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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
1. A, promotor de reunião, para “apelo à responsabilização política dos titulares dos principais cargos” a realizar no dia 13 de Julho de 2013, entre as 17h e as 19h30m, no espaço público para peões no Jardim da Penha, interpôs recurso do despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), de 2 de Julho de 2013, que não permitiu a reunião, para este Tribunal de Última Instância (TUI).

2. O mencionado despacho recorrido do Comandante do CPSP, de 2 de Julho de 2013, é do seguinte teor:
  “I. Relatório:
  O conteúdo do aviso de reunião apresentado, em 1 de Julho de 2013, pelo cidadão de Macau, A, ao Presidente substituto do Conselho de Administração do I.A.C.M.:
   Data
Hora
Local de reunião
13 de Julho de 2013
Sábado
17:00-19:30
Espaço público para peões no Jardim da Penha
>
  II. Análise:
1. Na zona do Jardim da Penha encontram-se as fundamentais vias de acesso à Capela de Nossa Senhora da Penha, ora principal ponto turístico de Macau, onde se passa diariamente grande número de autocarros turísticos com que levam grande volume de turistas para a referida Capela, além disso, as referidas vias são estreitas e inclinadas, portanto, caso a reunião for realizada naquele local, poderá causar acidente por haver simultaneamente grande número de pessoas e veículos de grande dimensão nas mesmas vias.
2. O Palacete de Santa Sancha, sito nas proximidades do local da reunião, é um dos edifícios importantes de Macau e é onde se recebem frequentemente os ilustres convidados e políticos do Estado e do estrangeiro. Encontram-se na zona do Jardim da Penha as principais vias de acesso ao Palacete de Santa Sancha e também às residências do Chefe do Executivo e dos titulares dos principais cargos, a par disso, os passeios daquela zona são bastantes estreitos, portanto, caso a reunião for realizada nas proximidades daquela zona, poderá afectar directamente o funcionamento normal das respectivas repartições governamentais, bem como causará perigo aos participantes da reunião.
3. A zona do Jardim da Penha é um local em que se situam as residências do pessoal do governo e do Chefe do Executivo da R.A.E.M., bem como as sedes e instalações dos órgãos equivalentes aos membros do governo, por isso, é considerado como um assunto da ordem pública a garantia de segurança dos referidos órgãos e do seu pessoal, bem como dos ilustres convidados que sejam recebidos nas sedes ou residências dos mesmos. Pelas razões acima expostas, é necessário manter frequentemente desobstruídas as vias estreitas daquela zona, pois não é permissível que a fluidez no trânsito da dita zona seja afectada pelo grande número de participantes da reunião. Deste modo, nos termos do art.º 8º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 2/93/M, exige-se que os participantes da reunião respeitem uma distância não superior a 30 metros dos (referidos) edifícios e instalações.
4. Ademais, toma-se em conta também o bom ordenamento do trânsito de pessoas e de veículos nas vias públicas ao abrigo do art.º 8.º n.ºs 1 e 2. Não se permite a realização dessa reunião no local referido, porque se houver muitas pessoas na cena, mesmo respeitando uma distância mínima de 30 metros das construções referidas, obstaculizar-se-á o trânsito de veículos e de peões, uma vez que, todos os dias, sobretudo nos fins-de-semana, há sempre autocarros de turismo em marcha nas estradas estreitas dessa região, transportando imensos turistas para gozar da paisagem bonita nos miradouros e para a Igreja da Penha (património cultural conservado), será dificultado o auxílio prestado pelas ambulâncias perante o eventual acidente ocorrido no local referido.
5. Como essa região é uma zona de residência e os participantes de reunião usam sempre amplificadores, faixas publicitárias, retratos simbólicos, gritando slogans e ocupando a estrada estreita referida, serão afectadas as instalações dos residentes e do governo nessa zona e prejudicadas a ordem pública e a paz social.
Pelo exposto, é inviável a pretensão do organizador da realização de reunião na zona pública para peões do Jardim da Penha.
III. Decisão
1. Sintetizada a análise referida, vem este Corpo decidir não permitir a realização desta reunião no local referido.
2. Ao abrigo do art.º 12.º da Lei n.º 2/93/M, alterado pela Lei n.º 16/2008, notifique o organizador de que pode interpor recurso contencioso perante o Tribunal de Última Instância dentro de 8 dias”.

3. O recorrente terminou o recurso, com as seguintes conclusões úteis:
É incondicional o acesso ao público do Jardim da Penha.
A escolha livre do lugar de reunião é parte integrante da liberdade de expressão e de reunião.
Sem prejuízo da liberdade alheia, a liberdade de expressão e de reunião dos residentes é garantida pela lei constitucional de Macau.
A Autoridade tem obviamente intenção ou posição prefixa de “não permitir a realização de reuniões e manifestações perto do Jardim e da montanha da Penha”, se calhar porque ficam na aproximação as habitações de oficiais públicos, comerciantes, membros do Conselho Executivo e deputados à Assembleia Legislativa de Macau.
Um grande número de reuniões e desfiles anteriores tiveram como início e terminal lugares onde a população era mais densa, o tráfego era mais intenso, a via era mais estrita e pertos dos serviços do governo, todos correspondentes às características referidas no Anexo A, mas a Autoridade nunca manifestou a sua oposição.
A Autoridade violou vários princípios que os órgãos administrativos devem cumprir, ofendendo a minha liberdade e a liberdade dos residentes que pretendem participar na reunião, garantidas pela lei constitucional de Macau.

II – O Direito
1. As questões a apreciar
Está em causa saber se o despacho recorrido violou a lei ao impedir reunião no Jardim da Penha.

2. Direitos de reunião e manifestação. Poderes do presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais e do comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública
O artigo 27.º da Lei Básica dispõe que os residentes de Macau gozam, além de outros, do direito de reunião, de desfile e de manifestação.
O artigo 1.º da Lei n.º 2/93/M, de 17.5, estatui que todos os residentes de Macau têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, em lugares públicos, abertos ao público ou particulares, sem necessidade de qualquer autorização.
Os artigos 2.º, 3.º, 4.º e 8.º (da mesma Lei n.º 2/93/M, como serão todos os artigos doravante referidos sem indicação da proveniência) estabelecem algumas proibições e permitem a imposição de restrições espaciais e temporais às reuniões e manifestações.
Assim, sem prejuízo do direito à crítica, não são permitidas as reuniões ou manifestações para fins contrários à lei (artigo 2.º).
Como também não é permitida a realização de reuniões ou manifestações com ocupação ilegal de lugares públicos, abertos ao público ou particulares (artigo 3.º).
Por outro lado, não é permitida a realização de reuniões ou manifestações entre as 0,30 e as 7,30 horas, salvo se realizadas em recinto fechado, em salas de espectáculos, em edifícios sem moradores ou, no caso de terem moradores, se forem estes os promotores ou tiverem dado o seu consentimento por escrito (artigo 4.º).
A proibição de reunião ou de manifestação, ao abrigo do artigo 2.º e a imposição de restrições espaciais e temporais às reuniões e manifestações, nos termos dos artigos 3.º e 4.º, competem ao presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, que as comunica ao promotor da reunião ou da manifestação em determinado prazo, previsto nos artigos 6.º e 7.º.
O comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) pode, até 24 horas antes do seu início, alterar os trajectos programados de desfiles ou cortejos ou determinar que os mesmos se façam só por uma das faixas de rodagem, se tal se revelar indispensável ao bom ordenamento do trânsito de pessoas de veículos nas vias públicas (artigo 8.º, n.º 2).
O comandante do CPSP pode, até 24 horas antes do seu início, fundada em razões de segurança pública devidamente justificadas, exigir que as reuniões ou manifestações respeitem uma distância não superior a 30 metros das sedes do Governo e da Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau, dos edifícios afectos directamente ao funcionamento destes, da sede do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, das instalações dos tribunais e das autoridades policiais, dos estabelecimentos prisionais e das sedes de missões com estatuto diplomático ou de representações consulares (artigo 8.º, n.os 3 e 4).
Este TUI lembrou no seu acórdão de 29 de Abril de 2010, no Processo n.º 16/2010, que, de acordo com o artigo 40.º da Lei Básica, os direitos e liberdades de que gozam os residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei e as restrições aos direitos e liberdades não podem contrariar as convenções internacionais aplicáveis em Macau, bem como que também o n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º 2/93/M, determina que o exercício dos direitos de reunião ou manifestação apenas pode ser restringido, limitado ou condicionado nos casos previstos na lei.
Relativamente aos direitos de reunião e manifestação, no sentido de proibir ou impor restrições antes da sua realização, o comandante do CPSP apenas tem competência para exercer os poderes previstos no artigo 8.º, n. os 2 e 3.
Já no decurso de tais actividades, as autoridades policiais têm outros poderes, previstos no artigo 11.º, no sentido da sua interrupção, quando tenha sido regularmente comunicada aos promotores a sua não permissão, quando as mesmas, afastando-se da sua finalidade ou não tendo sido objecto de aviso prévio, infrinjam o disposto no artigo 2.º ou quando as mesmas se afastem da sua finalidade pela prática de actos contrários à lei que perturbem grave e efectivamente a segurança pública ou o livre exercício dos direitos das pessoas.

3. Reserva de zonas de protecção. Artigo 8.º, n. os 3 e 4.
No caso dos autos não tem aplicação o estatuído no n.º 2 do mencionado artigo 8.º, pois este se refere a alteração de trajectos de desfiles ou cortejos e no nosso caso só está em causa uma reunião, num lugar aberto ao público, e não qualquer manifestação, desfile ou cortejo.
Resta o n.º 3, conjugado com o n.º 4, ambos do artigo 8.º.
No caso dos autos o limite sul do Jardim da Penha dista 8,3 m do muro exterior do Palacete de Santa Sancha, local destinado a recepção de convidados do Governo e o limite leste do mesmo Jardim dista 12 m do exterior da residência de um Secretário.
A primeira questão que importa apurar é se as mencionadas residências beneficiam do regime de protecção previsto no artigo 8.º, n. os 3 e 4.
Tal regime directamente previsto na lei radica em razões de segurança pública, por haver o risco de as reuniões ou manifestações poderem degenerar em actos menos ordeiros que possam afectar as instalações aí mencionadas e os seus ocupantes e impedir o exercício das respectivas funções, essenciais ao normal funcionamento da Região.
Em relação às meras residências particulares dos titulares do Governo ou dos demais titulares dos órgãos previstos no artigo 8.º, n.º 3, esta norma é omissa, não havendo quaisquer elementos que permitam defender que a lei também as quis abranger.
Já quanto ao Palacete de Santa Sancha, local destinado a recepção de convidados do Governo, as coisas são diferentes. Não por aí residir o Chefe do Executivo, já que desde o Estabelecimento da RAEM aquela casa deixou de ter essa função. Mas é do conhecimento geral que tal complexo é utilizado pelo Chefe do Executivo para receber individualidades e dignitários locais e do exterior, pelo que, no fundo, exerce, em parte, uma função semelhante à Sede do Governo. Valem, assim, relativamente a tal Palacete as razões de segurança que são fundamento da reserva de zonas de protecção. Entende-se, por conseguinte, que tal Palacete está incluído nas instalações previstas no artigo 8.º, n.º 3.
Contudo, o Palacete de Santa Sancha está rodeado por um muro de cerca de 2 m de altura, sendo este que dista 8,3 m do limite sul do Jardim da Penha.
Como se retira da planta junta pela entidade recorrida, a maior parte da área do Jardim da Penha dista mais de 30 m do muro exterior do Palacete de Santa Sancha.
No seu Acórdão de 12 de Janeiro de 2011, no Processo n.º 2/2011, o TUI considerou que o acto de restrição ou proibição de reunião ou manifestação do comandante do CPSP, previsto no artigo 8.º da Lei n.º 2/93/M, é proferido no uso de poderes discricionários, mas tem de justificar devidamente as razões de segurança pública ou ordem pública em que se fundamenta. Não basta dizer que, por razões de segurança, não se admite reunião ou manifestação a menos de 30 m das instalações previstas no n.º 3 do artigo 8.º.
No caso dos autos, o Palacete está instalado num amplo logradouro e este ainda é protegido do exterior por um muro que impede o contacto visual com o interior.
Entende-se, assim, que a invocação do disposto no artigo 8.º, n.º 3, sem alegação concreta de factos tendentes a demonstrar que a segurança dos utilizadores daquele Palacete estaria comprometida com a realização da reunião projectada, é desajustada.
Quanto à alegação da passagem de muitos autocarros turísticos para a Igreja da Penha, entende-se que a mesma não procede já que não está previsto qualquer desfile ou cortejo por via pública, mas apenas uma reunião num local onde não transitam veículos. De resto, o ora recorrente provou que o Comandante do CPSP não se opôs a manifestação a realizar na Estrada do Istmo (a chamada Cotai Strip), onde a afluência de turistas e veículos é muito superior.
No que respeita à alegação de que os participantes farão ruído no local, afectando os residentes, cabe recordar que o TUI, no Acórdão de 12 de Janeiro de 2011, atrás mencionado, disse o seguinte:
“Como se sabe, quem percorra, visite, frequente ou por qualquer maneira utilize espaços públicos deve abster-se de produzir ruídos susceptíveis de desnecessariamente perturbar a tranquilidade e repouso das outras pessoas [artigo 2.º, n.º 2, alínea 2) Regulamento Geral dos Espaços Públicos, aprovado pelo Regulamento Administrativo n.º 28/2004].
Uma coisa é a produção normal de ruído de uma manifestação em cortejo, com invocação de palavras de ordem de repúdio, apoio, júbilo ou reprovação, que afecta a qualidade de vida da população, designadamente a tranquilidade pública, mas que se tem de tolerar porque está em causa um direito fundamental (de manifestação), sendo que a compressão dos direitos de terceiros é relativamente limitada (já assim não seria, por exemplo, nas proximidades de um hospital).
Mas outra coisa, manifestamente diversa, é a produção de ruído permanente, num mesmo local do centro da cidade, densamente povoado, com aparelhos de som, desde as 11 horas até às 23horas, e com montagem de um gerador de electricidade, como pretendiam os manifestantes.
Isso seria manifestamente desproporcionado face aos direitos de terceiros à tranquilidade, ao repouso e ao sossego, embora o despacho recorrido tenha passado ao lado destas questões, no seu laconismo.
Bem se compreende, pois, a restrição à não produção de ruído”.
No caso dos autos a reunião está prevista para ter lugar entre as 17h e as 19h30m, não havendo indícios que o ruído a produzir seja incompatível com direitos de terceiros.
No entanto, cabe ponderar que o exercício de cargos públicos, designadamente de carácter político, além de vantagens próprias do mesmo exercício, tem custos. Ubi commoda, ibi incommoda. Os titulares de tais cargos, quando aceitam ser providos neles, têm consciência, ou têm de ter, desta realidade.
Claro que pode sempre ser questionado o bom gosto ou até a ética de se promover uma reunião pública de carácter político para “apelo à responsabilização política dos titulares dos principais cargos” numa zona puramente residencial, onde apenas moram titulares dos principais cargos e suas famílias, num dia de descanso dos servidores públicos (sábado); sabendo-se, por outro lado, que esta reunião, se segue a uma manifestação - com vista à demissão de um dos titulares de cargo público, que mora nas redondezas do local dos autos - que teve lugar no passado dia 30 de Junho (domingo, igualmente dia de descanso), onde o mesmo promotor, o ora recorrente, pretendia percorrer o mesmo espaço (Jardim da Penha) e áreas adjacentes, em cujo propósito foi impedido pelo Comandante do CPSP, nos termos legais.
Mas enquanto o Tribunal não tiver indícios seguros de que, mais do que o normal exercício do direito de reunião e/ou de manifestação, se pretende utilizar estas realizações para outros fins que não os próprios de tais iniciativas, designadamente, por exemplo, para impedir o descanso de titulares dos principais cargos e respectivas famílias, para perturbar a sua vida privada ou o seu sossego – caso em que haveria abuso do direito (artigo 326.º do Código Civil) – não tem fundamentos legais para impedir a realização da reunião.
Em resumo, concede-se provimento ao recurso, anula-se o acto recorrido, de forma a autorizar a realização de reunião no dia 13 de Julho de 2013, entre as 17h e as 19h30m, no Jardim da Penha, devendo o promotor e os participantes terem em atenção a natureza do acto, isto é, que se trata de uma reunião num lugar determinado e não manifestação, nem desfile, nem cortejo, não podendo perturbar o funcionamento do local destinado a recepção de convidados do Governo, nem o trânsito de pessoas e veículos nas vias públicas.

III – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, anulam o acto recorrido permitindo a realização da reunião, a realizar no dia 13 de Julho de 2013, entre as 17h e as 19h30m, no espaço público para peões no Jardim da Penha.
Sem custas.
Macau, 12 de Julho de 2013.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai




1
Processo n.º 44/2013