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  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 22 de Outubro de 2010, A e B, arguidos nos presentes autos, foram ambos condenados, pela prática de 4 crimes de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 3 do Código Penal de Macau, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão por cada e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão.
Inconformado com a decisão, recorreu o arguido A para o Tribunal de Segunda Instância, que negou provimento ao recurso, ficando o recorrente condenado pela prática de 1 (só) crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 4 do Código Penal de Macau, na (mesma) pena de 3 anos e 3 meses de prisão.
Vem agora o arguido A recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. Foi o arguido recorrente condenado em lª Instância pela prática de 4 (quatro) crimes de burla, p. e p. pelo art.º 211º nº 3 do C.P. – cada um dos crimes punido com a pena de 1 ano e 6 meses – na pena única, nos termos regulados no art.º 71º do C.P., de 3 anos e 3 meses de prisão.
2. Inconformado com esta decisão, interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância, porquanto entendeu que a decisão, então em apreço, seguiu as regras da punição do concurso de crimes, previstas no art.º 71º do C.P., quando, de facto, pela matéria assente, se está na presença de um só crime continuado, nos termos do art.º 29º nº 2, cuja punição é a prevista no art.º 73º, ambos do C.P..
3. O Tribunal de Segunda Instância, negou provimento ao recurso, entendendo que “ ... o que existiu foi uma única resolução assumida por ambos os arguidos de enganar (“burlar”) todos os que se apresentassem como interessados nos seus “serviços” e, assim, adequada não parece a qualificação da conduta provada como a prática de 1 “crime continuado”, como pretendido é pelo ora recorrente, o mesmo sucedendo com o “concurso real de crimes”, como decidido foi”.
4. Delimita-se, assim o presente recurso na seguinte questão: a matéria de facto assente quanto ao arguido recorrente é ou não subsumível à do crime continuado prevista no art.º 29º nº 2 do C.P.?
Afigura-se ao recorrente que a resposta a esta questão deverá, salvo o devido respeito, ser afirmativa.
5. Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto que resultou provada em 1ª Instância e que o acórdão do Tribunal de Segunda Instância reproduziu, traduzindo, a fls. 6 a 9.
6. O comportamento dos arguidos processou-se entre os meses de Agosto e Setembro de 2004, numa data indefinida, e o dia 2 de Novembro desse mesmo ano.
7. Houve uma conversa inicial entre a arguida B e a 1ª ofendida, C – o desígnio criminoso inicial – posteriormente alargado, de uma forma contínua e num curto período de tempo muito limitado, aos demais ofendidos, aos quais os arguidos prometeram “obter para eles o visto de trabalho para Itália”, depois do 1º arguido, o recorrente, ter ganho a confiança das vítimas e não de uma só vítima.
8. Não interessará, salvo o devido respeito, que todas as conversas dos arguidos com as vítimas se tenham processado só através da C. Importará também que, após o contacto inicial com esta, os arguidos, tenham alargado a sua resolução criminosa inicial às demais, nas pessoas dos restantes 3 ofendidos.
Existiu claramente uma homogeneidade e dependência entre as diversas resoluções criminosas.
9. Da primeira resolução criminosa – aquela em que os arguidos informaram a C que poderiam obter vistos de trabalho para Itália, mediante um pagamento de CNY¥137,000.00 – passou-se aos demais ofendidos, estendendo-se-lhes condutas criminosas sucessivas, no âmbito de uma mesma situação externa, ocorrida numa proximidade temporal.
10. E tal conclusão resulta, manifestamente, do facto dos arguidos terem ganho “a confiança das vítimas”, cada uma “per se”, depois de lhes terem prometido – não interessará, sempre através da 1ª ofendida – a obtenção de “visto de trabalho” individual.
11. E é essa a razão pela qual, não obstante o pagamento do montante de CNY¥445,000.00 ter sido feita mediante dois depósitos numa só conta bancária, cada um dos ofendidos ter pago individualmente a “contraprestação dos vistos” a que se havia vinculado.
12. Houve uma repetição de oportunidades favorável à prática do mesmo crime, o que diminui consideravelmente a culpa dos arguidos.
Estamos, assim, reitera-se, perante uma situação de crime continuado.
O instituto do crime continuado conduz a que várias condutas criminais, que deveriam constituir uma pluralidade de infracções, sejam unificadas num único crime, para efeitos punitivos, por força da diminuição da culpa do agente.
13. Do ponto de vista objectivo, a realização continuada deve violar de forma plúrima o mesmo tipo de crime ou vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico e, por outro lado, a acção deve ser executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior (no caso, a “solicitação” da 1ª ofendida).
14. É, pois, patente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou e impeliu a alegada repetição da actividade dos arguidos, tornando cada vez menos exigível aos mesmos que se comportassem de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
15. É, desse modo, inegável uma diminuição da culpa dos arguidos, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída, pelo que a sua conduta, não pode deixar de ser subsumida à figura do crime continuado.
16. A pena, então, deverá ser aquela que se reporta à conduta mais grave que integra a continuação, no caso, apenas o crime de burla, pelo que, tendo em conta a medida da pena para este crime – que a 1ª Instância fixou em 1 ano e 6 meses de prisão – deverá ser esta a pena aplicável ao crime continuado cometido por ambos os arguidos.

Respondeu o Ministério público, terminando a sua resposta com as seguintes conclusões:
1. O artigo 29.º, n.º 2 do CP prevê expressamente os três requisitos do “crime continuado”, os quais são confirmados na jurisprudência: A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico; Execução por forma essencialmente homogénea; Verificação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
2. Nesta causa, o recorrente A praticou burlas.
3. Os factos de burla foram realizados por forma essencialmente homogénea.
4. Segundo o recorrido Tribunal Colectivo do TSI, deve-se considerar como uma totalidade os delitos praticados pelo recorrente A por só existir uma única resolução criminosa. Assim sendo, a aplicação da lei basear-se-ia apenas no valor dos bens jurídicos patrimoniais prejudicados pelos delitos. Pelo que o Tribunal decidiu condenar o recorrente A pela prática de um único crime de burla qualificada p.p. pelo artigo 211, n.º 4 do CP.
5. Na verdade, esta perspectiva do acórdão recorrido negou fundamentalmente a questão de crime continuado deduzida pelo recorrente, até não é necessária a discussão do concurso de crimes e crime continuado previsto no artigo 29 do CP.
6. Na outra perspectiva, o requisito “a realização plúrima do mesmo tipo de crime” previsto no artigo 29, n.º 2 do CP será preenchido apenas quando se entenda, tal como o que sustentamos, que haviam várias resoluções criminosas, designadamente porque o recorrente A propriamente tinha contacto com dois dos ofendidos e prejudicou 4 bens jurídicos patrimoniais cujos valores individuais não excedem ao limite máximo do valor elevado legalmente fixado.
7. Quanto à questão de se existir nesta causa “uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, tal como entendem a jurisprudência e a doutrina citadas nesta causa pelos órgãos judiciais, a ideia mais fundamental do regime do crime continuado é que a prática do facto foi determinada por uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
8. Não se encontra nesta causa qualquer circunstância que possa formar uma pressão exterior que determine o recorrente A à prática dos factos ilícitos.
9. Tal como referiu o TUI no processo n.º 78/2012 de 16 de Janeiro de 2013: “…a serem particularmente rigorosos e exigentes na aferição dos pressupostos, objectivos mas sobretudo subjectivos, de que depende a existência jurídica da relação de continuação”
10. Tanto o TSI, que entende que o recorrente A praticou o crime de burla qualificada por só existir uma única resolução criminosa, como o MP, que entende que o recorrente realizou plurimamente o mesmo tipo de crime, entendem que não existe qualquer factor exterior que lhe solicitou a realização plúrima de crimes, e que não se pode concluir uma censurabilidade diminuída da sua conduta resultante de dolo consideravelmente diminuído por existência continuada duma situação objectiva. Assim sendo, é impossível condenar o recorrente pela prática de crime continuado.
11. Concordamos com a decisão do TJB de condenar o recorrente A, pela prática de 4 crimes de burla previstos e punidos pelo artigo 211, n.º 3 do Código Penal, na pena, por cada um, de 1 ano e 6 meses de prisão, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão. Mais entendemos que o TJB não violou o disposto nos artigos 40 e 65 do CP quanto à medida da pena.
12. Apesar de o acórdão do TSI ter condenado o recorrente pela prática de 1 crime de burla qualificada p.p. pelo artigo 211, n.º 4 do CP, é correcta a sua decisão de julgar improcedente o recurso interposto por A e de manter, em consideração do princípio de proibição da reformatio de pejus previsto no artigo 399 do Código de Processo Penal, a pena de 3 anos e 3 meses de prisão aplicada pelo TJB.
13. O recorrente A é residente de Macau e praticou dolosamente tais factos ilícitos de forma livre, voluntária e consciente, com meios que revelam a relativamente elevada intensidade do dolo, prejudicando bens jurídicos, de carácter patrimonial, de valor elevado. É elevada a gravidade da natureza e da ilicitude dos factos. O recorrente fugiu, esteve ausente da audiência e não mostrou arrependimento pela prática dos factos.
14. Tendo em conta o grau de culpa do recorrente A, os meios utilizados na prática dos crimes, a natureza destes e o seu grau de gravidade, a moldura penal aplicável e as circunstâncias concretas do caso, bem como as necessidades de prevenção criminal (especial e geral), entendemos que o acórdão recorrido não enferma de irregularidades e que é impossível a comutação da pena.

Nesta instância, a Digna Procuradora-Adjunta do Ministério Público mantém a posição já assumida na resposta à motivação do recurso, pugnando pela improcedência do recurso.
Foram corridos vistos.

2. Os Factos
Nos autos foram considerados os seguintes factos:
- Em Fevereiro de 2003, A, 1º arguido, residente de Macau, conheceu B, 2ª arguida, trabalhadora não-residente.
- Depois disso, os arguidos estabeleceram uma relação de namoro e coabitavam na fracção autónoma arrendada pela 2ª arguida, sita na [Endereço].
- Entre Agosto e Setembro de 2004, a 2ª arguida, na província de Fujian, China, alegou a C, 1ª ofendida, residente do Interior da China, que ela tinha um namorado em Macau que se chamava A (i. e., o 1º arguido), e que este era capaz de obter para os residentes do Interior o visto de trabalho para a Itália, sendo necessário pagar CNY$137.000,00 cada um que pedia.
- Mostrando-se interessada, C, em conjunto com o seu marido D, 2º ofendido, e as suas conterrâneas E, 3ª ofendida, e F, 4ª ofendida, decidiu encarregar os arguidos de tratarem do referido visto.
- Por esse motivo, a 1ª ofendida ligou várias vezes ao 1º arguido para discutir os pormenores.
- A fim de ganhar a confiança das vítimas, o 1º arguido declarou nas conversas telefónicas ser patrão de uma fábrica de vestuário de Macau e prometeu obter para eles o visto de trabalho para a Itália no prazo de três meses e ajudá-los a entrarem em Macau para, depois, irem de avião para a Itália via Hong Kong.
- Através da 1ª ofendida, os quatro ofendidos transferiram, em duas vezes separadas, um montante total de CNY$445.000,00 (a 1ª ofendida e o 2º ofendido pagaram CNY$171.000,00, a 3ª ofendida pagou CNY$137.000,00 e a 4ª ofendida pagou CNY$137.000,00) duma conta no Banco em Fujian para a conta indicada pela 2ª arguida - conta bancária n.º XXXXXXXXXXXXXXXXXXX no Banco em Zhuhai: a primeira transferência bancária realizou-se no dia 1 de Novembro de 2004, sendo de CNY$145.000,00 o valor transferido; a segunda transferência bancária realizou-se no dia 1 de Novembro de 2004, sendo de CNYY 300.000,00 o valor transferido.
- Após feita a primeira transferência, o 2º ofendido veio a Macau entregar ao lº arguido as fotos (três fotos de cada pessoa) e impressões digitais de todos os quatro ofendidos para efeitos de tratamento do visto.
- E depois de realizada a segunda transferência, em 2 de Novembro de 2004, a 1ª ofendida veio a Macau ter encontro com os arguidos. Nessa altura, o 1º arguido confirmou ter recebido o dito montante de CNY$445.000,00 e assinou um recibo.
- Na verdade, os arguidos não eram capazes, de modo algum, de obter para outrem o visto de trabalho para a Itália. Não obstante, de forma livre, voluntária e consciente, os arguidos inventaram, intencionalmente, que tinham capacidade de o fazer, tendo convencido, com sucesso, os quatro ofendidos a entregarem-lhes verbas de elevado valor, com a intenção de se apropriar das verbas.
- Os arguidos agiram de comum vontade e em conjugação de esforços e distribuição de tarefas ao concretizarem o aludido plano, sabendo perfeitamente que tal plano ia causar aos ofendidos graves danos patrimoniais.
- Os arguidos sabiam bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
- Segundo os respectivos Certificados de Registo Criminal, os arguidos são delinquentes primários.

3. O direito
Insurgindo-se contra o douto Acórdão recorrido que o condenou pela prática de um crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 4 do Código Penal de Macau, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, pretende o recorrente a sua condenação pelo crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 3 do mesmo diploma, na forma continuada.
O recorrente restringe o seu recurso na seguinte questão: a matéria de facto assente é ou não subsumível à do crime continuado prevista no art.º 29.º n.º 2 do Código Penal de Macau?
Trata-se de saber se os factos praticados pelo recorrente integram um só crime de burla, por haver uma só resolução criminosa, tal como entendeu o Tribunal recorrido, ou um crime continuado de burla como defende o recorrente.

É consabido que, nos termos do art.º 73.º do Código Penal de Macau, “o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação”.
E estabelece o art.º 29.º do Código Penal de Macau o seguinte:
“Artigo 29.º
(Concurso de crimes e crime continuado)
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Conforme o entendimento, uniforme, jurisprudencial e doutrinal, são pressupostos do crime continuado:
- Realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
- Homogeneidade da forma de execução;
- Conexão temporal; e
- Persistência de uma mesma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Entende-se que é necessária a presença cumulativa de todos os requisitos e a não verificação de qualquer um impõe o afastamento da continuação criminosa.
E o fundamento do crime continuado radica na considerável diminuição da culpa do agente, determinada por uma actuação no quadro de uma mesma solicitação exterior.
No Acórdão proferido em 16 de Janeiro de 2013, Proc. n.º 78/2012, este Tribunal de Última Instância considera que o pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
E mais ainda, “os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.

No caso dos autos, a factualidade assente revela que o recorrente, conjuntamente com a 2ª arguida, conseguiu convencer os 4 ofendidos de que tinha capacidades de tratar, para residentes do Interior da China, do visto de trabalho para a Itália, mediante o pagamento de determinadas quantias.
O Tribunal de Segunda Instância entendeu que, embora haja uma pluralidade de lesados, nada vem provado quanto a uma pluralidade de resoluções criminosas, consequência de uma mesma situação exterior, pelo que negou provimento ao recurso interposto, fazendo oficiosamente a convolação jurídica para um crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 4 do Código Penal de Macau.
Ora, se tiver havido um só desígnio criminoso, o crime há-de ser necessariamente único, afastando assim a hipótese de pluralidade de infracções ou de continuação criminosa que pressupõe a realização prúlima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.

Segundo Maia Gonçalves, em anotação ao art.º 30.º do Código Penal Português, idêntico ao art.º 29.º do Código Penal de Macau, também citada pelo Acórdão ora recorrido, é perfilhado “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime”.
“É claro que, embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma culposa ou dolosa”.1
Daí que, na distinção entre unidade ou pluralidade de infracções, o juízo de censura assume sempre uma relevância determinante.

E no ensinamento de Eduardo Correia, “para que uma conduta se possa considerar como constituindo uma infracção não basta, como sabemos, que seja antijurídica; é ainda necessário que seja culposa, que possa ser reprovada ao agente. Ora pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção: a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.
Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura?
Seguro é que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções – de resolução no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso -, o juízo de censura será plúrimo. Restará ainda, porém, saber em que condições se poderá afirmar uma tal pluralidade de processos resolutivos.”
Para o mesmo autor, o critério a seguir deve ser “o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra, e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou todas a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação”.2
“Na verdade, posto que uma actividade possa desenvolver-se em momentos sucessivos sem que por isso tenha de supor-se uma pluralidade de resoluções, certo é todavia que a distância temporal que os pode separar não é ilimitada. É preciso não perder de vista que a pluralidade de actos só não importa a pluralidade de determinações na medida em que cada um deles se analisar num puro explodir mais ou menos automático da carga volitiva correspondente ao projecto querido, não presidindo a essa descarga, ou não presidindo necessariamente, aquela actividade de avaliação de motivos que referimos. Ora, a experiência e as leis da psicologia ensinam-nos que, em regra, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta então que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades do agente, uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.”3

Postas as considerações doutrinais, voltamos ao nosso caso concreto.
Afigura-se-nos que não consta da matéria de facto provada elementos suficientes que demonstrem a renovação, por parte dos arguido, de resolução criminosa, não obstante se terem conseguido enganar 4 pessoas.
De facto, a factualidade provada revela que, convencida na alegação dos arguidos de terem capacidade de obter para os residentes do Interior da China o visto de trabalho para a Itália, a 1ª ofendida, em conjunto com o seu marido (2º ofendido) e mais duas conterrâneas (3º e 4º ofendidas), decidiu encarregar os arguido de tratarem do referido visto, tendo contacto telefónico com o ora recorrente para discutir os pormenores.
E a transferência das quantias exigidas pelos arguidos foi feita, em duas vezes separadas e através da 1ª ofendida, duma conta bancária da China para a conta bancária indicada pela 2ª arguida.
Com excepção do 2º ofendido, que teve um único contacto com o recorrente, ocorrido entre as duas transferência bancárias das quantias e com vista à entrega das fotos e impressões digitais de todos os ofendidos, foi sempre a 1ª ofendida que contactou com os arguidos, tendo ligado várias vezes ao recorrente e tratado das transferências de dinheiro bem como dos outros pormenores.
Não resulta da matéria provada que, antes de tomar decisão de encarregar os arguidos de tratarem do assunto, houve contacto directo entre os arguidos e os outros ofendidos, o que se torna muito difícil falar na renovação das resoluções criminosas, pois não houve sequer necessidade de renovar o respectivo processo de motivação.
E verifica-se uma conexão temporal entre todas as actividades praticadas pelos arguidos, sendo que todas visaram a mesma finalidade criminosa.

Observada apenas uma única resolução criminosa por parte dos arguidos, há que concluir pela unidade de infracções, não havendo lugar à continuação criminosa pretendida pelo recorrente, que pressupõe a pluralidade de infracções e a persistência de uma mesma situação exterior que facilita a execução dos crimes e que diminui consideravelmente a culpa do agente, que não se verificam no caso dos autos.
E há de somar todas as quantias “burladas” para se poder encontrar a qualificação jurídica correcta.
Tendo em conta o valor total das quantias, que perfaz CNY$445.000,00, correspondente ao “valor consideravelmente elevado” previsto no art.º 196.º, al. b) do Código Penal de Macau, é de confirmar a decisão do Tribunal recorrido de condenar o recorrente pelo crime de burla p.p. pelo art.º 211.º n.º 4, al. a) do mesmo diploma.

É de concluir pela manifesta improcedência da pretensão do recorrente.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em rejeitar o recurso por ser manifestamente improcedente.
Nos termos do art.º 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal de Macau, é o recorrente condenado a pagar 4 UC.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 4 UC.

Macau, 31 de Julho de 2013

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 16ª edição, p. 145.
2 Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. II, Reimpressão, p. 201 a 202.
3 Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 2ª Reimpressão, p. 96 a 97.
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Processo n.º 25/2013