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Proc. nº 394/2011
(Recurso Contencioso)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Maio de 2012
Descritores:
-Autorização de residência
-Certificado de registo criminal
-Reabilitação judicial


SUMÁRIO:

I- O certificado de registo criminal pode funcionar como autêntico meio de prova, sujeito ao princípio do processo penal, quando utilizado pelos agentes policiais e de investigação e pelos magistrados no âmbito de um processo criminal, em ordem à futura aplicação das disposições referentes à medida concreta da pena a aplicar ao infractor em processo penal. Em tal hipótese, somente será relevado o seu conteúdo e apenas ele, o que significa que, afastado do poder judiciário, ficará tudo o que nele não figure, a ponto de o cancelamento do cadastro gerar uma autêntica proibição de prova.

II- Mas o certificado também pode ter por missão acudir a fins particulares ou administrativos. Nesse caso, o acesso ao seu conteúdo não se regula pelos princípios da culpa, que regula a aplicação e medida das penas, mas pelos princípios da «necessidade» e da «proporcionalidade» numa problemática em tudo análoga à das medidas de segurança. Se o CRC for negativo, a ausência de menção acerca da prática de ilícito criminal apenas pode valer como certificação negativa de que nada consta a esse respeito no cadastro do indivíduo ou de que a menção existente foi cancelada por qualquer motivo, mas não vale mais do que a realidade nele omitida, em especial se o que está em causa é um fim administrativo.

III- Quando o legislador permite que os poderes discricionários sejam usados ao abrigo e para os fins do art. 9º da Lei nº 4/2003, de 17/03, está a dar total amplitude ao depositário desses poderes em prol do bem comum, sem constrangimentos relacionados com os fins da reabilitação.

IV- Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.

V- O art. 9º da referida lei não tem em nenhuma especial conta os beneficiários da reabilitação e que, pelo contrário, a todos os cidadãos atinge por igual.













Recurso Contencioso nº 394/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
A, de nacionalidade chinesa, titular do BIRNP de Macau nº XXX, residente na Rua de XX, edifício XX, bloco Xº, Xº, andar X, recorre contenciosamente do despacho de 8 de Abril de 2011 do Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças que indeferiu a autorização de residência do seu cônjuge, de nome B.
Ao acto imputou, nas conclusões da sua petição inicial, a violação dos arts. 18º, nº1, do DL nº 27/96/M, 356º, nº2, 363º, nº1 e 365º, nº1 do Código Civil e 55º, nºs 1 e 2 do Código do Notariado.
Subsidiariamente, defende que o acto fez aplicação errada do art. 2º, al.1) da Lei nº 4/2003 e o disposto no art. 5º, nº2, do CPA e 124º do mesmo Código.
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Na contestação, a entidade recorrida defendeu a bondade da decisão impugnada em termos que aqui se dão por reproduzidos.
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Nas alegações facultativas, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1) Como a entidade recorrida resolveu adoptar os pareceres da Comissão Executiva do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau de não conceder à esposa do ora recorrente autorização de permanência, este interpôs o presente recurso.
2) Pelo que indica o Certificado de Registo Criminal do cônjuge do recorrente constante dos autos administrativos, não se verifica nenhum cadastro criminal da esposa. Segundo o disposto no art. 18.º do Decreto-Lei n.º 27/96/M, tal Registo Criminal constituem documento único e bastante de prova de não existência de qualquer antecedente criminal do titular da informação.
3) Não tendo entendido assim, o despacho a quo violou o n.º 1 do art. 18.º do Decreto-Lei n.º 27/96/M; o n.º 2 do art. 356.º, do n.º 1 do art. 363.º e da parte inicial do n.º 1 do art. 365.º do Código Civil; os nºs 1 e 2 do art. 55.º do Código do Notariado; verificando-se o vício de ilegalidade, o tribunal, portanto, deve declarar nulo o despacho a quo e dar provimento ao mesmo, nos termos do art. 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
Caso o tribunal discorde com as opiniões atrás referenciadas, importa salientar que
4) Ao cônjuge do recorrente contencioso foi aprovada a reabilitação judicial, com o acórdão transitado em julgado. Além disso, Já se fez uma avaliação positiva relativamente ao cônjuge do recorrente no acórdão em referência. Acresce que segundo o disposto no n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003, o Registo Criminal constitui somente um dos factores a levar em consideração para efeitos de concessão da autorização de fixação de residência por investimento e a sua prorrogação. Desde a prática do facto criminoso sobredito que o cônjuge do recorrente não voltou a incorrer em qualquer crime e respeita sempre as leis.
5) Nestes termos, o veredicto a quo fez uso erróneo da al. a) do n.º 2 do art. 2.º da Lei n.º 4/2003, do n.º 2 do art. 5.º do Código do Procedimento Administrativo, conjugando com o pensamento legislativo do art. 124.º do mesmo diploma, o que leva a um vício de ilegalidade, pelo que deve ser declarada a sua anulação.
6) O recorrente contencioso defende que convinha ser extinto declaradamente o despacho a quo e julgar procedente o recurso, porque é assim que faz uso apropriado dos diplomas legais em referência».
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A entidade recorrida, por seu turno, concluiu as suas alegações do seguinte modo:
«1. A razão pela qual a entidade recorrida indeferiu o pedido de fixação de residência apresentado pelo cônjuge do recorrente é que ela foi transgressora da legislação da Região Administrativa Especial de Macau.
2. Ao verificar a existência ou não de actos infractores das normas legais da RAEM, todos os meios de prova não proibidos pela lei podem servir para o efeito, não sendo o Certificado de Registo Criminal o único.
3. Na verdade, a lei não impede que as autoridades administrativas utilizem sentenças condenatórias como meio de prova no processo de autorização de fixação de residência.
4. Não negando o facto de que o seu cônjuge foi transgressor da legislação de Macau, o recorrente restringe-se apenas a defender a seguinte ideia: a inexistência de cadastro no Certificado de Registo Criminal equivale à inexistência de sentença condenatória ex arada pelo tribunal de Macau no universo jurídico.
5. Isso é uma categórica má interpretação e distorce a norma legal a esse respeito. (al. 1) do n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003)
6. De facto, a al. 1) do n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003 não exige que a administração fundamente o seu deferimento de pedidos de fixação de residência exclusivamente no cadastro constante do Certificado de Registo Criminal.
7. Bem pelo contrário, a expressão na lei de “comprovado incumprimento das leis da RAEM” permite que as autoridades administrativas possam indeferir os respectivos pedidos de fixação de residência pelos interessados, desde que tenha sido aprovado qualquer acto transgressor das leis da RAEM, através de meios de prova que não entrem em conflito com a legislação.
8. Nesta circunstância, não se pode fazer a interpretação da al. 1) do n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003 de que o Certificado de Registo Criminal constitui o único fundamento que pode servir para comprovar o incumprimento das leis do interessado.
9. O acto recorrido tem como fundamento de facto a sentença condenatória proferida pelo tribunal de Macau. De acordo com o disposto na al. 1) do n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003, não se verifica nenhum conflito com as leis, neste caso particular com a disposição legal a que o recorrente se referiu, no indeferimento do pedido de fixação de residência posto pela esposa do recorrente.
10. Por outro lado, mesmo tendo sido concedida a reabilitação ao recorrente, isso não elimina o facto de que ele realmente agiu uma vez contra as leis da RAEM.
11. O acórdão do processo de recurso n.º 36/2006 do Tribunal de Última Instância aponta que não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de reabilitação de direito ao regime de entrada, permanência e autorização de residência, porque são diferentes os interesses que se visam proteger, sendo que no regime de entrada, permanência e autorização de residência revelam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, ao passo que o de registo criminal se preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente através da reabilitação.
12. Portanto, o facto de ter sido deferida a reabilitação do recorrente não obsta a que as autoridades recorridas baseiem o seu indeferimento do pedido de fixação de residência apresentado pelo cônjuge do recorrente em incumprimento da mesma lei da RAEM, nos termos da al. 1) do n.º 2 do art. 9.º da Lei n.º 4/2003».
*
O digno Magistrado do Ministério Público opinou no sentido da improcedência do recurso, em termos que aqui damos por reproduzidos.
*
Cumpre decidir.
***
II- Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III- Os Factos
Consideramos provada a seguinte factualidade:
1- A, de nacionalidade chinesa, é titular de Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente de Macau nº 1430961 (1).
2- A esposa, de nome B, e um filho de 6 anos, nascido em Macau, vivem na RAEM juntamente com o recorrente.
3- O recorrente, em 15/07/2010 requereu a autorização de residência da esposa, nos seguintes termos:
“Para: O Gabinete do Chefe do Executivo e o Presidente do Instituto de Promoção do Comércio e do investimento de Macau
   O requerente A, processo do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau No.XX/2002/02A e titular do Bilhete de Identidade de Residente não Permanente de Macau No.XXX, casou-se com B (titular do passaporte Chinês No.GXXX) no interior da China. A fim de responder a política de imigrante por investimento de Macau, terminei o meu negócio na China, e fixei residência em Macau com a minha mulher em 2002. Mas como a minha mulher violou a lei de Macau em 1999, o seu pedido de fixação de residência não foi autorizado. Em Setembro de 2004, durante o período de pedido, minha mulher deu à luz do filho, C (titular do bilhete de identidade de residente não permanente no.XXX), quem tem actualmente 6 anos de idade, estuda na Escola XX em Taipai, e mudará para a Escola XX em Taipai em Setembro deste ano. Depois de vir para Macau, gostei o ambiente e a vida de Macau, e em Abril de 2004 abri uma lavandaria (Lavandaria XX) em Taipei. Embora os resultados não foram muito favoráveis, mas qualquer maneira provia facilidade de lavagem de roupas aos residentes que vivem nas zonas vizinhas. A nossa vida é também considerada estável e satisfeita. Mais tarde, transferi metade da quota da lavandaria para um amigo meu, que ficou como titular da licença da lavandaria, e o requerente continuava a ser o encarregado da lavandaria até a presente data. Vivia em Macau há anos, considero Macau como a minha residência usual, e tenho já minhas raízes em Macau.
   Como o caso da minha mulher já passou mais de 10 anos, requereu em Maio de 2010 no Tribunal a sua reabilitação judicial. O requerente pede novamente o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau informações que beneficiam a minha mulher, espero que o Governo de Luz Solar pode abrir a porta para nós, pessoas ordinárias, considerando as razões humanitárias, as necessidades de cuidar do filho menor e a viver com o seu marido. Poço V. Exa. se digne autorizar a fixação de residência da minha mulher, permitindo-lhe possibilidade de viver com o marido e cuidar do filho, para que o requerente poder trabalhar em paz, desenvolver o negócio da lavandaria.
   Com os melhores cumprimentos e agradecimentos”.
4- Em 17/02/2011, foi submetido à consideração superior o seguinte parecer:
“Assunto: Apreciação do requerimento para fixação de residência com projecto de investimento
A comissão executiva:
1. A identificação da interessada e o prazo sugerido da autorização de residência temporária:
Num.
Nome
Relação
Documento. n.º
Validade do documento
Prazo de validade de título de residência temporária até
1.
B
Cônjuge
Passaporte chinesa n.º GXXX
2019/12/21

O título de residência temporária do requerente A é válido até 25 de Agosto de 2013.
O Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau, de acordo com o despacho n.º 120-I/GM/97 proferido pelo ex-governador de Macau, proferiu um parecer quanto ao documento de viagem da interessada e notificou ao IPIM que esta se qualificava para requerer a fixação de residência com projecto de investimento.
Atentos os autos, o primeiro pedido do requerente foi estendido à sua mulher B. O então ofício n.º MIG.02174/2006/C.I. do CPSP indicou: “em relação à acusação deduzida no processo comum I colectivo contra a requerente B pelo Ministério Público, a sentença do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Base (n.º CR1-04-0175-PCC) (n.º anterior PCC-053-04-4) condena o indivíduo acima referido, pela prática, em autoria material e na forma dolosa e consumada, dum crime de uso de documento falso previsto e punido pelo art.º 18.º, n.º 1) e n.º 3) da Lei n.º 6/2004 de 2 de Agosto, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano. Absolve-se a mesma, por insuficiência de provas, dum crime de falsificação de documento e de dois crimes de violação de interdição de entrada lhe imputados.” (v fls. 137 a 151 do processo n.º 1637/2002)
Dado que a conduta acima referida de B já constituiu incumprimento das leis da RAEM e que esta foi condenada à pena pelo TJB, foi de sugerir, nos termos do art.º 11.º do DL. N.º 14/95/M, aplicável subsidiariamente ao abrigo do art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, o indeferimento do pedido de estender a autorização de residência temporária do requerente A à sua mulher B. Em 7 de Julho de 2006, o Secretário para a Economia e Finanças proferiu, usando da competência conferida pelo Chefe do Executivo da RAEM, o despacho de indeferimento. (v o processo n.º1637/2002)
O requerente deduziu reclamação contra o despacho, no entanto, por os fundamentos e documentos apresentados por aquele não serem a favor da procedência da reclamação, não se provou que a decisão do indeferimento da extensão foi ilegal ou inadequada. Nestes termos, o S. Ex.ª o Chefe do Executivo proferiu em 28 de Setembro de 2006 um despacho que julgou improcedente a reclamação deduzida pelo requerente, e manteve a decisão do indeferimento do pedido de residência temporária de B (v o processo 1637/2002).
2. Ao requerente foi concedida, pela primeira vez, a autorização de residência temporária em 7de Julho de 2006.
3. Para efeitos de extensão, o requerente apresentou os seguintes documentos de bens imóveis para comprovar a sua posse consecutiva dos bens imóveis como fundamentos de investimento exigido por lei.
(1) Número de imóvel: 21966-XIV
Estrada XX, no.XX, Edf. XX Garden (Bloco X), X.º Andar X
 Valor: MOP$206.000,00
 Data de registo: 29 de Novembro de 2002 (117)
(2) Número de imóvel: 21966-VIII
Estrada XX, no.274, Edf. XX Garden (Bloco X), X.º Andar X
Valor: MOP$288.400,00
Data de registo: 29 de Novembro de 2002 (124)
(3) Número de imóvel: 21966-V
Estrada XX, no.306, Edf. XX Garden (Bloco X), X.º Andar X
Valor: MOP$298.700,00
Data de registo: 29 de Novembro de 2002 (119)
(4) Número de imóvel: 21966-X
Rua do XX, no.X, n.º X, Edf. XXGarden (Bloco X), X.º Andar X
Valor: MOP$226.600,00
Data de registo: 29 de Novembro de 2002 (122)
4. Nos termos do art.º 9.º, n.º 2, al. 1) e art.º 4.º, n.º 2 da Lei n.º 4/2003, para efeitos de concessão da autorização deve atender-se aos antecedentes criminais, ao comprovado incumprimento das leis da RAEM, caso existentes, e a que se o (a) requerente tem sido condenado (a) em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior. Neste processo, B, mulher do requerente, foi condenada em 2006 pela prática dum crime de uso de documento falso previsto e punido pelo art.º 18.º, n.º 1) e n.º 3) da Lei n.º 6/2004 de 2 de Agosto, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano. A sua conduta constituiu incumprimento das leis da RAEM, e ela foi condenado na pena pelo TJB.
5. Face ao exposto, B, mulher do requerente, foi condenada em 2006, pela prática dum crime, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano. A sua conduta constituiu incumprimento das leis da RAEM. Pelo que, é de sugerir, nos termos do art.º 11.º do DL. N.º 14/95/M, aplicável subsidiariamente ao abrigo do art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, o indeferimento do pedido de extensão da autorização de residência temporária à interessada seguinte:
Num.
Nome
Relação
1.
B
CÔNJUGE
Submeto à apreciação”
5- O Director-Adjunto do IPIM concordou com este parecer, nos seguintes termos:




6- Posteriormente, em 10/03/2011, a Comissão Executiva do IPIM pronunciou-se da seguinte maneira:









7- O Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças, em 8/04/2011, lavrou o seguinte despacho:



8- A esposa do recorrente foi condenada no TJB (Proc. nº CR1-04-0175-PCC), em 26/11/2004, pelo crime de uso de documento falso cometido em 1999, previsto e punido pelo art. 18º, nº1), e nº3) na pena de 7 meses de prisão, cuja execução fora suspensa pelo período de um ano, e que viria a ser extinta pelo Tribunal em 3/05/2002 (Apenso C).
9- Por decisão do TJB de 29/09/2010, foi concedida à esposa do recorrente a reabilitação de direito, tendo sido ordenado, ao abrigo do art.25º do DL nº 27/96/M o cancelamento total da decisão constante do seu certificado de registo criminal.
10- O certificado de registo criminal da esposa do recorrente encontra-se sem qualquer menção.
***
IV- O Direito
O presente recurso contencioso vem na sequência do despacho de indeferimento de autorização de residência a B, por extensão da concedida ao seu marido, ora recorrente, baseado na circunstância de aquela ter sido condenada em 2004 pela prática de um crime de uso de documento falso.
É contra tal decisão que o recorrente se insurge, por considerar que ela atenta contra a força que emana do certificado do registo criminal, com o que estaria verificado o vício de violação de lei, concretamente, por atentado contra o disposto nos arts. 18º, nº1 do DL nº 27/96/M, de 3/06, 356º, nº2, 363º, nº1 e 365º, nº1 do Código Civil e 55º, nºs 1 e 2 do Código do Notariado.
Sem embargo, defende ainda o recorrente que a ilegalidade ainda se mostra cometida pelo referido despacho, por ter feito errada aplicação dos arts. 9º, nº2, al. 1) da Lei nº 4/2003 e 5º, nº2 e 124º do CPA, na medida em que não retirou, como devia, a adequada consequência da reabilitação judicial da esposa.
Vejamos, então.
O certificado do registo criminal constitui documento único e bastante da prova dos antecedentes criminais do titular da informação (art. 18º, nº1, DL nº 27/96/M). E por provir de autoridade competente para o emitir, tem o valor de documento autêntico (art. 363º do C.C.). Todavia, o seu conteúdo e valor intrínseco que representam podem variar consoante os fins a que se destine (ver arts. 20º e 21º cit. dip.). Neste sentido, pode funcionar como meio de prova, como medida de segurança e como instrumento subsidiário de outras figuras.
Assim é que, no primeiro caso, o acesso ao conteúdo do certificado é reconhecido aos operadores judiciários que têm o encargo de proceder à recolha de elementos sobre o cadastro criminal de certa pessoa com vista a instruir o processo criminal em ordem à futura aplicação das disposições referentes à medida concreta da pena a aplicar ao infractor em processo penal. Serve, nesse caso aos magistrados e agentes policiais propósitos de investigação e de prova. E no que ao tribunal concerne, funcionam como autêntico meio de prova (sujeito aos princípios gerais do direito processual penal), de modo a poder ser relevado o seu conteúdo e apenas ele, o que significa que afastado do poder judiciário ficará tudo o que nele não figure, a ponto de gerar uma autêntica proibição de prova o cancelamento do cadastro. Por isso é que, por exemplo, não podem ser considerados, para qualquer efeito de processo penal, condenações anteriores cujo registo tenha sido objecto de cancelamento1, e que não podem ser consideradas na produção da pena condenações anteriores que não constem do CRC, desde que façam presumir ter havido reabilitação de direito2
Por outro lado, no segundo caso, o certificado visará a detecção de incapacidades ou interdições profissionais decretadas pelo juiz na sentença ou decorrentes automaticamente da lei. Aqui, o certificado de registo criminal tem uma natureza instrumental (subordinado aos seus requisitos e disciplina), sem qualquer autonomia funcional, tal como também sucede com o acesso para fim estatístico e de investigação científica.
Por fim, o acesso ao certificado pode ter por missão acudir a fins particulares ou administrativos. Nesse caso, o acesso ao seu conteúdo funda-se, apenas, “em motivos de prevenção especial «negativa» - ou seja, numa exigência de defesa da sociedade contra o risco de futuras «repetições criminosas» dos ex-condenados, deduzido da verificação de altas taxas de reincidência. Baseando-se, assim, na eventual «perigosidade» dos delinquentes, o acesso dos particulares e da Administração envolve uma problemática em tudo análoga à das medidas de segurança, devendo a sua disciplina subordinar-se aos mesmos princípios que regem aquelas últimas, i.é, não ao princípio da culpa, que regula a aplicação e medida das penas, mas aos princípios da «necessidade», da «proporcionalidade» e da «menor intervenção possível», que superintendem na esfera das medidas de segurança”3.
Ora, no caso em apreço, ninguém pôs em causa o valor do certificado. Valeria como autêntica e plena proibição de prova se acaso ele visasse servir como documento instrutório no âmbito de investigação criminal ou no de um processo penal. Mas não é disso que se trata. Não nos parece, por outra via, que o seu conteúdo pudesse valer mais do que a própria realidade nele omitida, em especial se o que está em causa é um fim particular e administrativo. Com efeito, sendo o documento em causa meramente certificativo, a ausência de menção acerca da prática de ilícito criminal apenas pode valer como certificação negativa de que nada consta a esse respeito no cadastro do indivíduo ou de que a menção existente foi cancelada por qualquer motivo.
Quer isto dizer, portanto, que a Administração, para efeitos administrativos, pode servir-se de elementos que dele não constam, sem que isso represente violação do valor do documento em apreço.
*
E em que medida, perguntamos nós agora, a reabilitação judicial pode interferir com os requisitos de autorização de residência previstos no art. 9º da Lei nº 4/2003?
Como é sabido, a reabilitação judicial4 - diferente da “reabilitação de direito”, em que os seus efeitos operam automaticamente uma vez decorridos os prazos estabelecidos na lei - pressupõe uma análise judicial dos pressupostos contidos no art. 25º, nº1 do citado DL nº 27/96/M, “ex vi” art. 53º, nº2 do DL nº 86/99/M.
Assim sendo, ela só poderá ser decretada se o tribunal, após a análise do pedido e dos elementos instrutórios que compõem o processo, tanto oferecidos pelo interessado, como aqueles que oficiosamente o juiz deve ou pode obter, face ao art. 53º do citado DL. nº 86/99/M, concluir que está perante um cidadão que mostrou estar “readaptado à vida social” (art. 25º, nº1 cit.).
E com esta definição poderia estar exposto o mote para a solução do problema. Na verdade, dir-se-ia que, se aquilo que conta é o presente da pessoa ou a sua condição actual de readaptado à vida social, não haveria aí qualquer diferença com o que se passa na situação do criminoso que, não obstante a sua condição de “boa pessoa” no passado, não deixa de ser condenado se o seu presente estiver manchado por uma actuação ilícita. Uma vez que, num caso ou noutro, determinante é a actualidade, não se deveria mirar a reabilitação com os olhos voltados para trás, para o passado de eventual “pessoa má” do reabilitado.
E isso deverá mesmo ser encarado tal qual o acabámos de defender nalguns casos, mas noutros o assunto não pode ser entendido dessa maneira. Ou seja, essa afirmação de princípio deve ceder em função das diversas situações, como veremos.
Antes de mais nada, nós entendemos que esta readaptação não pode valer apenas para os cidadãos que sejam residentes da RAEM, mas também para quaisquer outros que careçam da reabilitação para os mais variados fins, inclusive para, através dela, poderem vir a almejar a obtenção do título de residência que ainda não tenham. Se a reabilitação se destinasse a apenas cidadãos residentes legais em Macau, não faria sentido, por exemplo, que o TJB concedesse, como concedeu, a reabilitação judicial a esta cidadã chinesa. Aliás, nem o DL nº 27/96/M, nem o DL nº 86/99/M estabelecem a esse propósito qualquer discriminação positiva ou negativa. Haveria grave atropelo à lógica, se as leis de Macau permitissem que entidades oficiais (judiciais) concedessem a um cidadão do exterior de Macau o benefício do instituto que aqui apreciamos e logo a seguir viessem consentir que outras oficiais entidades (administrativas) proibissem que dele se pudessem extrair quaisquer efeitos com tal fundamento.
Portanto, esse argumento não poderia servir, nem aliás foi utilizado como justificação para o indeferimento. E nós também não o podemos escalpelizar mais, na medida em que não fez parte dos fundamentos do acto e porque estamos, como veremos mais adiante, perante uma actividade discricionária da Administração.
A questão é, repete-se, saber se poderiam ser esgrimidos argumentos relacionados com a condenação sofrida pela cidadã chinesa em causa e a tanto se confina o nosso esforço de apreciação.
Com efeito, o acto - baseado no parecer que o antecedeu - entendeu que a senhora Wu não podia obter a autorização de residência peticionada, por ter cometido há sete anos atrás um crime pelo qual fora condenada e, por tal razão, a sua conduta constituir incumprimento das leis da RAEM. Ou seja, indeferiu o pedido à sombra do art. 9º, nº2, al. a), da Lei nº 4/2003.
Ora, os antecedentes criminais dessa pessoa não estavam já incluídos no certificado do registo criminal quando foi feita a apreciação do pedido. De maneira que, para chegar a essa conclusão, teve a Administração que socorrer-se dos elementos de que dispunha já sobre esta cidadã, pois era matéria adquirida no procedimento instaurado pelo ora recorrente com idêntica pretensão que tinha por beneficiária a esposa, e que igualmente fora indeferida em Julho de 1996 com a mesma fundamentação, segundo resulta dos autos.
A este respeito, deparamo-nos aqui com algo que aparentemente foge à função da reabilitação. No entanto, só mesmo aparentemente. Isto é, vistas as coisas sob a égide da reabilitação, enquanto instituto regenerador, a solução pareceria não dever apresentar qualquer obstáculo a uma extracção plena da sua eficácia, sem limites ou constrangimentos, porque dirigida à pessoa em si mesma (àquela pessoa, toda ela, e não uma parte dela), considerada no seu todo e para todo e qualquer efeito.
Mas, se sairmos da penumbra do caso, e o deixarmos ver à luz que baixa sobre outros institutos em redor, igualmente disciplinadores da vida em sociedade, como o da autorização de residência, por exemplo, talvez se dissipem as silhuetas dos contornos e concluamos que o problema tem uma solução global, consoante os interesses envolvidos.
Assim, em 1º lugar, é preciso ter presente que não há, entre nós, aqui na RAEM, um instituto de reabilitação devidamente regulamentado, como acima se disse, em que sejam bem definidos os pressupostos de atribuição e estabelecidos os efeitos dela decorrentes5. Seria útil, por exemplo, saber em que tipo de casos a reabilitação, dependendo dos interesses em causa, poderia excepcionalmente não ser de conceder ou quais aqueles em que ela poderia não ser operativa. Deste modo, não obstante a reabilitação importar o cancelamento do registo, de acordo com as disposições conhecidas e acima já mencionadas (v.g., art. 25º), a verdade é que nenhuma norma encontramos que proíba que, para certos efeitos, nomeadamente os do interesse público especial que prossiga, alguma entidade não possa obter a montante a informação que foi cancelada.
E o caso em apreço parece servir de lauto exemplo. Estando a Administração na posse desse elemento – o de que a cidadã cometeu crime em Macau de uso de documento falso precisamente, ao que é suposto, para servir de fundamento a residência local anos antes – e não havendo norma que proíba o uso desse dado para tal efeito, ilógico e incompreensível seria que não o utilizasse para a realização do interesse público subjacente. Cabendo-lhe a prossecução do interesse público da segurança e, por conseguinte, do dever de fazer observar as regras da convivência societária no respeito pelas leis em vigor em Macau, proceder em contrário, fechando os olhos ao passado, poderia ser alvo de crítica social por parte daqueles que as respeitam e que aqui já são residentes. Poderia até abrir as portas à desenfreada entrada de “ilegais”, que, mesmo que descobertos e punidos, acabariam por atingir mais tarde e por esta via da reabilitação o objectivo inicial. Ora, se o impedimento de assim agir por parte da Administração viesse da lei, isso seria o mesmo que dar-lhe inutilmente uma arma, que ao mesmo tempo lhe impedia de usar!
Em 2º lugar, não esqueçamos que estamos perante uma actividade discricionária da Administração, esta que ela desenvolve em ordem à autorização de residência de que trata o art. 9º citado. Isto quer dizer que, mais do que critérios de legalidade estrita, o que a move são noções de mérito, densificados através de padrões de justiça, oportunidade e conveniência.
Ora, a afirmação de tais padrões pode ser traduzida por razões concretas ligadas aos requisitos vertidos na norma cega. Isto é, quando o legislador permite que os poderes discricionários sejam usados ao abrigo e para os fins do art. 9º citado, está a dar total amplitude ao depositário desses poderes em prol do bem comum, sem constrangimentos relacionados com os fins da reabilitação. Dito por outras palavras, os fins da reabilitação – repetimos, sem melhor regulamentação e definição dos seus limites negativos – na medida em que servem propósitos particulares, devem merecer cedência perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular. Norma que não tem em nenhuma especial conta os beneficiários da reabilitação e que, pelo contrário, a todos os cidadãos atinge por igual.
A reabilitação não pode mostrar-se operante para todos os efeitos, valendo, sim, para aqueles que implicam o exercício do direito de punir no âmbito de um processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal no momento da decisão o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.
Por tal motivo, jurisprudência deste TSI já produzida sobre o assunto, ainda que fundada numa situação ligeiramente diferente6, asseverou que “…o facto de as infracções em apreço terem sido praticadas há já bastante tempo, não implica, como é óbvio, que aquelas não possam e devam ser consideradas como antecedentes criminais” para efeitos do normativo em análise”7.
Razão, ainda, para o TUI8, ter dito em seu aresto seu que “…os requisitos para a concessão de autorização de residência previstos no regime de entrada, permanência e autorização de residência, a Lei n.º 4/2003, têm o seu fundamento diferente que o regime de registo criminal. Naquele relevam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, neste preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente na Região através da reabilitação. São diferentes os interesses que se visam proteger. Por isso, não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de um regime para o outro”9.
A ser assim, e sem mais escusados desenvolvimentos de fundamentação, não se pode considerar que nenhum dos normativos invocados pelo recorrente – também os do Código Civil, em reforço do valor dos documentos - tenha sido violado. Aliás, no que concerne ao art. 5º, nº2 do CPA, tão pouco nos parece que a sua invocação tivesse sido densificada, na medida em que se não vislumbra minimamente se o recorrente o reporta à violação do princípio da igualdade, se ao da proporcionalidade. Seja como for, e pondo de parte o da igualdade (por falta de elementos), não se acha que a proporcionalidade tivesse sido violada, face a tudo o que acima se disse e que ora nos escusamos de repetir. Quanto ao art. 124º do CPA, ele apenas veio à liça pelo recorrente como modo de justificar a pretendida anulação. Isto é, a sua invocação não foi feita com a natureza de preceito/fundamento, mas como preceito/solução. Solução que, por tudo o que vimos, não sufragamos.
Eis a razão pela qual o recurso não pode proceder.
***
V- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo o acto recorrido.
Custas pelo recorrente.


TSI, 03 / 05 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
Estive presente
Mai Man Ieng

1 Ac. R.P., de 29/02/2012, Proc. nº 123/10.8GAVLP.P.
2 Ac. do STJ, de 11/10/1995, Proc. nº 046948.
3 Ac. da RC de 3/11/2004, Proc. nº 1921/04.
4 Apesar da referência do art. 26º do DL nº 27/96/M, nunca chegou a ser publicado nenhum diploma regulamentador do instituto da reabilitação, pelo que o seu regime continua a ser o que decorre dos arts. 25º e 26º do citado diploma e nos arts. 52º e 53º do DL nº 86/99/M, de 22/11.

5 No art. 349º do Regime Jurídico da Função Pública de Macau, por exemplo, diz-se quais os efeitos que para o funcionário podem advir da reabilitação. E na jurisprudência comparada também se defende que o funcionário demitido por condenação em pena maior, uma vez reabilitado, pode concorrer e ser nomeado novamente funcionário: Ac. STJ, de 15/06/1983, Proc. nº 036921, in BMJ nº 328/329.
6 O cidadão em causa teria cometido o ilícito fora de Macau.
7 Ac. TSI, de 25/05/2006, Proc. nº 305/2005.
8 Ainda que versando também sobre uma reabilitação de direito com referência a um indivíduo condenado no exterior da RAEM.
9 Ac. TUI, de 13/12/2007, Proc. nº 36/2006.
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