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Processo nº 165/2012
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 31 de Maio de 2012

ASSUNTO:
- Anulação oficiosa do julgamento

SUMÁRIO:
- Nos termos do nº 4 do artº 629º do CPCM, o Tribunal a quem anulará, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta.
O Relator,

Ho Wai Neng







Processo nº 165/2012
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 31 de Maio de 2012
Recorrentes: A (1º Réu)
B (2º Réu)
Recorrido: E (Autor)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença de 09/08/2011, o Tribunal a quo julgou procedente por provada a acção ordinária intentada pelo Autor contra A (1º Réu), B (2º Réu), C (3º Réu) e D (4º Réu), e, consequentemente:
- declarou o Autor como dono e legítimo proprietário do prédio com o nº 3, sito na Travessa da XX, em Macau, descrito na CRP de Macau sob o número 5356, a fls. 252 do Livro B-22, e inscrito na matriz sob o nº 20024, adquirido por usucapião, para todos os efeitos legais, designadamente, podendo registar o direito de propriedade a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Macau; bem como
- determinou o cancelamento da inscrição predial a favor dos 1º e 2º Réus com o nº 166236G, devendo os Réus reconhecer o direito de propriedade do Autor e abster-se de o violar.
Dessa decisão vêm recorrer os 1º e e 2º Réus, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. Salvo melhor opinião, e face à prova produzida em juízo, andou maIo douto Tribunal a quo ao considerar como provados os pontos 14° e 16° do Questionário.
B. Através da prova carreada para os autos e produzida em audiência de discussão e julgamento o Tribunal a quo deveria ter concluído que a posse do imóvel por parte do Recorrido não era do conhecimento público (nos termos do artigo 1186° a contrario sensu).
C. E, por outro lado, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo, a posse foi contestada, impondo-se resposta diferente ao ponto 16° da matéria quesitada.
D. Afigura-se também enfermar de ilegalidade a decisão recorrida ao ter considerado como assente os pontos E) e F) da Base Instrutória vis-à-vis a resposta ao ponto 16º, que nunca poderia ser positiva, i.e., dada como provada.
E. Na verdade, a venda do imóvel sub judice, através da escritura de compra e venda e posterior registo a favor dos ora Recorrentes, é facto suficiente para se concluir que houve oposição à posse do Recorrido.
F. Dessa forma, e conforme alegado, consideram os Recorrentes imporem-se respostas diferentes aos ponto 14° e 16° da matéria de facto, devendo Vossas Excelências considerar os mesmos como não provados, modificando-se a matéria de facto, ao abrigo do disposto no número 1 do artigo 629° do CPC, revogando-se a Sentença a quo, julgando improcedente o peticionado pelo Recorrido.
G. Errou, também, a Sentença a quo, ao considerar que o Recorrido agiu como verdadeiro e legítimo proprietário do imóvel, porquanto a prova apresentada em juízo não indica que a posse do imóvel por parte do autor foi pública e que não foi contestada.
H. Não tendo a posse sido exercida de forma pacífica e pública, viola a decisão de que ora se recorre os artigos 1222° e número 1 do 1225°, ambos do CCM, ao não ter considerado que o prazo de usucapião, in casu, só poderia começar a contar-se desde que esta passou a ter essas características, i.e., "há 9 anos atrás" (vide depoimento da testemunha Primo Pablo Lorenzo);
I. Enferma a Sentença de que se recorre de erro de direito por errada aplicação dos requisitos legais da posse para que o imóvel pudesse ser usucapido pelo ora Recorrido.
J. Por outro lado, errou também a Sentença do Tribunal a quo, quando considerou que o Recorrido possuiu o imóvel de boa fé e que não lesou direitos de terceiros.
K. Na verdade, a Sentença recorrida não podia ter ignorado a conduta de má fé do Recorrido que terá pago a totalidade do valor acordado no contrato-promessa de compra e venda do imóvel controvertido, em 16 de Julho de 1993, posteriormente, em 22 de Outubro de 2007, indicou que contrato definitivo seria outorgado a favor de H, e nunca registou a posse do imóvel, como reza o artigo 2° n.° 1 alínea e) do Código do Registo Predial de Macau (CRPM).
L. Neste contexto, para além da presunção de má fé do artigo 1184° n.º 2 do CCM, a Sentença recorrida só podia decidir, perante os factos acima descritos, que a presunção vertida no referido preceito legal não se encontrava ilidida.
M. É presunção legal que, decorrendo a posse do Recorrido de um contrato-promessa de compra e venda a mesma não se considera titulada, à luz do disposto nos artigos 1182° e 1183° n.º 1 a contrario do CCM.
N. Tal presunção não foi, conforme se alegou, ilidida nos presentes autos.
O. Pelo que, errou a Sentença recorrida ao desconsiderar a não ilisão da presunção legal iuris tantum contida no número 2 do artigo 1184° do CCM por parte do Recorrido e ao não aplicar o prazo previsto no artigo 1221° do mesmo diploma legal, i.e., 20 anos.
P. Finalmente, e sem conceder, também não podia a decisão a quo admitir a boa fé do Recorrido a partir do registo predial promovido pelos Recorrentes, em 17 de Janeiro de 2008, através da inscrição n.º 16623G na Conservatória do Registo Predial de Macau, já que a aquisição do imóvel por parte dos mesmos ganhou fé pública, nessa data à luz do disposto no artigo 1° do CRPM.
Q. E, em consequência, atendendo ao artigo 1221° do CC, o prazo de usucapião a considerar seria também de 20 anos a partir da data do registo da aquisição do imóvel por parte do aqui Recorrentes.
R. Não tendo decorrido o prazo supracitado até à presente data não se encontra preenchido o requisito temporal da aquisição do direito de propriedade por usucapião, devendo revogar-se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, julgando-se improcedentes todos os pedidos do Recorrido, o que desde já se requer a Vossas Excelências.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue improcedente a acção com absolvição dos Réus do pedido.
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O Autor respondeu à motivação do recurso da ora recorrente, nos termos constantes a fls. 260 a 289 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso ora interposto.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Ficou assente a seguinte factualidade pela 1ª Instância:
- No dia 23 de Março de 1993, os 3º e 4º Réus celebraram com o Autor um contrato-promessa de compra e venda, através do qual aqueles prometeram vender a este último, pelo preço de HKD$600.000,00 (seiscentos mil dólares de Hong Kong) - rectificado o valor face à prova documental constante dos autos -, o prédio com o n.º 3, sito na Travessa da XX, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número 5356, a fls. 252 do Livro B-22, e inscrito na matriz sob o n.º 20024. (A)
- De acordo com o estipulado no contrato-promessa, o Autor entregou a título de sinal o montante de HKD$200.000,00 (duzentos mil dólares de Hong Kong) - rectificado o valor face à prova documental constante dos autos. (B)
- Do contrato-promessa constava um período de 90 dias para a celebração do contrato definitivo. (C)
- No dia 16 de Julho de 1993, os 3º e 4º Réus outorgaram no Cartório Notarial do Notário Privado Jorge Neto Valente, uma procuração irrevogável com plenos poderes de administração e de disposição, incluindo a venda do imóvel aludido em A), constituindo como procuradores os Senhores Drs. F e G, em conformidade com o documento de fls. 17 a 19 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (D)
- Os 3º e 4º Réus venderam o imóvel aludido em A), no dia 16 de Janeiro de 2008, aos 1º e 2º Réus A e B, pelo preço de MOP$348.000,00 (trezentas e quarenta e oito mil patacas) em conformidade com a escritura pública de compra e venda constante dos autos a fls. 24 a 27, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (E)
- Pela apresentação n.º 17.01.2008, inscrição n.º 16623G, os 1º e 2º Réus registaram a seu favor a aquisição do imóvel, tal como resulta da certidão constante dos autos a fls. 28 a 31, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (F)
- Não obstante o aludido em C), Autor e 3º e 4º Réus acordaram que, em vez de outorgarem a escritura pública de compra e venda, outorgariam uma procuração a favor dos advogados do Autor e entregariam o imóvel a este último, contra o pagamento do remanescente do preço. (1º)
- Em cumprimento do acordado, no dia 16 de Julho de 1993, o A. entregou aos 3º e 4º Réus o valor remanescente do preço do prédio, na quantia de HKD$400.000,00 (quatrocentos mil dólares de Hong Kong). (2º)
- Em consequência do acordado em 1º e do pagamento da totalidade do preço, os 3º e 4º Réus outorgaram a procuração aludida em D). (3º)
- Constituindo seus procuradores os então advogados do Autor, Srs. Drs. F e G. (4º)
- A procuração estabeleceu expressamente que os mandatários estavam dispensados de prestar contas daquele mandato uma vez que aos 3º e 4º Réus já tinha sido integralmente pago o preço do imóvel. (5º)
- Foi também por esse facto que na procuração se mencionou que – por ter sido outorgada no interesse de terceiros (do Autor) – não poderia ser revogada. (6º)
- O custo da compra do referido imóvel foi totalmente suportado pelo Autor, tendo para o efeito, o seu pai H, emitido, por conta do filho, os dois cheques. (7º)
- Em contrapartida do pagamento integral do valor de venda do imóvel, os 3º e 4º Réus entregaram as chaves do mesmo ao Autor, para este dele tomar posse. (8º)
- Com a entrega das chaves e pagamento do valor total do imóvel, o Autor ficou convencido de que o negócio estava “cumprido” e de que nunca seria posto em causa. (9º)
- Desde que o Autor tomou posse do imóvel tem agido como verdadeiro e legítimo proprietário do mesmo. (10º)
- O Autor transferiu a titularidade dos contratos de água e de luz para o seu nome e, com a ajuda do seu pai, efectuou nele obras de reparação e conservação. (11º)
- E em Março de 1994 arrendou-o, pelo valor de MOP$500,00 mensais, a Primo Pablo Lorenzo e Lindamor Edrada Lorenzo, que desde então vivem na casa em referência com o seu filho. (13º)
- O Autor é conhecido por todos os vizinhos e amigos como o legítimo proprietário do prédio. (14º)
- Durante todos estes anos o Autor nunca mais teve qualquer contacto com os 3º e 4º Réus (15º)
- Desde Julho de 1993 até 2003 o Autor utiliza o imóvel sem qualquer oposição dos Réus ou de quem quer que seja. (16º)
- O Autor, em 22 de Outubro de 2007 (houve lapso de escrita, tendo em consideração o teor do documento nº 1 junto com a petição inicial), indicou no próprio contrato mencionado na alínea A) que a escritura pública de compra e venda, quando fosse outorgada, fosse feita a favor de H. (17º e 20º)
- Autor e 3º e 4º Réus acordaram que o primeiro poderia determinar que o contrato definitivo, e só este, fosse realizado directamente com um terceiro por si indicado. (19º)
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III – Fundamentos
Antes de apreciar o objecto do recurso interposto, cumpre-nos resolver oficiosamente uma questão prévia, que é a de saber se existe deficiência e obscuridade na decisão da matéria de facto, pois prevê o nº 4 do artº 629º do CPCM que “Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da al. a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão ”.
No caso em apreço, o Autor alega na petição inicial que os 1º e 2º Réus nunca entraram em contacto com ele, nem reivindicaram perante si a propriedade do imóvel em causa (artº 24º da petição).
Os 1º e 2º Réus, na contestação, impugnaram de forma específica que a referida afirmação do Autor era falsa (artº 27º).
Salvo o devido respeito, entendemos que esta matéria controvertida é importante e constitui uma solução plausível da questão do direito para o lítigio sub justice, pelo que deve a mesma ser seleccionada para a Base Instrutória, o que não foi feito.
Pois, o próprio Autor alega que adquiriu por usucapião a propriedade do imóvel no dia 16/07/2008, dia em que se completaram os 15 anos desde a data em que entrou na posse do mesmo, convencido de ser o seu verdadeiro proprietário (cfr. artº 34º da petição inicial).
Contudo, os 1º e 2º Réus, compraram, por escritura pública, o mesmo imóvel no dia 16/01/2008, tendo procedido ao registo da aquisição no dia 17/01/2008.
Como se deve notar que à data da aquisição e do registo do imóvel por parte dos 1º e 2º Réus, a posse do Autor, mesmo que seja de boa fé, titulada, pacífica e pública, ainda não havia decorrido 15 anos.
Assim sendo, a pretensão do Autor em adquirir a propriedade do imóvel em questão só pode proceder se vier a ser provado que os 1º e 2º Réus nunca reclamaram a reivindicação da propriedade do mesmo imóvel até 16/07/2008.
Por outro lado, ficaram provados que:
“O Autor é conhecido por todos os vizinhos e amigos como o legítimo proprietário do prédio” (quesito 14º).
“Desde Julho de 1993 até 2003 o Autor utiliza o imóvel sem qualquer oposição dos Réus ou de quem quer seja” (quesito 16º).
Salvo o devido respeito, não nos parece que os referidos factos provados sejam suficientemente claros entre si antes pelo contrário, apresentam uma certa obscuridade.
Senão vejamos.
Em primeiro lugar, ficou sem se saber o espaço temporal em que o Autor é conhecido como legítimo proprietário do imóvel.
Se se interpretar isoladamente o facto, dá a entender que o Autor é conhecido como o legítimo proprietário desde a tradição do imóvel (dia 16/07/1993) até à data da propositura da acção (dia 13/02/2009)1.
No entanto, se se interpretar em conjunto com o facto provado do quesito 16º, o referido conhecimento do Autor como legítimo proprietário parece só se reportar até ao ano de 2003.
Ficamos portanto sem saber qual é o verdadeiro alcance destes dois factos provados.
Além disso, será que com o facto provado do quesito 16º significará que os 1º e 2º Réus reivindicaram perante o Autor a propriedade do imóvel após a sua aquisição por escritura pública e antes do dia 16/07/2008?
Não conseguimos encontrar uma resposta clara e segura na matéria fáctica assente.
Pelo exposto, se conclui pela existência de deficiência e obscuridade na decisão da matéria de facto.
Assim, deve ser anulado o julgamento da matéria de facto a fim de:
a) repetir o julgamento dos quesitos 14º e 16º com vista a eliminar a obscuridade; e
b) ampliar o julgamento para o seguinte quesito:
     “Os 1º e 2º Réus chegaram a reivindicar perante o Autor a propriedade do imóvel em questão no período entre 16/01/2008 a 16/07/2008?”
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Fica portanto prejudicado o conhecimento do objecto do recurso interposto.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em anular o julgamento da matéria de facto, baixando consequentemente os autos para novo julgamento nos termos e para os efeitos acima consignados.
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Sem custas.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 31 de Maio de 2012.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong

1 Esta parece ser a interpretação da sentença recorrida, pois afirmou-se que a posse do Autor durou mais de 15 anos .
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