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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
A, casada no regime de comunhão geral de bens com B, requereu inventário facultativo por óbito de C, pai do seu cônjuge.
No decurso do inventário, tanto o cônjuge do falecido (a cabeça de casal D), como os três filhos do autor da herança, incluindo B, o cônjuge da requerente - os únicos herdeiros - disseram não querer a continuação do inventário, pretendendo antes permanecer na indivisão da herança.
A Ex.ma Juíza julgou, então, extinta a instância por falta de legitimidade da requerente.
Recorreu A para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) com fundamento em nulidade processual (e não nulidade da decisão recorrida, como alegou), por não ter tido oportunidade de se pronunciar quanto à questão da sua legitimidade processual antes da decisão e recorreu também quanto ao mérito do mencionado despacho.
O TSI julgou procedente o recurso da requerente A quanto à nulidade processual, por violação do contraditório e procedente igualmente no tocante à legitimidade da requerente, decidindo que esta tem legitimidade para requerer o inventário.
Recorre agora a cabeça de casal, D, para este Tribunal de Última Instância (TUI), alegando que:
- O cônjuge de um herdeiro, mesmo casado no regime de comunhão geral de bens, não é interessado directo na partilha do autor da sucessão, pelo que não tem legitimidade processual para requerer o inventário por morte do sogro;
- Não era cabido o contraditório na 1.ª instância, antes da decisão sobre a questão em apreço, pois que a solução do caso era vinculada, pelo que não tinha aplicação o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil

II – O Direito
1. As questões a resolver
As questões a decidir são as duas atrás identificadas na alegação da ora recorrente.
Começar-se-á pela primeira questão, cronologicamente posterior à segunda. Adiante se perceberá a razão.
2. Legitimidade processual do cônjuge de um herdeiro para requerer o inventário por morte do sogro
Trata-se de saber se o cônjuge de um herdeiro, casado no regime de comunhão geral de bens, é interessado directo na partilha do autor da sucessão, e, portanto, se tem legitimidade processual para requerer o inventário por morte do sogro.
É o artigo 964.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que estatui sobre a legitimidade para requerer o inventário, dizendo que ele “pode ser requerido por qualquer interessado directo na partilha”.
Tem-se discutido quem são tais interessados directos, para além dos herdeiros.
Vejamos se tem tal interesse directo o cônjuge de um herdeiro, casado no regime de comunhão geral de bens.
No regime de comunhão geral de bens todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados, constituem património comum de ambos (artigo 1609.º do Código Civil). Tais bens exceptuados constam do artigo 1610.º.
Neste regime, os bens que pertenciam a cada um dos cônjuges antes do casamento e os bens que venham a receber a título gratuito após o casamento, designadamente por via sucessória, bem como a título oneroso, integram o património comum.
Os bens comuns dos cônjuges, quanto à contitularidade dos sujeitos, constituem uma forma de propriedade colectiva e no que respeita ao regime de responsabilidade por dívidas, um património autónomo, sujeito a regime especial.
Cada um dos cônjuges é titular de metade do activo e do passivo da comunhão (artigos 1607.º e 1611.º do Código Civil).
Pois bem, no regime de comunhão geral, como se disse, os bens recebidos pelos cônjuges por via sucessória, no decurso do casamento, integram o património comum.
Por isso, é praticamente pacífico, actualmente, na doutrina e na jurisprudência que deve ser dada resposta positiva à questão sobre que nos debruçamos.
JOÃO ANTÓNIO LOPES CARDOSO e AUGUSTO LOPES CARDOSO, na mais conhecida obra sobre inventários e partilhas, defendem que o cônjuge do herdeiro tem, irrecusavelmente a qualidade de pessoa com interesse directo na partilha1.
Também ANTUNES VARELA2, a propósito de um caso judicial em que a nora, já divorciada, mas antes casada no regime de comunhão geral com herdeiro da falecida, veio requerer o inventário por óbito da sogra, defende que “(P)ode, à primeira vista, causar alguma estranheza o facto de, tendo a falecida deixado marido e filho sobrevivos, haja sido a nora, para mais já divorciada na altura, quem veio impetrar em juízo a abertura do novo processo de inventário (da sogra).
Mas a verdade é que, bem vistas as coisas, a intervenção tem a sua base legal e a sua justificação natural.

Ora, entre os interessados directos na partilha, com a amplitude que a expressão reveste na legislação processual vigente, cabe inquestionavelmente o cônjuge do herdeiro, desde que casados em regime de comunhão geral. Nesse caso, chamado a quinhoar nos bens da herança do inventariado em pé de relativa igualdade com o herdeiro (art. 1732.º do Cód Civil3), é evidente que o cônjuge tem a qualidade de interessado directo na partilha, a que se refere o n.º 2 do artigo 1326.º do Código de Processo Civil.4
Por isso, sem nenhuma hesitação, ao abordar o problema da legitimidade para requerer o inventário, analisando a nova fórmula do artigo 1326.º, n.º 2, do Código de Processo vigente («pessoas directamente interessadas na partilha»), Gama Prazeres 5afirma que o inventário pode «também ser requerido pelo marido duma herdeira6, desde que estejam casados segundo o regime da comunhão geral de bens»”.
Do mesmo modo, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA7, sustenta categoricamente que “é ponto hoje assente que, directamente por força do vínculo conjugal, exclusivamente no âmbito do Direito da Família e em matéria de regime matrimonial de bens, apenas o cônjuge casado no regime de comunhão geral de bens é parte legítima, nessa qualidade, para requerer ou intervir em inventário judicial por morte de autor da herança, do qual o outro cônjuge seja herdeiro, quer este se encontre vivo ou tenha falecido após a morte daquele autor.
É que tal quota hereditária é comunicável nos termos do artigo 1732.º CC, ao contrário do que acontece no regime de comunhão de adquiridos, em que idêntica quota hereditária não é comunicável [artigo 1722.º, n.º 1, al. b), CC], e no regime de separação de bens, em que não há bens comunicáveis (artigo 1735.º CC).
Aliás, o artigo 1329.º do CPC na redacção inicial de 1961 (que se manteve em vigor após a vigência da redacção inicial do CC de 1966) previa a citação para inventário das , sem discriminar o regime matrimonial de bens8. Porém, o actual artigo 1341.º, n.º1, CPC, numa redacção que já vem do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 224/94, de 8 de Setembro, apenas mandar citar , onde deve ser incluído imediatamente, por força do vínculo familiar matrimonial, o cônjuge do herdeiro casado no regime de comunhão geral de bens. O que obteve a uniformidade da Jurisprudência e da Doutrina”.
No mesmo sentido, também se vem pronunciando ABÍLIO NETO9.
São de subscrever inteiramente os comentários citados, pelo que se confirma a decisão recorrida no sentido de reconhecer legitimidade processual a A, cônjuge do herdeiro, para requerer inventário por morte do pai deste.

3. Violação do contraditório. Questão prejudicada
Por fim, a questão da violação do contraditório.
Ora, esta questão estava prejudicada, desde que se decidisse, como se decidiu no Acórdão recorrido, e agora se mantém, que a então recorrente tinha legitimidade processual para requerer o inventário. Impondo-se esta decisão ao Tribunal de 1.ª Instância, não poderia haver provimento da anulação processual, porque esta implicaria, após cumprimento do contraditório, uma pronúncia do Juiz do processo, que deixou de ter sentido face à decisão do recurso quanto à legitimidade.

III – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso quanto à questão da legitimidade processual da requerente do inventário, devendo o Ex.mo Juiz de 1.ª Instância proferir despacho a reconhecer tal legitimidade e a prosseguir o inventário, se outro motivo a tal não obstar.
Custas pela recorrente.
Macau, 14 de Junho de 2013.
Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


     1 JOÃO ANTÓNIO LOPES CARDOSO e AUGUSTO LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais Coimbra, Almedina, 5.ª edição, 2006, Volume I, p. 208, 410 e 411, defendendo na mencionada edição, Volume II, p. 465,que até podem licitar amplamente, questão de que, agora, não nos ocupamos.
     2 ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122.º, p. 186 e 202.
    3 Refere-se ao Código Civil de 1966
    4 Refere-se ao Código de Processo Civil de 1967.
    5 Gama Prazeres, Manual do processo de inventário obrigatório (ou orfanológico) e facultativo (ou da maiores). Braga. 1965, págs. 47-48.
    6 Ou pela mulher do herdeiro, como hoje resulta, sem sombra de dúvida, do princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e da regra da igual legitimidade de marido e mulher para a prática dos actos de administração ordinária dos bens comuns do casal (arts. 1671.º, n.º 1, e 1678.º, n.º3, do Cód. Civil). Vide, a propósito destas novas regras, Antunes Varela, Direito da família, Lisboa, 1987, n.os 72 e segs., págs. 358 e segs.
     7 RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, A posição sucessória do cônjuge sobrevivo, casado no regime de comunhão de adquiridos ou de separação de bens, na herança indivisa dos sogros em caso de pós-morte do correlativo filho destes, Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos, Lisboa, 2007, p.1186 e 1187.
     8 Sobre posições jurisprudenciais e doutrinais adversas, quer antes do CPC de 1939, quer depois deste, quer ainda depois do CPC de 1961, cfr. Lopes Cardoso e outro, ob. cit., I, págs. 102 e segs.
     9 ABÍLIO NETO, Código de Processo Civil Anotado, Lisboa, Ediforum, 21.ª edição, 2009, p. 1444.
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1
Processo n.º 31/2013