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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A intentou, junto do Tribunal Judicial de Base, uma acção do processo comum de trabalho contra B, pretendendo a sua condenação no pagamento da quantia total de MOP$1,966,891.81, a título de compensação por conta do trabalho prestado durante os períodos de descanso anual, semanal e de feriados obrigatórios, com juros vencidos, de compensação por conta da lesão da personalidade física e psíquica adveniente da violação do direito ao repouso e aos lazeres e a título de sanção pecuniária compulsória.
Por sentença proferida pela Exma. Juíza do Tribunal Judicial de Base, foi a acção julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
Inconformado com esta decisão, recorreu o Autor A para o Tribunal de Segunda Instância, em consequência da qual interpôs a Ré B recurso subordinado da mesma sentença, suscitando a questão relativa à apreciação de carácter remissivo da declaração emitida pelo Autor que sustenta a extinção da obrigação pelo pagamento.
Por Acórdão proferido em 17 de Janeiro de 2013, o Tribunal de Segunda Instância decidiu conceder provimento ao recurso subordinado, confirmando a sentença recorrida e julgar prejudicado o conhecimento do recurso principal.
Deste Acórdão vem agora o Autor A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
A. Na perspectiva do Autor, nunca a declaração de fls. 298, face ao seu teor, se poderia configurar como uma remissão de créditos ou como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo implícito de dívida.
B. Primeiro, porque tal declaração de fls. 298, a considerar-se extintiva dos direitos do trabalhador, seria nula nos termos do disposto no art.º 279.º do C. Civil ex vi do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M de interpretado a contrário.
C. Segundo, porque a decisão do Tribunal a quo partiu apenas de uma parte da declaração de quitação de fls. 298: (“tenho conhecimento que a mesma quantia é paga pela referida sociedade a título de compensação de todos os dias de descanso legais”), abstraindo-se da sua parte final (“nos termos do resultado da análise do parecer da DSTE elaborado neste processo”), da qual flui que o declarante circunscreveu o alcance da quitação ao valor do cálculo resultante do parecer da DSTE (fls.134).
D. Terceiro, porque o Autor só deu quitação do valor calculado pelo DIT da DSTE – que lhe foi efectivamente pago – referente a todos os dias de descanso legal durante o período em que trabalhou para a Ré, e não quitação de todos e quaisquer os valores a que, nos termos da lei, pudesse ter direito pelo trabalho prestado à Ré nesses dias.
E. A compensação recebida pelo Autor não tem, pois, efeitos extintivos da dívida por todas e quaisquer quantias a que pudesse ter direito pelo trabalho prestado nos dias de descanso legal, por faltarem à declaração de fls. 298 os pressupostos da remissão de créditos ou da quitação com reconhecimento negativo de dívida.
F. É também esse o sentido que decorre da lei, dado, face ao disposto no art.º 230.º, n.º 1, do C. Civil, não se poder atribuir à declaração um sentido que nele não tenha correspondência verbal, sem prejuízo, em caso de dúvida, do disposto no art.º 229.º do C. Civil.
G. Isto por faltar à declaração de fls. 298 a indicação suplementar de que o devedor já nada deve ao credor.
H. E faltando essa indicação – como falta – e não possuindo a quitação o condão de extinguir a dívida para além do valor nela contemplado, afigura-se que a declaração de fls. 298 não extinguiu o direito de crédito controvertido nos autos, devendo, por isso, ser revogado o acórdão recorrido, com as legais consequências.
I. Com efeito, se na declaração de quitação de fls. 298 o Autor não declarou que o valor do cheque recebido correspondia a toda e qualquer indemnização a que tinha direito pelo trabalho prestado nos dias de descanso legal durante o período em que trabalhou para a Ré, nada mais lhe podendo exigir ou dela tendo a receber, então, não se pode aplicar a tal declaração o mesmo tratamento reservado ao outro tipo de declaração onde o trabalhador declarou que, recebido o valor da indemnização, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a Ré subsistia e, por consequência, nenhuma quantia lhe era por si exigível na medida em que nenhuma das partes devia à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
J. Isto, dado não se poder tratar da mesma maneira o que é desigual, por força do princípio da igualdade o qual determina que se trate de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente na medida da diferença.
K. Por último, a entender-se que o despacho liminar não formou caso julgado formal, teria sido necessário ao conhecimento dos pontos 5, 6, 7 e 9 das conclusões das alegações do recurso subordinado, que, na sua Contestação, a Ré tivesse oposto ao Autor a excepção peremptória da remissão de créditos e/ou do reconhecimento negativo de dívida (art.º 409.º do C. Processo Civil) e, nessa parte, tivesse ficado vencida na sentença proferida pelo tribunal de primeira instância (art.º 585.º, n.º 1 do C. Processo Civil).

Contra-alegou a B, formulando as seguintes conclusões:
1. Andou bem o Douto Acórdão recorrido, assim a douta Sentença do Tribunal Judicial de Base, na consideração da “Declaração” como extintiva dos eventuais créditos do Autor sobre a Ré, decorrentes da relação laboral mantida entre ambas e já cessada;
2. O Tribunal a quo aderiu, assim, ao entendimento do Tribunal de Última Instância (TUI) no que toca a esta matéria, mormente ao expresso no Acórdão n.º 46/2007, de 27 de Fevereiro de 2008, no âmbito do qual se declara que “A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais”;
3. Mais invoca o Acórdão do TUI n.º 27/2008, de 30 de Julho de 2008, no âmbito do qual a Alta Instância qualifica a “Declaração” como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo da dívida, não obstante também afirmar que, tratando-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a Ré;
4. Aliás, o Tribunal de Segunda Instância defende o mesmo entendimento quanto à qualificação jurídica da “Declaração” assinada no Departamento da Direcção de Trabalho e Emprego, como é exemplo o Acórdão proferido no Processo n.º 216/2011;
5. Seja qual for a qualificação que juridicamente se lhe atribua, visa a mesma “Declaração” a produção dos efeitos de fazer extinguir a dívida do devedor e o reconhecimento definitivo da inexistência da prestação devida ao credor;
6. No caso dos presentes autos, encontrando-se a “Declaração” assinada, e cessada que estava a relação laboral entre os aqui Ré e Autor, nada mais deve aquela a este;
7. A aqui Recorrida, salvo mais douto entendimento, não pode concordar com tal fundamentação;
8. É o próprio Recorrente quem, na tradução que opera da “Declaração” aqui em crise, claramente refere que o Autor declarou que “..., tenho conhecimento que a mesma quantia é paga pela referida sociedade a título de compensação de todos os dias de descanso legais durante o período em que eu prestava função nesta sociedade, nos termos do resultado da análise do parecer da DSTE elaborado neste processo, e confirmo o recebimento na referida quantia.”;
9. Ou seja, o Autor declarou, expressamente, que recebia a quantia a título de compensação pelo trabalho prestado em todos os dias de descanso. Ora, considerando-se ressarcido por todos os dias de descanso nos quais prestou trabalho, tal como declarado, a que título vem agora reclamar de novo tal compensação?
10. E se dúvidas ainda possam restar, analisemos então os termos “do resultado da análise do parecer da DSTE elaborado neste processo”, tal como declarado pelo Autor. É que não é de somenos importância o facto de a “Declaração” remeter os termos da compensação de todos os dias de descanso para o parecer da DSTE, junto à contestação como documento n.º 1;
11. Assim, a aqui Recorrida considera que basta a análise do ponto 4. desse mesmo parecer (a conclusão) para que se dissipem quaisquer dúvidas. Transcrevendo-se:
12. “4. Em conclusão, confirma-se que a prática da B enferma de algumas ilegalidades, e, por este motivo, a B deverá compensar os dias de descanso aos trabalhadores em causa, compensação essa que deverá ser calculada apenas tendo em conta o salário base do trabalhador”;
13. Nestes termos, a aqui Recorrida não consegue vislumbrar o sentido das argumentações do Recorrente, porquanto, remetendo a “Declaração” para o parecer da DSTE quanto à questão dos dias a serem compensados, assim como quanto à forma de cálculo dessa compensação, este – o parecer – é claro no sentido de que tal cálculo se refere a todos os dias que estejam por compensar, ou sejam compensáveis, e não apenas alguns, tal como muito forçadamente pretende o aqui Recorrente fazer crer. Tal não faria qualquer sentido, pois assim sendo, certamente que o seria expressamente referido na “Declaração” e/ou no parecer na DSTE;
14. Nestes termos, porque a declaração produz efeitos extintivos sobre a eventual dívida resultante das compensações por trabalho prestado em dias de descanso, deve o presente Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, o doutamente decidido no Acórdão aqui em crise, assim como em Primeira Instância.

Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Entre 1 de Janeiro de 1984 e 31 de Dezembro de 2000, o Autor trabalhou para a Ré, sendo o seu horário por turnos.
2. O rendimento do Autor desdobrava-se numa parte fixa e outra variável.
3. A parte variável dependia do valor global do dinheiro recebido pelos clientes do casino, ou seja, as gorjetas.
4. As gorjetas recebidas pelos empregados eram colocadas, por ordem da Ré, numa caixa destinada exclusivamente a esse efeito e eram contadas e contabilizadas diariamente também por uma comissão paritária constituída por um membro de tesouraria da Ré, um gerente de andar e um ou mais trabalhadores da Ré por ela incumbidos, a fim de serem distribuídas de 10 em 10 dias aos diversos empregados, incluíndo os da área administrativa e informática e de acordo com a categoria profissional a que pertenciam.
5. A Ré incluiu sempre a quantia paga a título de “gorjetas” nos montantes que participou à DSF para efeitos de liquidação e cobrança de imposto profissional dos seus empregados.
6. Durante a relação contratual entre Autor e Ré nunca as partes puseram em causa o acordo sobre as condições do pagamento do salário e do respectivo cálculo.
7. A componente fixa diária da remuneração do Autor foi de HK$ 4,10 desde 1 de Janeiro de 1984 até 30 de Junho de 1989, HK$10 desde 1 de Julho de 1989 até 30 de Abril de 1995 e HK$15 desde 1 de Maio de 1995 até ao termo do contrato com a Ré em Dezembro de 2000.
8. Entre os anos de 1984 e 2000 o Autor auferiu os seguintes rendimentos:
a) 1984: MOP$ 122.875,00;
b) 1985: MOP$ 132.872,00;
c) 1986: MOP$ 115.534,00;
d) 1987: MOP$ 134.873,00;
e) 1988: MOP$ 131.617,00;
f) 1989: MOP$ 171.720,00;
g) 1990: MOP$ 188.863,00;
h) 1991: MOP$ 185.541,00;
i) 1992: MOP$ 193.826,00;
j) 1993: MOP$ 202.132,00;
k) 1994: MOP$ 204.348,00;
l) 1995: MOP$ 212.725,00;
m) 1996: MOP$ 199.788,00;
n) 1997: MOP$ 138.634,00;
o) 1998: MOP$ 121.769,00;
p) 1999: MOP$ 147.602,00;
q) 2000: MOP$ 147.481,00.
9. Em meados de Julho de 2003, o Autor recebeu os documentos juntos aos autos a fls. 133, 134 e 135, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
10. O Autor recebeu depois a quantia ali referida de MOP$ 12.783,05 e assinou a declaração, cuja tradução consta dos autos de fls. 402, designadamente que tal quantia era paga pela ré a título de compensação de todos os dias de descanso legais.
11. O autor não teria celebrado contrato de trabalho com a ré se apenas recebesse prestação pecuniária fixa referida em G) dos factos assentes.
12. A parte variável do rendimento auferido pelo autor ultrapassava o valor da parte fixa.
13. Durante o período compreendido entre 1 de Janeiro de 1984 e 31 de Dezembro de 2000 o autor nunca gozou quaisquer dias de descanso anual nem de descanso semanal.
14. A ré não pagou ao autor qualquer acréscimo na compensação pelo trabalho prestado durante os períodos de descanso semanal e anual.

3. Direito
A questão a resolver no presente recurso reside em saber se a declaração emitida pelo autor a fls. 298, cuja tradução se encontra a fls. 402 dos autos, é válida e portanto susceptível de fazer extinguir os eventuais direitos de crédito resultantes da relação de trabalho estabelecida entre o autor e a ré.
Citando o Acórdão do Tribunal de Última Instância lavrado em 30 de Julho de 2008 no Processo n.º 27/2008, veio o Tribunal recorrido a seguir a posição nela assumida sobre a mesma questão, tendo concluído que a referida declaração implica que o autor/credor nada mais tenha a exigir do devedor.
Na óptica da recorrente, tal declaração nunca se poderia configurar como uma remissão de crédito ou como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo implícito de dívida, sendo que a compensação já por si recebida não tem efeitos extintivos da dívida por todas e quaisquer quantias a que pudesse ter direito pelo trabalho prestado nos dias de descanso legal, por faltarem àquela declaração os pressupostos da remissão de crédito ou da quitação com reconhecimento negativo de dívida.
Ora, a declaração ora em discussão tem o seguinte teor:
“Declaração
Eu, A (titular do BIRM n.º X/XXXXXX/X), em relação ao processo por não pagamento de recompensação de férias pela B, declaro:
Recebi neste Departamento da Inspecção do Tribunal da DSTE um cheque do BNU, n.º MA XXXXXX, no montante de doze mil, setecentos e oitenta e três patacas e cinco avos (MOP$12.783,05), tenho conhecimento que a mesma quantia é paga pela referida sociedade a título de compensação de todos os dias de descanso legais durante o período em que eu prestava função nesta sociedade, nos termos do resultado da análise do parecer da DSTE elaborado neste processo, e confirmo o recebimento na referida quantia.
             Declarante: A
             Data: 28/07/2004”
Repare-se que a declaração foi emitida em 28 de Julho de 2004, depois da cessação da respectiva relação de trabalho.

A propósito da questão ora em causa, este Tribunal de Última Instância teve já oportunidade de se pronunciar, no sentido contrário ao entendido pelo recorrente, sobre declarações semelhantes até iguais à constante dos presentes autos, emitidas também pelos ex-trabalhadores da B.
Chama-se à colação o Acórdão mais recente proferido em 17 de Abril de 2013, no Processo n.º 13/2013, em que o ex-trabalhador da B assinou uma declaração com o seguinte teor:
Declaração
  “Eu, … (titular do BIRM n.º …), relativamente à queixa contra a B, por esta não ter pago a compensação pelos dias de descanso, venho prestar a declaração seguinte:
  Declaro que recebi, mediante o Departamento da Inspecção do Trabalho da Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego, um cheque do Banco Nacional Ultramarino n.º MAXXXXXX, no valor de MOP12,808.65 e entendo que a importância recebida é toda a compensação pelos dias legais de descanso durante o período de trabalho paga pela Sociedade referida a mim conforme o resultado de análise no parecer sobre este caso da Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego, pelo que confirmo a recepção deste valor sem dúvida. ”
O conteúdo desta declaração é igual ao da emitida nos presentes autos, o que resulta evidentemente da sua versão chinesa.

Neste Acórdão e reafirmando a posição já assumida no Acórdão de 30 de Julho de 2008, no Processo n.º 27/2008, o Tribunal de Última Instância disse o seguinte:

Como se disse, a autora deixou de trabalhar para a B em 2002 e, em 2003, tendo recebido desta entidade determinada quantia em dinheiro, emitiu declaração escrita na qual declarou ter recebido determinada quantia da B, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrente do mesmo vínculo laboral.
Mais declarou a autora que nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com B subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por exigível, por qualquer forma, à mesma empresa.
Há, assim, e em primeiro lugar que qualificar juridicamente a declaração da autora, na qualidade de ex-trabalhadora da B.
A sentença do Ex.mo Juiz do Tribunal Judicial de Base considerou que a declaração da autora consubstancia uma remissão e o Acórdão recorrido aceita esta qualificação.
Outro Acórdão do TSI sobre a questão em apreço, o de 19 de Julho de 2007, no Processo n.º 294/2007, levanta algumas dúvidas sobre tal qualificação e diz que a declaração sempre constituiria quitação da dívida.
Vejamos. A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré>.

Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade>.

O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais
São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma.
Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso>.

Entende o autor que a declaração que outorgou é diferente da que se refere, por exemplo, o mencionado Acórdão, pelo que a decisão então tomada não pode ser transposta para o caso dos autos.
Sobre esta questão entendeu o Acórdão recorrido, que tratando-se de declarações um pouco diferentes, no substancial diziam o mesmo, pelo que entendeu aplicar a mesma doutrina do Acórdão de 30 de Julho de 2008 do TUI.
E é assim, embora, formalmente, haja diferença entre as duas declarações.
   No caso dos autos, diz que a verba recebida é toda a compensação relativa aos dias legais de descanso.
   Ora, como no presente recurso, o autor apenas pretende verbas pelos dias de descanso não gozados, tem de se entender que ele deu quitação pelas compensações relativas a estes dias. Logo, nada mais pode reclamar quanto aos dias de descanso.
   Improcede, portanto, o recurso.>”

Face às considerações acima transcritas e à similitude dos casos, afigura-se-nos não ser de alterar a posição já assumida.
Alega o recorrente que, como não consta da declaração por si assinada que o valor recebido correspondia a toda e qualquer compensação que teria direito a receber pela prestação de trabalho nos dias de descanso legal, ele não deu quitação de todo esse valor, mas sim apenas do valor calculado pela DSTE.
Na realidade, e tal como afirma o Acórdão recorrido, afigura-se-nos que, mesmo que a declaração não contenha, especifica e claramente, o conteúdo indicado, o recorrente declara expressamente que recebeu a quantia paga pela ex-entidade patronal “a título de compensação de todos os dias de descanso legais” durante o período em que ele prestava função, o que permite tirar ilação no sentido de reconhecer implicitamente que recebeu todas as compensações devidas pelos dias de descanso legais não gozados que tinha direito.
Face ao seu conteúdo e aos termos em que foi dirigida, a declaração em causa não pode deixar de ter o sentido de dar quitação a todo o valor compensatório, com o pagamento da quantia indicada na mesma declaração.
Não é verdade que a interpretação feita pelo Tribunal recorrido não tenha mínima correspondência no texto da declaração emitida pelo recorrente, tal como ele alega ao abrigo do n.º 1 do art.º 230.º do Código Civil de Macau.
Nota-se ainda que o respectivo valor foi pago “nos termos do resultado da análise do parecer da DSTE”, entidade pública com competência para analisar e tratar dos assuntos decorrentes de conflitos laborais, através da conciliação das partes e emissão de pareceres.
Sendo a DSTE (actualmente DSAL) entidade responsável pelo assunto em causa, o recebimento do valor por si calculado pressupõe normalmente a concordância das partes com o parecer emitido.
Poderá acontecer que, não obstante ter recebido uma determinada quantia, mesmo que calculada conforme o parecer da DSAL, e sem prejuízo de reclamar mais tarde pelo pagamento do restante valor compensatório que entender ter direito, o trabalhador não tenha intenção de renunciar aos eventuais direitos, dando quitação ao respectivo valor, casos em que a declaração não devia, porém, conter a menção de receber a quantia correspondente à “compensação de todos os dias de descanso legais”, tal como sucedeu no nosso caso concreto.
E não havendo dúvida quanto ao sentido da declaração, não se deve aplicar a disposição legal no art.º 229.º do Código Civil de Macau.

Por fim, e com a afirmação contida na al. K das conclusões das alegações do recurso apresentadas (que se trata do resumo dos pontos 28 e 29 das alegações), parece que o recorrente queria levantar questão quanto à legitimidade da ré para recorrer, citando o disposto no n.º 1 do art.º 585.º do Código de Processo Civil de Macau.
Ora, constata-se nos autos que o Tribunal Judicial de Base chegou a pronunciar-se sobre a questão, tendo decidido admitir o recurso subordinado interposto pela ré (cfr. fls. 772 dos autos) e, subidos os autos ao Tribunal de Segunda Instância, o Exmo. Juiz Relator do processo proferiu o douto despacho no sentido de considerar bem admitido o recurso, não havendo nada que obste ao seu conhecimento.
Notificadas as partes do despacho, ninguém reagiu contra ele, daí que é intempestivo suscitar-se agora a questão, que se encontra já resolvida.

É de julgar improcedente o recurso.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo autor recorrente.

                 Macau, 5 de Junho de 2013
                 
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
                 


1 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, Vol. II, Reimpressão da 7.ª ed. de 1997, 2001, p. 243.
2 ANTUNES VARELA, Das Obrigações..., II vol., p. 243.
3 LUÍS M. TELLES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, Vol. II, 4.ª ed., 2006, p. 219.
4 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, Vol. II, 3.ª ed, 1986, p. 40.
5 ANTUNES VARELA, Das Obrigações..., II vol., p. 252.
6 VAZ SERRA, Remissão, Reconhecimento Negativo da Dívida e Contrato Extintivo da Relação Obrigacional Bilateral, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 43, Julho de 1954, p. 82.
7 VAZ SERRA, Do Cumprimento como Modo de Extinção das Obrigações, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 34, Janeiro de 1953, p. 175.
8 VAZ SERRA, Remissão..., p. 82 e 83.
9 Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões (art. 1172.º, n.º 1 do Código Civil).
10 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código..., II vol., p. 856.
11 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 2005, p. 597. No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1997, p. 734 e BERNARDO LOBO XAVIER, Curso de Direito do Trabalho, Lisboa/São Paulo, Verbo, 2.ª ed, 1999, p. 405.
12 O autor está a referir-se ao princípio da irredutibilidade do salário.
13 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso..., p. 255.
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Processo n.º 21/2013