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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, B, C e D interpuseram recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 16 de Dezembro de 2011, que indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência temporária em Macau do 1.º recorrente.
Por acórdão de 6 de Dezembro de 2012, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformados, interpõem os mesmos recorrentes recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- Conforme alegado na douta decisão recorrida, a notificação do Recorrente A relativamente à “alegada obrigatoriedade de comunicação ao I.P.I.M. da alteração contratual no prazo de 30 dias” ter-se-á por verificada, porquanto, de acordo com o art. 6° e 56° do CPA, “(...) a Administração não tem obrigação de usar no procedimento administrativo qualquer outra língua, não oficial, que o particular alegadamente domina, mas sim apenas a de lhe assegurar o direito de receber resposta numa das línguas oficiais, chinês ou português.”
- Comunicação essa a qual terá sido realizada da seguinte forma: nos termos do disposto no art. 18° do regulamento acima citado, fique V. Exa. notificada de que deve comunicar ao IPIM a eventual cessação do seu contrato de trabalho com a corrente entidade patronal, no prazo de 30 dias a contar da cessação e se for caso disso apresentar documentos comprovativos do exercício de novas actividades, sob pena de cancelamento da autorização de residência temporária.
- Sem conceder, mesmo que se tivesse por verificada a notificação ao Recorrente A conforme se pode ler na alegada notificação, não é exigível que o Recorrente A concluísse que para além da cessação do contrato de trabalho, qualquer alteração à relação laboral também deveria ser comunicada ao I.P.I.M. no prazo de 30 dias contados desde da data da sua ocorrência.
- A relação laboral existente entre o Recorrente A e a [Companhia (1)] foi efectivamente alterada em Junho de 2007 mas, apenas cessou em Dezembro de 2008. Tendo a respectiva cessação sido realmente comunicada ao I.P.I.M. em 30 de Janeiro de 2009, ou seja, no prazo de 30 dias.
- Como resulta do artigo 93.º do C.P.A., sob a epígrafe “audiência dos interessados”, impende um dever/obrigação sobre o órgão da administração de concluída a instrução e antes de ser tomada a decisão final, de ouvir, por escrito ou oralmente, os interessados, devendo informá-los do sentido provável da decisão, acontece que, o Exmo. Secretário da Economia e Finanças, ora Entidade Recorrida não notificou o ora Recorrente A para este ser ouvido previamente em relação à alegada decisão final, designadamente, para avaliar da justa ou não justa causa da não comunicação da alteração contratual.
- Acresce ainda que na tomada de decisão poderiam ainda ter sido atendidas as razões que se encontram por detrás da concessão da autorização de residência conforme o disposto na al. 2) e 4) do n.º 2 do art.º 9.° da Lei n.º 4/2003, designadamente, o facto de o Recorrente ficar sem trabalho de um momento para o outro e ser colocado numa difícil tarefa de sustento dos dois filhos menores que tem a seu cargo, e de futuro incerto quanto ao destino a dar à sua vida e à vida dos que de si dependem, designadamente, o facto de ter que se desfazer de toda uma vida de mais de 7 anos de residência em Macau e ao serviço de empresas sediadas na RAEM, contribuindo para o bom desenvolvimento das mesmas.
- Razão pela qual, o acto em apreço para além de causar graves prejuízos e de difícil reparação ao Recorrente e aos interesses que este persegue, como por exemplo nos estudos dos filhos, na sua actividade laboral (fonte de sustento e suporte familiar), estabilidade familiar, incerteza quanto ao rumo em que poderá estabelecer a residência, até na contratação da empregada doméstica ou na simples renovação da carta de condução, viola princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça consagrados nos artigos 5.º, 7.º e 138.º, todos do C.P.A.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
A) O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- Por despacho do Senhor Chefe do Executivo datado em 14MAR2006, foi concedida a autorização da residência temporária ao ora recorrente A, com fundamento na circunstância de ser ele quadro dirigente contratado por empregador local;
- Por força do mesmo despacho, a autorização de residência temporária, concedida ao recorrente A, foi estendida ao seu cônjuge B, ora recorrente, e aos dois filhos menores;
- Nos termos dessa autorização, o período de validade da autorização concedida aos recorrentes é de 3 anos, ao passo que a autorização concedida aos seus filhos menores é válida até 03ABR2007 que é 30 dias antes da expiração da validade dos seus passaportes.
- Em 28FEV2007, o recorrente A requereu a renovação da autorização de residência temporária dos seus filhos menores;
- Requerimento esse que foi deferido e o período de validade da autorização dos filhos menores foi prorrogado até 14MAR2009;
- A situação levada em conta pela Administração para a concessão da autorização ao recorrente A é o facto de ele se encontrar contratado em Macau pela [COMPANHIA (1)] para o desempenho das funções de “Vice-President – Casino Operations”, com o salário mensal de MOP$25.000,00;
- Situação essa que cessou em 04JUN2007;
- No período compreendido entre 01JUL2007 e 31DEZ2009, o recorrente A foi contratado pela [COMPANHIA (1)] como “consultant”, auferindo o salário mensal no valor de MOP$4.000,00;
- No período compreendido entre 01AGO2008 e 31JUL2010, foi “Managing Director” da [COMPANHIA (2)], auferindo o salário mensal no valor de MOP$50.000,00;
- Das cartas dirigidas pelo IPIM ao ora recorrente A notificando-lhe a concessão da autorização de residência temporária e a renovação da autorização concedida aos seus filhos menores, consta a menção expressa de que nos termos do disposto no artº 18º do regulamento acima citado, fique a V. Exa. notificada de que deva comunicar ao IPIM a eventual cessação do seu contrato de trabalho com a corrente entidade patronal, no prazo de 30 dias a contar da cessação e se for caso disso apresentar documentos comprovativos do exercício de novas actividades, sob pena de cancelamento da autorização de residência temporária. – vide fls. 79 e 80 do processo instrutor;
- O ora recorrente comunicou essas alterações da sua situação profissional em 30JAN2009, no momento em que formulou o requerimento da renovação da autorização de residência temporária.
B) Resulta, ainda, do processo administrativo, o seguinte:
i) Em 10 de Outubro de 2011, um técnico superior do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (IPCIM), elaborou a seguinte informação:

“Assunto: Apreciação do pedido da autorização de residência
À Comissão Executiva:
1. Identificação dos interessados:
N
Nome
Relação
Doc Identifi
N.º
Com validade até
Período residência temporária autorizada
1
A
Requerente
Passaporte da Austrália
XXXXXXXX
10/01/2017
Até 14/03/2009
2
B
Cônjuge
Passaporte da Inglaterra
XXXXXXXXX
04/01/2016
Até 14/03/2009
3
C
Descendente
Passaporte da Austrália
XXXXXXXX
06/12/2011
Até 14/03/2009
4
D
Descendente
Passaporte da Austrália
XXXXXXXX
06/12/2011
Até 14/03/2009

2. O requerente requereu a residência temporária com fundamento de ser contratado como “Vice-Presidente-Casino-Projects” pela “[Companhia (3)]” com um salário mensal de MOP25.000,00. O seu pedido foi autorizado em 14 de Março de 2006 (Processo nº XXXX/XXXX).
3. Em 28 de Fevereiro de 2007 (sic), o requerente entregou a este Instituto os documentos comprovativos sobre a manutenção da situação jurídica que fundamentou a autorização referida, no sentido de pedir a renovação da autorização de residência temporária dos seus dois descendentes (processo n.º XXXX/XXXX/XX). Tal pedido foi deferido em 1 de Abril de 2008.
4. O requerente apresentou o presente pedido, fornecendo as informações acerca das relações de trabalho durante o período de residência temporária autorizada:




Empregadora

Cargo

Salário
Período de permanência no cargo
1
[Companhia (3)]
Vice-President-Casino-Projects
MOP25.000,00
01/02/2006 a 04/06/2007
2
[Companhia (1)]
Assessor
HKD4.000,00
01/07/2007 a 31/12/2009
3
[Companhia (2)].
Managing Director
MOP50.000,00
01/08/2008 a 31/07/2010
4
[Companhia (4)]
Vice Pres. Casino Marketing
MOP128.544,00
02/08/2010 a 12/10/2010
5
[Companhia (2)].
Managing Partner
MOP50.000,00
01/11/2010 até à presente

5. Apenas em 30 de Janeiro de 2009 é que o requerente notificou o IPIM, por escrito, da alteração das relações de trabalho relativas aos pontos 1, 2 e 3 constantes da tabela anterior e apresentou os respectivos documentos comprovativos (vide as fls. 19 a 36).
6. Tendo analisado as relações de trabalho, constata-se que, no dia 28 de Março de 2007 (sic), em que o requerente tratou da renovação da autorização de residência temporária dos seus descendentes, já foi alterada a sua situação jurídica relevante (relação de trabalho) que fundamentou a concessão da autorização (tais como a empresa onde trabalhou, cargo e vencimento), sobretudo o vencimento no valor de HKD4.000,00, valor este é muito inferior ao montante de MOP25.000,00 que foi considerado como fundamento para a autorização do pedido inicial. Além disso, o seu cargo passou de “vice-president-casino-projects” para “assessor”.
7. Pelos termos expostos, entende-se que o requerente não manteve, no período entre 1 de Julho de 2007 e 1 de Agosto de 2008, a mesma situação jurídica relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência, nem cumpriu a obrigação de comunicação prevista na lei.
8. Dispõe o art.º 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 que:
(1) O interessado deve manter, durante todo o período de residência temporária autorizada, a situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão dessa autorização.
(2). A autorização de residência temporária deve ser cancelada caso se verifique extinção ou alteração dos fundamentos referidos no número anterior, excepto quando o interessado se constituir em nova situação jurídica atendível no prazo que lhe for fixado pelo Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau ou a alteração for aceite pelo órgão competente.
(3). Para efeitos do disposto no número anterior, o interessado deve comunicar ao Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau a extinção ou alteração dos referidos fundamentos no prazo de 30 dias, contados desde a data da extinção ou alteração.
(4). O não cumprimento sem justa causa da obrigação de comunicação prevista no número anterior, dentro do respectivo prazo, poderá implicar o cancelamento da autorização de residência temporária.
9. Dispõe o art.º 19.º n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 que a renovação pressupõe a manutenção, na pessoa do interessado, dos pressupostos que fundamentaram o deferimento do pedido inicial.
10. Já através do Ofício n.º XXXX/XXXX/XXXXX/XXXX e do Ofício n.º XXXXX/XXXX/XXXX, datados de 30 de Março de 2006 e de 30 de Abril de 2008, respectivamente, o IPIM notificou o requerente de que devia comunicar a este Instituto a extinção ou alteração da situação jurídica no prazo de 30 dias, contado desde a data da extinção ou alteração, e entregar as respectivas provas documentais dentro do prazo referido (vide as fls. 37 a 38).
11. Contudo, os documentos constantes do processo de pedido revelaram que o requerente não cumpriu a obrigação de comunicação, não entregando os documentos relativos às relações de trabalho dentro do prazo devido, nem mantendo os pressupostos que fundamentaram o deferimento do pedido inicial.
12. Por todo o exposto e devido a que o requerente não comunicou a este Instituto no prazo fixado a alteração da relação de trabalho que fundamentou a concessão da autorização de residência temporária apesar de ter sido notificado por escrito, nem entregou documentos comprovativos das novas relações de trabalho ou manteve os pressupostos que fundamentaram o deferimento do pedido inicial, propõe-se que seja indeferido o presente pedido da renovação da autorização de residência temporária dos referidos indivíduos, nos termos do Regulamento Administrativo n.º 3/2005”.
ii) Em 13 de Outubro de 2011, o Chefe do Gabinete Jurídico e de Fixação de Residência IPCIM emitiu o seguinte parecer:
“Concordo com a proposta”.
iii) Em 20 de Outubro de 2011, o Presidente da Comissão Executiva IPCIM exarou o seguinte parecer:
“Concordo com a análise desenvolvida nesta informação. Apesar de ter sido notificado por escrito, o requerente não comunicou a este Instituto no prazo fixado a alteração da relação de trabalho que fundamentou a concessão da autorização de residência temporária. Além disso, não apenas não entregou documentos comprovativos da nova relação de trabalho, como também não manteve os pressupostos que fundamentaram o deferimento do pedido inicial. Pelo exposto, propôs-se o indeferimento do pedido da renovação da autorização de residência temporária dos seguintes indivíduos. Nestes termos, proponho que seja indeferido o presente pedido.
   Nº
   Nome
   Relação
   1.
   A
Requerente
   2.
   B
Cônjuge
   3.
   C
Descendente
   4.
   D
Descendente
À superior consideração de V. Exª”.
iv) Em 16 de Dezembro de 2011, o Secretário para a Economia e Finanças, proferiu o seguinte despacho:
“Autorizo a proposta”.
É este o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
São três as questões a decidir.
A primeira questão a resolver é a de saber uma vez se o Recorrente A nunca foi notificado da obrigatoriedade da comunicação das alterações ao contrato que fundamentara a concessão da autorização de residência em Macau e, sendo assim, se tal omissão constitui fundamento para anulação do acto recorrido.
A segunda questão que cumpre resolver consiste em saber se houve preterição de uma formalidade essencial no procedimento administrativo, a audiência do interessado.
A terceira questão que importa solucionar consiste em saber se o acto recorrido violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça ou se houve total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.

2. Falta de notificação
Entendem os recorrentes que o Recorrente A nunca foi notificado da obrigatoriedade da comunicação das alterações ao contrato que fundamentara a concessão da autorização de residência em Macau e, sendo assim, que tal omissão constitui fundamento para anulação do acto recorrido.
Os recorrentes não alegam que norma ou princípio jurídicos impõem tal notificação.
E eles não existem.
Na verdade, o único preceito que se refere à alteração de situação, o artigo 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, de 4 de Abril, dispõe o seguinte:
“Artigo 18.º
Alteração da situação
1. O interessado deve manter, durante todo o período de residência temporária autorizada, a situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão dessa autorização.
2. A autorização de residência temporária deve ser cancelada caso se verifique extinção ou alteração dos fundamentos referidos no número anterior, excepto quando o interessado se constituir em nova situação jurídica atendível no prazo que lhe for fixado pelo Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau ou a alteração for aceite pelo órgão competente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, o interessado deve comunicar ao Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau a extinção ou alteração dos referidos fundamentos no prazo de 30 dias, contados desde a data da extinção ou alteração.
4. O não cumprimento sem justa causa da obrigação de comunicação prevista no número anterior, dentro do respectivo prazo, poderá implicar o cancelamento da autorização de residência temporária”.
Pois bem, não existe nenhum dever, fixado normativamente, de os interessados serem notificados do conteúdo do artigo 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, pelo que, ainda que a Administração não tivesse notificado o recorrente, de que teria de comunicar a extinção ou alteração da situação juridicamente relevante, que fundamentou a concessão da residência temporária, isso seria inteiramente irrelevante.
Improcede, portanto, o vício suscitado.

3. Preterição da audiência do interessado
Invoca o recorrente preterição de uma formalidade essencial no procedimento administrativo, a audiência do interessado.
É indiscutível que no procedimento administrativo a Administração não deu cumprimento ao disposto no artigo 93.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, que estatui “...concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”
A entidade recorrida considera que não se justificava ouvir os recorrentes já que o acto administrativo assentou nos elementos fornecidos pelos próprios interessados quando requereram a renovação de residência.
E o Acórdão recorrido considerou o mesmo e ainda que, aquando da notificação do deferimento da autorização de residência, o recorrente foi alertado pela Administração da consequência jurídica do incumprimento da sua obrigação de comunicar eventuais alterações da situação do seu emprego em Macau.
Vejamos.
Quanto à questão da audiência prévia, dissemos o seguinte no nosso Acórdão de 25 de Julho de 2012, no Processo n.º 48/2012:
<3. Formalidades essenciais e não essenciais
O procedimento administrativo consiste numa sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública, ou à sua execução (artigo 1.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo).
Ensina MARCELLO CAETANO1 que formalidade é “todo o acto ou facto, ainda que meramente ritual, exigido por lei para segurança da formação ou da expressão da vontade de um órgão de uma pessoa colectiva”, acrescentando que “os próprios prazos estabelecidos para a prática de um acto entram no conceito genérico de formalidade bem como os actos preparatórios, decisões ou deliberações que tendem a tornar possível a prática do acto definitivo, num caso e noutro formalidades relativas à formação da vontade administrativa; as que integram a forma respeitam à expressão ou manifestação dessa vontade”.
Como se sabe, as formalidades são essenciais ou não essenciais, consoante a sua preterição ou omissão afecte ou não a validade do acto que delas dependa ou que por elas se traduza.
Em princípio, toda a formalidade prescrita por lei é essencial, pelo que tem de ser observada para que o acto seja válido.
A sua não observância, quer por omissão, quer por preterição, gera invalidade do acto.2
Mas, ainda na lição de MARCELLO CAETANO3, “Aparte os casos em que a lei declare essenciais ou não essenciais as formalidades, devem considerar-se como não essenciais:
a) as formalidades preteridas ou irregularmente praticadas quando, apesar da omissão ou irregularidade, se tenha verificado o facto que elas se destinavam a preparar ou alcançado o objectivo específico que mediante elas se visava produzir;
b) as formalidades meramente burocráticas prescritas na lei com o intuito de assegurar a boa marcha interna dos serviços”.


5. A formalização do procedimento administrativo
“O procedimento administrativo é a Administração em acção e, por isso, constitui o modo de realização do Direito Administrativo (pelo menos na medida em que este careça de concretização, ou seja, não integre normas exequíveis por si mesmas)”4.
Formalizar o procedimento administrativo significa vincular a Administração a praticar determinados actos e formalidades antes de tomar uma decisão final relativa a certo circunstancialismo fáctico. “Daí que a formalização signifique a limitação da possibilidade de a Administração estruturar o procedimento administrativo (que, insista-se, sempre tem de ser realizado em razão da própria orgânica administrativa) casuisticamente”5.
Pondera PEDRO MACHETE que “O procedimento administrativo não formalizado significa a possibilidade de o administrado ser tratado como «objecto», ver o seu papel procedimental reduzido a simples meio ou elementos de prova submetido passivamente ao poder inquisitório da Administração (potestas inspiciendi suprema). Daí que o significado fundamental da formalização do procedimento administrativo, no quadro de valores próprio de um Estado de Direito, seja o de reconhecer o particular como pessoa dotada de uma dignidade intangível que não pode ser tratada como objecto passivo. A tradução procedimental desta valoração é o reconhecimento do particular como sujeito procedimental”6.

6. Audiência dos interessados (continuação)
O artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo consagra o princípio da participação dos particulares na formação das decisões administrativas nos seguintes termos:
“Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência, nos termos deste Código”.
A audiência dos interessados é o momento por excelência da participação dos particulares no procedimento administrativo.7
Por outro lado, a doutrina sublinha, justamente, que a audiência dos interessados antes de ser tomada a decisão final é um direito e não uma benesse da Administração, aliás, como resulta da própria letra da lei.8 Acrescenta ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA que “Na audição, o cidadão deve ter a possibilidade real de levar para o processo a sua visão das questões relevantes. O direito à audição constitui uma garantia de um procedimento transparente (protecção contra decisões-surpresa), de igualdade de oportunidades e de uma decisão que atende às circunstâncias do caso concreto. Estes objectivos fundamentais não são garantidos apenas através da audição, mas também através de outros mecanismos, como direito à orientação e ao aconselhamento, o direito à colaboração no esclarecimento dos factos, o direito à consulta do processo, o direito a ser informado ou o direito a uma clara e completa fundamentação da decisão final.
O direito à audição não serve apenas à protecção jurídica subjectiva, mas visa também fins de formação de consenso, maior proximidade aos factos e aumento da aceitação das decisões. Trata-se pois de uma formalidade que se insere na tendência da moderna Administração para dialogar, buscar o consenso, enfim, realizar a justiça material”.
A formalidade da realização da audiência está prevista no artigo 93.º do mesmo Código:

“Artigo 93.º
(Audiência dos interessados)

1. Salvo o disposto nos artigos 96.º e 97.º, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.
2. O órgão instrutor decide, em cada caso, se a audiência dos interessados é escrita ou oral.
3. A realização da audiência dos interessados suspende a contagem de prazos em todos os procedimentos administrativos”.


7. Inexistência e dispensa de audiência dos interessados
A audiência dos interessados nem sempre é obrigatória. A lei prevê expressamente casos em que não existe audiência e casos em que o órgão instrutor a pode dispensar.
Regem nesta matéria os artigos 96.º e 97.º do Código do Procedimento Administrativo:
“Artigo 96.º
(Inexistência de audiência dos interessados)

Não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada.
Artigo 97.º
(Dispensa de audiência dos interessados)

O órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados”.

  Vejamos. Como nota LUÍS CABRAL DE MONCADA “A audiência prévia é seguramente o conteúdo procedimental mínimo da relação jurídica administrativa. Por essa razão devem ser contados os casos em que a Administração dele pode prescindir bem como os casos em que em procedimentos especiais ela está como que reduzida ao mínimo expoente por poderosas razões de interesse público.
  É, portanto, dentro de um enquadramento necessariamente muito restritivo que se deve admitir a dispensa legal da audiência e a possibilidade de a Administração considerar que a lei lhe deu a possibilidade de prescindir da audiência prévia do particular no procedimento administrativo. É a própria substância da relação jurídica administrativa que está em causa se não for assim”.9
O artigo 93.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, ao estatuir que, “salvo o disposto nos artigos 96.º e 97.º, concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final...” é uma norma imperativa. Nunca se controverteu esta asserção.
As situações de inexistência e de dispensa de audiência, previstas nos artigos 96.º e 97.º, são excepções àquela regra.
Na verdade, o legislador optou por consagrar uma enumeração taxativa dos casos de inexistência e de dispensa de audiência, podendo ter optado por outra solução, como uma cláusula geral de excepção ao dever de audiência, conferindo uma margem de decisão à Administração, como acontece na legislação alemã.10 Não é o caso.
Esta circunstância conduz PEDRO MACHETE 11a defender que está afastada a possibilidade de aplicar analogicamente normas como as dos 96.º e 97.º, na medida em que a lei proíbe a aplicação analógica das normas excepcionais (artigo 10.º do Código Civil vigente, artigo 11.º do Código Civil de 1966)>.

4. O caso dos autos
O acto recorrido cancelou a autorização de residência com fundamento no n.º 4 do artigo 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, segundo o qual “O não cumprimento sem justa causa da obrigação de comunicação prevista no número anterior, dentro do respectivo prazo, poderá implicar o cancelamento da autorização de residência temporária”.
A obrigação de comunicação prevista no número anterior, é o dever que impende sobre o interessado de comunicar ao Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau a extinção ou alteração da situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência temporária em Macau, no prazo de 30 dias, contados desde a data da extinção ou alteração.
A competência prevista na norma (cancelamento da autorização de residência temporária) integra o exercício de um poder discricionário da Administração, desde que se conclua que o interessado não cumpriu, sem justa causa (conceito indeterminado), a obrigação de comunicação da extinção ou alteração da situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência temporária, no prazo de 30 dias, contados desde a data da extinção ou alteração (momento vinculado do acto).
No caso dos autos não tinha aplicação o disposto no artigo 96.º do CPA (Inexistência de audiência dos interessados) e também, seguramente que não a alínea b) do artigo 97.º do mesmo diploma (dispensa de audiência por a decisão ser favorável ao interessado).
E a alínea a) do artigo 97.º do CPA, segundo a qual o órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas?
No caso a norma não tinha aplicação já que os recorrentes nunca se pronunciaram no procedimento sobre as questões que importavam à decisão e sobre as provas produzidas.
Não obstante, como se disse, a entidade recorrida considera que não se justificava ouvir os recorrentes já que o acto administrativo assentou nos elementos fornecidos pelos próprios interessados quando requereram a renovação de residência.
Mas sem razão. Uma coisa é os interessados disponibilizarem à Administração os elementos contratuais ao abrigo dos quais o recorrente prestava trabalho em Macau. Outra coisa, totalmente distinta, é a Administração concluir, a partir desses elementos, que o interessado não cumpriu uma obrigação legal de comunicação da situação juridicamente relevante que fundamentou a concessão da autorização de residência temporária.
E outra coisa, ainda diferente, é a Administração, a partir desta conclusão (momento vinculado do acto, como se disse atrás), exercer o seu poder discricionário de cancelar a autorização de residência. E este cancelamento, certamente, não podiam os interessados adivinhar que ele ocorreria, quando juntaram aqueles elementos.
É que, quando a competência é discricionária nunca pode a audiência ser dispensada, por haver, como explica JOÃO PACHECO DE AMORIM12, “previsivelmente, mais do que uma solução possível para o caso concreto, devendo por isso ser dada aos interessados a possibilidade de questionarem o mérito ou a legalidade da solução prefigurada pela Administração e de procurarem influenciar o conteúdo e sentido da decisão”.
Por esta ordem de razões, carece de fundamento o entendimento do Acórdão recorrido de que não se justificaria a audiência do interessado dado que aquando da notificação do deferimento da autorização de residência, o recorrente foi alertado pela Administração da consequência jurídica do incumprimento da sua obrigação de comunicar eventuais alterações da situação do seu emprego em Macau.
Como se explicou atrás, uma coisa é o recorrente não ter cumprido a obrigação de comunicação. E, mesmo quanto a este incumprimento, o recorrente poderia não estar de acordo com a conclusão da Administração, até porque, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 18.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, havendo justa causa para a omissão da obrigação de comunicação, a Administração não pode cancelar a autorização de residência. Ora, sempre a audiência do interessado seria o momento próprio para este alegar e provar que teve justa causa para não ter comunicado a alteração da situação juridicamente relevante.
Outra coisa, é a partir daquela conclusão, a Administração decidir cancelar a autorização da residência, já que, face ao regime legal, poderia, igualmente, ter decidido não cancelar tal autorização.
Ora, a audiência do interessado seria, também, o momento indicado para o recorrente tentar convencer a Administração a não usar do seu poder discricionário, no sentido do cancelamento da autorização de residência temporária.
Em suma, a audiência prevista no artigo 93.º do CPA não poderia ter sido omitida, pelo que procede este fundamento para a anulação do acto recorrido.
Está prejudicado o conhecimento dos restantes vícios.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o Acórdão recorrido e anulam o acto recorrido.
Sem custas.

Macau, 22 de Maio de 2013.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho
1 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I volume, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 1980, p. 470.
   2 FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, Vol. I, 2.ª edição, 2011, p. 385.
   3 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 471 e 472.
4 RAINER WAHL, citado por PEDRO MACHETE, A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 1996, p. 79 e 80.
5 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 84.
6 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 88.
   7 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Actividade Administrativa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007, p. 127.
   8ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, A Participação dos Interessados no Procedimento Administrativo, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003, p. 105.
9 LUÍS CABRAL DE MONCADA, A Relação Jurídica Administrativa, Para um Novo Paradigma de Compreensão da Actividade, da Organização e do Contencioso Administrativos, Coimbra Editora, 2009, p. 226 e 227.
10 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 477.
11 PEDRO MACHETE, A Audiência..., p. 476.
   12 JOÃO PACHECO DE AMORIM, A Instrução do Procedimento: Pareceres Vinculativos e Audiência dos Interessados no Código do Procedimento Administrativo, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 82, Julho/Agosto de 2010, p. 28 e 29.
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Processo n.º 28/2013