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Reclamação nº 9/2012

B, Defensor Oficioso dos arguidos nos autos do processo nº CR1-02-0069-PCC do 1º Juízo Criminal do TJB, no âmbito desses autos interpôs recurso da decisão que lhe indeferiu o pedido da tradução para a língua portuguesa do conteúdo das fls. 4747, 4748 e 4757 e v. daqueles autos.

Por douto despacho constante das fls. 4764 dos mesmos autos, a Mmª Juiz não admitiu o recurso com fundamento de que qualquer das línguas, chinesa ou portuguesa, é língua oficial.

E porque o recurso não lhe tivesse sido admitido, veio formular a presente reclamação nos seguintes termos:

B, advogado oficiosamente nomeado aos arguidos C e D nos autos à margem cotados, notificado do despacho de não admissão do recurso proferido pelo Exmº. Magistrado Judicial a fls. 4792 dos mesmos, dele vem, nos termos do artº 395°, nºs 1, 2 e 3 do Código do Processo Penal, deduzir
RECLAMAÇÃO
o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos.
Entendeu o Senhor Magistrado Judicial, de que cujo despacho ora se reclama, rejeitar a admissão do recurso interposto da decisão constante de fls. 4764, com fundamento no disposto no art°. 390°, nº 1, alínea b), do C.P.P.; isto é, considerou que "não é admissível recurso duma decisão que ordenou acto dependente da livre resolução do tribunal".
Com o respeito devido pela opinião expressa no despacho de que ora se reclama, afigura-se que o recurso oportunamente interposto não versa sobre decisão que ordene actos dependentes da livre resolução dos tribunais.
E para se alcançar esta conclusão - a de que o despacho de fls. 4764 dos autos não é acto dependente da livre resolução dos tribunaisbastará, tão só, formular a questão seguinte, e para ela encontrar a adequada resposta: O DESPACHO DE fls. 4764 FEZ USO DE PODERES DISCRICIONÁRIOS?
Se o Senhor Magistrado Judicial usou de poderes discricionários, então o acto é irrecorrível; caso contrário, a decisão é recorrível.
Mas vejamos em mais detalhe.
O uso de poderes discricionários implica -SEMPRE- a escolha (pelo decisor) de uma, entre pelo menos duas (ou mais ... ) hipóteses à sua disposição.
Na situação sub judice, quais são as hipóteses que o legislador deixou ao arbítrio do Senhor Magistrado Judicial?
- ou usava a língua oficial Chinesa;
- ou usava a língua oficial Portuguesa, já que
de acordo com o art° 9° da Lei Básica, "… sendo também o português língua oficial".
Comando, de resto, que o art°. 1° do Decreto-Lei nº 101/99/M, de 13 de Dezembro, recolheu, nos seus nºs 1 e 2, que se transcrevem:
"Artigo 1°
(Línguas Oficiais)
1. As línguas chinesa e portuguesa são as línguas oficiais de Macau.
2. AS línguas oficiais têm igual dignidade e são ambas meio de expressão válido de quaisquer actos jurídicos.
3. ……………………………………………………. "
Quer isto dizer que um acto jurídico expresso (sublinhado e negrito nossos) em língua Chinesa, é tão válido quanto o mesmo acto jurídico (ou qualquer outro acto jurídico... ) expresso em língua Portuguesa. Todavia,
Este princípio legal já não será válido se os actos jurídicos se encontrarem expressos em qualquer outro idioma, por muito internacional ou regional que seja como, por exemplo, as línguas Inglesa, Tailandesa, Francesa ou Japonesa.
Extracontextualmente considerada, a norma do Decreto-Lei nº 101/99/M, de 13 de Dezembro, acima transcrita, poderia inculcar a ideia da não existência de quaisquer limites ao princípio da discricionariedade, pelo que o autor desse despacho, in casu o Senhor Magistrado Judicial, se terá sentido tentado a adoptar essa (aparente) "verdade".
E facto é (neste ponto não se nos suscita controvérsia) que o decisor, o Senhor Magistrado Judicial autor do despacho que provocou o recurso não admitido, entendeu expressar a sua decisão na língua Chinesa que é, igualmente, uma das línguas oficiais de Macau.
O princípio da igualdade das línguas oficiais, porém, não acarreta, como corolário, a inexistência de restrições à opção feita.
Por outras palavras, entendemos que os Magistrados, quer Judiciais quer do Ministério Público, podendo embora escolher a língua oficial em que melhor se expressam (o que é normal e compreensível), não podem é impor às partes (salvo se todas dominarem o mesmo idioma), a língua em que se sentem mais à vontade,
Simplesmente porque a lei tal lhes não consente. Com efeito,
Dispõe o art° 8° do Decreto-Lei nº 101/99/M, de 13 de Dezembro, que se passa a transcrever:
"Artigo 8°
(Acesso à Justiça)
1. Todos têm o direito de se dirigir numa das línguas oficiais, oralmente ou por escrito, a qualquer tribunal ou órgão judicial e de, nele, compreenderem os actos processuais e aí serem compreendidos. (sublinhado nosso)
2. Não podem ser rejeitadas quaisquer peças processuais ou documentos análogos em razão da língua, quando redigidos numa das línguas oficiais".
   E precisamente quanto aos actos processuais, estatui o arte 9° do Decreto-Lei nº 101/99/M, de 13 de Dezembro:
"Artigo 9°
(Actos Processuais)
1. A determinação da língua dos actos processuais, feita nos termos da lei aplicável, tem em conta o direito de escolha das partes e o superior interesse da realização da justiça. (sublinhado nosso)
2. Os actos processuais orais devem ser praticados na língua oficial comum dos participantes, sendo assegurada a tradução quando tal língua não exista". (sublinhado nosso)
Uma cuidada análise às disposições legais transcritas evidencia a mais relevante preocupação do legislador: que as partes, em qualquer tribunal ou órgão judicial e independentemente da língua oficial que melhor dominem. possam compreender os actos processuais (e neles serem compreendidos), tendo em conta o superior interesse da realização da justiça (sublinhado e negrito nossos).
E se os actos processuais tiverem natureza oral, e alguma das partes não dominar a língua oficial comum, será assegurada a respectiva tradução oral (cfr. nº. 2 do art° 9° do D.L. nº 101/99/M, de 13 de Dezembro).
Mas se os actos processuais tiverem natureza escrita, então, para assegurar o direito que a lei confere a qualquer das partes, e tendo em consideração o superior interesse da realização da justiça, tal tradução deverá revestir a forma escrita, única maneira de garantir o duplo objectivo pretendido pelo legislador, qual seja o das partes compreenderem e serem compreendidas, tendo por objectivo o superior interesse da realização da justiça.
Claro se torna, portanto, que a capacidade dada ao decisor (in casu ao Senhor Magistrado Judicial) de se expressar, por escrito, numa das línguas oficiais, tem limites, como passaremos a analisar.
Em "Notas" ao art° 390º do Código do Processo Penal de Macau (edição de 1997) -ainda que este comando tenha sido alterado pelo art° 73º da Lei nº 1/1999, de 20 de Dezembro, a redacção do alínea b) do seu nº 1 não sofreu qualquer alteração- sustentam Leal-Henriques e Simas-Santos, exactamente a respeito desta alínea b) do nº 1 do citado art° 390º do C.PP, que as "decisões" nela referidas são, precisamente, "os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário".
Acrescentando que "O poder discricionário, insere-se na permissão conferida pela lei ao juiz para seleccionar uma de duas ou mais alternativas de opção postas ao seu prudente arbítrio tendo em atenção o fim geral do processo. É preciso, pois, que a lei reconheça expressa ou tacitamente tal poder.
Tais despachos constituem, assim, actos judiciais, na medida em que impõem uma conduta ou integram formalmente uma ordem, mas já não constituirão actos jurisdicionais, que definem o direito, que afectam os deveres ou interesses das partes."
Ao sustentarem esta interpretação, estribam-se Leal-Henriques e Simas-Santos, em José Alberto dos Reis, na sua obra Código do Processo Civil Anotado, 3a edição, 1952, pág. 248 do Volume V (e não, como por engano foi impresso, volume VI), e em Aníbal de Castro, na sua obra Impugnação das decisões judiciais, pág. 29.
No que aos despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário respeita (J.A.Reis, op. cit, pág. 252), são despachos que se destinam a ordenar actos que dependem da livre determinação do juiz, ainda que se possa verificar a circunstância do acto poder depender da iniciativa funcional do juiz e não traduzir, contudo, uma livre determinação.
Por outras palavras, a lei pode conferir ao juiz a iniciativa de certos actos e sujeitar essa iniciativa a determinados limites.
Livre determinação quer dizer determinação que não está sujeita a limitações ou a qualquer condicionalismo.
O que caracteriza o poder discricionário é a ausência de limites (Rev. de Leg. 79, pág. 107). Por outro lado,
O tribunal está investido de poder jurisdicional quando lhe é lícito fazer ou deixar de fazer, quando depende exclusivamente da sua vontade determinar-se num ou noutro sentido. Poder discricionário quer dizer poder absolutamente livre, subtraído a quaisquer limitações objectivas ou subjectivas (Rev. de Leg. 79, pág. 107).
Como se acaba de demonstrar, só são irrecorríveis os despachos proferidos no uso de um poder discricionário.
ln casu, podia o juiz decidir como decidiu, ao proferir o despacho de não admissão do recurso?
Pelo que acima se deixa exposto, é evidente que o juiz, no caso em apreço, não é absolutamente livre na decisão de escolher a língua em que os actos escritos se vão expressar.
Com efeito, e como se alegava já em sede de recurso, o art° 8°, nº 1, do Decreto-Lei nº 101/99/M, de 13 de Dezembro, assegura que "Todos têm o direito de se dirigir numa das línguas oficiais, oralmente ou por escrito, a qualquer tribunal ou órgão judicial e de, nele, compreenderem os actos processuais e aí serem compreendidos" (sublinhado e negrito nossos).
De resto, uma vez que tal diploma legal não foi revogado, estando plenamente em vigor, forçoso é concluir que o despacho de que se quis recorrer, não é um despacho proferido no uso de poderes discricionários
e,
Assim sendo, é um acto recorrível, por se não enquadrar na alínea b) do nº 1 do art° 390° do C.P.P.
E não é enquadrável no preceito legal invocado, por não ser acto dependente da livre resolução do tribunal.
Recorde-se, de resto, que aos tribunais cabe -e já não é pouco-a interpretação e aplicação da lei, não a sua alteração ou revogação, actos reservados ao poder legislativo.
Tendo presente que o Decreto-Lei nº 101/99/M, de 13 de Dezembro, é um diploma legal em plena vigência,
Que não consente ao tribunal a opção de o aplicar, ou não,
E que claramente determina que as partes num litígio judicial (como no âmbito dos processos administrativos, na sua fase graciosa), podem optar pela notificação dos actos que em tribunal se praticam, na língua oficial que melhor dominem,
O juiz não pode, por a lei não lhe consentir esse poder discricionário, negar, à parte que o solicite, a notificação dos actos praticados no processo na língua oficial que pretenda, por lhe propiciar uma melhor compreensão dos actos praticados e,
Consequentemente, ser no superior interesse da justiça que as partes tenham plena consciência, conhecimento e compreensão dos actos processuais.
Termos em que o despacho ora reclamado deverá ser revogado, proferindo-se um novo despacho que admita o recurso interposto.
Nestes termos,
Nos mais de Direito, e sempre com o douto suprimento de Vossa Excelência, Senhor Juiz-presidente do Venerando Tribunal de Segunda Instância, deverá revogar-se o despacho objecto da presente reclamação, ordenando a admissão do recurso tempestivamente interposto.
Assim decidindo, estará Vossa Excelência fazendo, Senhor Juiz-presidente, para além de boa interpretação e aplicação do Direito, administração de boa e sã
JUSTIÇA!

Passemos pois a apreciar a reclamação.

Antes de mais, é de frisar que ao Tribunal não cabe responder todos os argumentos deduzidos pelo interessado para sustentar a sua pretensão, mas sim apenas as questões que lhe são concretamente colocadas no petitório.

Sendo o objecto da reclamação a não admissão do recurso de um despacho que indeferiu o pedido da tradução para a língua portuguesa, a única questão levantada pelo reclamante e atendível nesta sede é a de recorribilidade daquele despacho.

Sobre a questão idêntica já me pronunciei nos autos de reclamação nº 3/2003, onde se afirma que:

根據《澳門特別行政區基本法》第九條規定,澳門特別行政區司法機關除使用中文外,還可使用葡文。
根據這一規定,司法機關無義務同時以中、葡雙語並行形式作出其訴訟行為,以中文或葡文任一作成訴訟行為完全符合基本法的規定,且司法官或司法文員二擇其一完全是自由決定的行為表現。
同樣,法官就是否滿足額外的翻譯要求亦是法官自由決定的範圍。
因此,根據《刑事訴訟法典》第三百九十條第一款b項的規定,就原審法官不批准翻譯請求決定不得提起上訴。
  
Não vejo razão para alterar esse entendimento, pois, de facto, sendo línguas oficiais da RAEM a chinesa e a portuguesa, é opção livre por parte dos magistrados judiciais o uso de qualquer uma delas na redacção dos seus despachos escritos.

E por razões idênticas, a satisfação ou não do pedido de tradução de um despacho escrito, de uma dessas línguas para a outra, integra precisamente no âmbito de livre resolução do magistrado autor do acto.

Assim, face ao disposto no artº 390º/1-b) do CPP, é de concluir pela irrecorribilidade do despacho da Mmª Juiz a quo que negou a pretendida tradução.

Pelo que vimos supra, sem necessidade de mais considerações, indefiro a reclamação confirmando o despacho reclamado.

Sem custas pelo reclamante por ser Defensor Oficioso e ter agido na presente reclamação nessa qualidade.

Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP.

R.A.E.M., 22SET2012


O presidente do TSI


Lai Kin Hong




Recl.9/2012-1