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Processo n.º 95/2012 Data do acórdão: 2012-5-24 (Autos de recurso penal)
   Assuntos:
– delimitação do tema probando do processo
– contestação
– investigação do tema probando
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– extorsão
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
1. Não tendo o arguido apresentado contestação escrita à acusação, todo o tema probando do processo já se encontrou exclusivamente delimitado pelo elenco dos factos descritos no mesmo libelo, e como ante a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, se vê que o tribunal recorrido investigou, sem lacuna alguma, todos os factos acusados, não pode existir o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada de que se fala no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal vigente.
2. Atendendo a que o próprio tribunal a quo já afirmou na fundamentação probatória do seu acórdão condenatório do arguido pela consumação do crime de extorsão, que a ofendida não conseguiu lembrar-se, na audiência de julgamento, do motivo pelo qual o arguido lhe tinha exigido o pagamento de duas mil patacas, não pôde o mesmo tribunal a quo – sob pena de clara violação das legis artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto – dar por provado que o arguido, a pretexto de ajudar a ofendida a reclamar o telemóvel desta tirado por outrem, exigiu à ofendida que lhe pagasse dinheiro a título de recompensa. Há, nessa parte, erro notório na apreciação da prova a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 95/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 213 a 217v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-11-0131-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) que o condenou como autor material de um crime consumado de extorsão, p. e p. pelo art.o 215.o, n.o 1, do vigente Código Penal (CP), na pena de dois anos e seis meses de prisão efectiva, e, em cúmulo jurídico dessa pena com a pena de nove meses de prisão então imposta no Processo n.o CR1-07-0334-PCS, na pena única de dois anos e nove meses de prisão efectiva, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) mediante a motivação apresentada a fls. 235 a 259 dos presentes autos correspondentes, imputando material e concretamente a essa decisão condenatória a existência dos três vícios do n.o 2 do art.o 400.o do vigente Código de Processo Penal (CPP), e, subsidiariamente, o erro de subsunção dos factos ao direito (por entender que o que estava em causa seria tão-só um crime tentado de extorsão) e o exagero na medida da pena, para rogar a sua absolvição do crime por que vinha acusado e condenado, ou, subisidiariamente, a sua condenação nesse delito a título de tentativa, com aplicação de nova pena de prisão em medida não superior a um ano de prisão, ou a sua condenação a nível de crime consumado, em pena de prisão não superior a dois anos, e, fosse como fosse, com suspensão da execução da pena mesmo pelo período de cinco anos.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 269 a 272) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 287 a 290, pugnando também pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar (em sede do qual entendeu o relator não poder haver lugar a renovação da prova em audiência a ser convocada, por nem o próprio recorrente ter peticionado isto na parte final da sua motivação de recurso nos termos ditados no art.o 402.o, n.o 3, do CPP), corridos os vistos legais, e realizada já a audiência a que alude maxime o art.o 411.o do CPP, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos pertinentes à solução do recurso:
– o arguido foi acusado pelo Ministério Público pela prática de um crime consumado de extorsão do art.o 215.o, n.o 1, do CP (cfr. o teor da acusação pública deduzida a fls. 73 a 74 dos autos);
– o arguido não chegou a apresentar contestação escrita à acusação;
– de acordo com o primeiro facto descrito na acusação, desde finais de Abril de 2007, o arguido, a pretexto de ter sido capturado pela Polícia quando estava ele a prestar ajuda à ofendida para reclamar o telemóvel desta tirado por outrem, e ter, por isso, pago quarenta mil patacas de caução, exigiu à ofendida que lhe pagasse, em prestações iguais de duas mil patacas, a quantia total de vinte mil patacas com vista a comparticipar no montante da caução;
– a final, em relação a este primeiro facto acusado, deu o Tribunal Colectivo a quo apenas por provado que desde finais de Abril de 2007, o arguido, a pretexto de ajudar a ofendida a reclamar o telemóvel desta tirado por outrem, exigiu à ofendida que lhe pagasse prestações de duas mil patacas de cada a título de recompensa (cfr. o teor do primeiro facto descrito como provado no texto do acórdão recorrido, concretamente a fl. 214 dos autos), enquanto já deu materialmente por provada toda a restante matéria fáctica imputada no libelo acusatório nomeadamente referente ao uso de ameaça sobre a ofendida, embora com uma pequena divergência quanto à parte inicial do segundo facto acusado (pois apesar de se ter imputado aí ao arguido que este chegou a deslocar-se por duas vezes, isto é, às 16:30 horas e às 20H30 horas do dia 3 de Julho de 2007, ao local de trabalho da ofendida..., acabou o Tribunal a quo por dar provado que em princípios de Julho de 2007, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da ofendida...);
– no sexto facto imputado ao arguido na acusação, descreveu-se que a quantia acima referida é produto da prática, pelo arguido, da conduta ilícita acima referida;
– no oitavo facto imputado ao arguido na acusação, descreveu-se que o arguido, com intenção de conseguir para si vantagem ilegítima, empregou ameaça e constrangeu a ofendida a entregar dinheiro, sabendo claramente que esta não tinha nenhuma obrigação jurídica de lhe entregar dinheiro;
– no nono facto imputado ao arguido na acusação, descreveu-se que o arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e punível;
– o Tribunal a quo fundamentou a sua convicção probatória de moldes seguintes, na sua essência (cfr. o teor de fls. 215v a 216 dos autos):
– o arguido declarou na audiência de julgamento que a ofendida lhe pediu, e ele o aceitou, para procurar o telemóvel da ofendida tirado por outrem, e que, por isso, a ofendida lhe prometeu em dar duas mil patacas de “dinheiro para tomar chá”; negou o arguido a extorsão de dinheiro à ofendida;
– a ofendida, na audiência de julgamento, não conseguiu lembrar-se do motivo pelo qual o arguido lhe exigiu o pagamento de duas mil patacas, mas a ofendida declarou na audiência que não foi da sua vontade entregar dinheiro ao arguido;
– a testemunha e agente da Polícia Judiciária ouvida em audiência depôs que, na altura, a ofendida, acompanhada do seu pai, se deslocou à Polícia Judiciária para participar o caso, e que o motivo da participação foi extorsão;
– a arguida tem um certo grau de atraso na inteligência, mas com excepção do motivo, do qual não se conseguiu lembrar, da entrega de duas mil patacas ao arguido, pôde responder basicamente às perguntas feitas pelo Tribunal;
– na fundamentação jurídica da sua decisão condenatória, chegou o Tribunal a quo a tecer as seguintes considerações:
– segundo os factos provados, o arguido, com intenção de conseguir para si vantagem ilegítima, e sabendo claramente que a ofendida não tinha obrigação jurídica de lhe entregar dinheiro, empregou, mesmo assim, ameaça e constrangeu a ofendida a entregar duas mil patacas em dinheiro, pelo que o arguido cometeu, evidentemente, em autoria material e na forma consumada, um crime de extorsão do art.o 215.o, n.o 1, do CP (cfr. o teor do último parágrafo de fl. 216 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, é de ver que o arguido ora recorrente colocou material e concretamente as seguintes questões como objecto do seu recurso: a título principal arguindo, os três vícios do n.o 2 do art.o 400.o do CPP; e subsidiariamente levantando, o erro de subsunção dos factos ao direito (por o crime em causa não dever ser condenado a título de consumação, mas sim somente de tentativa), o exagero da pena e a questão de suspensão da execução da pena de prisão.
Desde já, deve decair o ataque feito pelo recorrente à decisão recorrida a propósito do vício a que alude a alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, porquanto não tendo ele apresentado contestação escrita à acusação pública, todo o tema probando já se encontrou exclusivamente delimitado pelo elenco dos factos descritos no mesmo libelo deduzido pelo Ministério Público, e como ante a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, já referida em súmula na parte II do presente acórdão de recurso, se vê que o Tribunal recorrido investigou, sem lacuna alguma, todos os factos acusados, não pode existir o ora esgrimido vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (e sobre o alcance e sentido deste vício, veja-se o acórdão deste TSI, de 13 de Dezembro de 2007, no Processo n.o 721/2007).
E perante a fundamentação fáctica e jurídica da decisão recorrida, também não se vislumbra qualquer contradição insanável da fundamentação a que se refere na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Quanto ao também assacado vício de erro notório na apreciação da prova, de que se fala na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, já se detecta este vício de moldes e na esfera apenas seguintes:
– como o próprio Tribunal a quo já afirmou na fundamentação probatória que a ofendida não conseguiu lembrar-se, na audiência de julgamento, do motivo pelo qual o arguido lhe tinha exigido o pagamento de duas mil patacas, não pôde o mesmo Tribunal a quo – sob pena de clara violação das legis artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto – dar por provado que o arguido, a pretexto de ajudar a ofendida a reclamar o telemóvel desta tirado por outrem, exigiu à ofendida que lhe pagasse prestações de duas mil patacas de cada a título de recompensa, nem dar por provada a matéria fáctica constante dos sexto, oitavo e nono factos acusados;
– com efeito, mesmo que a ofendida tenha declarado ao Tribunal a quo que não foi da sua vontade entregar dinheiro ao arguido, e ainda que a testemunha e agente da Polícia Judiciária tenha deposto no sentido de que a ofendida se deslocou, acompanhada do seu pai, a essa Polícia para participar o caso e que o motivo dessa participação era extorsão, isto tudo também não pode contribuir para se dar por provado o real motivo ou do carácter ilícito do pagamento do dinheiro pela ofendida ao arguido. É que da mera circunstância de não ser a vontade da ofendida pagar dinheiro ao arguido não se pode retirar necessariamente a ilação de que o dinheiro assim pago corresponda a uma vantagem ilícita do arguido (pois, mesmo que se tratasse de uma dívida lícita, seria também natural à pessoa devedora que não fosse da sua vontade ir pagar a dívida). Da mesma maneira, da mera circunstância de o motivo da participação do caso à Polícia ter sido afirmado como sendo de extorsão, não pode resultar seguramente que a ofendida tenha sido constrangida pelo arguido para lhe pagar uma vantagem ilícita.
Assim sendo, como existe o vício de erro notório na apreciação da prova respeitante à matéria fáctica veiculada nos primeiro, sexto, oitavo e nono factos acusados, é de reenviar esta parte concreta do objecto do processo para novo julgamento no TJB, nos termos dos art.os 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, a fim de permitir nova decisão sobre a causa penal subjacente à presente lide recursória, em função do resultado da nova investigação desses quatro factos acusados, em conjugação com todos os restantes factos já dados por provados, sem vício nenhum, no acórdão ora recorrido.
Do acima analisado e concluído, fica prejudicado o conhecimento de todas as questões alegadas subsidiariamente pelo arguido no seu recurso.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, reenviando o processo para novo julgamento mas somente na parte respeitante aos primeiro, sexto, oitavo e nono factos então descritos na acusação pública contra o arguido recorrente.
Pagará o arguido 5/12 das custas do recurso, com cinco UC de taxa de justiça correspondente, devido à parte que ora decaiu no recurso.
Comunique aos Processos n.os CR1-07-0334-PCS e CR3-10-0244-PCC do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 24 de Maio de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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