela por parte do seu destinatário em Itália. E para o efeito, a autora tinha sobre os seus ombros a responsabilidade de, juntamente com a mercadoria, fazer a expedição do documento emitido pelos serviços de inspecção da RPC, designado Certificado sanitário ou Certificado Veterinário (fls. 187 dos autos), tal como emerge do facto 8º.
Discordamos, portanto, da sentença ao concluir que a autora cumpriu a sua obrigação. Se a encomenda era única, embora com duas tranches, o atraso no envio e recepção da primeira compromete todo o contrato. É como se o contrato fosse incumprido definitivamente1. Assim, a circunstância de a cliente italiano ter aceitado receber a 1ª parte da encomenda não significa que devesse aceitar a 2ª. E se não a aceitou com aquele fundamento, a ré não podia assumir uma culpa que apenas à autora cabia por inteiro.
O cumprimento, portanto, só se poderia dizer estar realizado com a entrega atempada da mercadoria. E aquele “incidente” ao provocar o retardamento da entrega da mercadoria ao cliente da ré, provocou mora da prestação por parte da autora da acção (793º, nº2, do Cod. Civil), fazendo ao credor (ré da acção) perder o interesse na realização da prestação restante da obrigação da autora (art. 797º, nº1, al. a), do Cod. Civil). Perda de interesse que é apreciada objectivamente (art. 797º, nº2 ), em função das utilidades concretas que a prestação da autora lhe haveria de proporcionar2, não bastando a simples mudança de vontade na conclusão do negócio, mas sim, a implicação de razões alicerçadas em factos reais e razoáveis3, de acordo com padrões de normalidade assentes no caso concreto4.
Ora, que melhor razão para a perda de interesse da ré, do que o cancelamento da parte restante da mercadoria por parte do seu cliente?! Objectivamente, é de encarar razoável esse fundamento, se até ele é de razoável invocação por parte do cliente final que carece do vestuário tempestivamente para venda na estação a que ele se destina, por causa das sazonais tendências da moda! E a autora sabia que toda a encomenda tinha por destino a Itália.
Assim, podia a ré invocar justa causa de resolução do contrato e assim o fez (conforme factos 16º e 17º).
Aliás, mesmo que se considerasse estarmos perante um caso de incumprimento parcial, nem por isso a ré podia deixar de resolver o negócio, ao abrigo do art. 791º do Cod. Civil (ver tb. art. 797º, nº4), a não ser que o não cumprimento parcial da autora tivesse escassa importância (nº2, cit. art.). Mas, não podemos falar de escassa importância quando se fala em artigos de vestuário que, como se provou na resposta ao quesito 42º, costumam ser para venda na estação do ano a que se destinam, sob pena de, tal como é geralmente consabido, público e notório, terminar em saldos ou em “outlet”. E por outro lado, mesmo que se considere que este não foi um contrato de execução periódica - caso em que a resolução não afecta a prestação já efectuada referente à primeira tranche, nos termos do art. 428º, nº2, do Cod. Civil – nem por isso se deve entender que a resolução tem um efeito retroactivo absoluto e total, pois pela própria razão de ser deste negócio a retroactividade não deve abranger a primeira parte da encomenda, já realizada e paga5.
Assim, face aos factos provados, é de concluir que o incumprimento se deveu à autora e que a ré, face ao sucedido e atrás relatado, perdeu o interesse na parte restante do negócio. O mesmo é dizer que a condenação da ré decidida na 1ª instância não pode manter-se.
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E se assim aconteceu na parte concernente à acção, o mesmo sucedeu na parte relativa à reconvenção, embora no presente recurso só esteja em causa a decisão recorrida na parte em que não determinou a devolução de HK$ 100.000,00 pagos pela ré à autora (alínea G) dos factos provados), não já a improcedência da reconvenção relativamente aos prejuízos que a ré dizia ter sofrido, face ao disposto no art. 589º, nº4, do CPC.
Ora, quanto à matéria da alínea G), tem razão a recorrente/reconvinte. Efectivamente, aquela importância em dinheiro que a ré entregou à autora destinava-se a “… fazer face, não à segunda tranche de mercadorias, mas à eventual aquisição de bens futuros”. Ou seja, era dinheiro adiantado por conta da expectativa de futuros negócios e não se destinava ao pagamento de nenhuma parte do negócio já realizado. Tem, pois, que ser devolvido à ré (cfr. art. 470º do Cod. Civil), por nenhuma razão legal existir que à autora confira o direito de reter em sua posse.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
1- Dar por provados os quesitos 23º, 39º, 42º, 43º e 46º da Base Instrutória;
2- Revogar a sentença recorrida no que se refere à acção movida pela “A”, que assim se julga improcedente;
3- Revogar a sentença quanto à reconvenção deduzida pela ré “B” e condenar a autora a devolver à ré a quantia de HK$ 100.000,00 a que se refere a alínea G) da matéria de facto assente, o que equivale a Mop$ 103.000,00.
Custas pela autora em ambas as instâncias, na proporção do decaimento.
TSI, 03 / 05 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan

1 J. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção pecuniária compulsória, pag. 127, nota 240.
2 Galvão Telles, Obrigações, 3ª , pag. 253.
3 Antunes Varela, in RLJ, 118º, pag. 55, nota 1.
4 Menezes Cordeiro, Estudos de Direito Civil, 1º, pag. 55.
5 No sentido de que a retroactividade só deve ter lugar até onde a finalidade desta o pode justificar e que do contrato podem ter surgido obrigações e situações não abrangidos pela razão de ser da resolução e que, portanto, esta não elimina, ver Vaz Serra, RLJ, 102º, pag. 168.
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