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Processo nº 681/2012 Data: 27.09.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla”.
Correcção de acta de julgamento.
Legitimidade do Ministério Público.
Prazo para a queixa.
Crime continuado.



SUMÁRIO

1. O Tribunal pode rectificar a acta em caso de desconformidade entre o teor do ditado e o ocorrido.

2. O prazo para a queixa apenas começa a contar da data em que o titular “tiver tido conhecimento do facto” (e dos seus autores), isto é, a partir do momento em que os ofendidos tomem conhecimento que foram enganados e que eram, ou tinham sido, “vítimas” do crime de burla, (e não, a partir da sua prática).

3. A construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo).
Impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro.

O crime de burla é um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo, mas também de resultado, pois apenas se consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo, consubstanciada num prejuízo efectivo.

4. A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

5. O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material.

6. A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. No caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa não há diminuição sensível da culpa. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.

A experiência e as leis da psicologia ensinam-nos que, em regra, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta então que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades do agente, uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal de vida e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.

7. Ainda que tenha a ora recorrente engendrado um plano para conseguir apropriar-se de quantias monetárias, há que ter em conta que a ulterior acção concreta da mesma sobre as vítimas, convencendo-as da sua capacidade de lhes arranjar emprego, torna evidente a autonomia de cada uma das específicas actuações da arguida face a cada uma das suas vítimas, traduzindo-se, em autónomas resoluções criminosas.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo


Processo nº 681/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se
- condenar a (1ª) arguida A (XXX), com os restantes sinais dos autos, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de 13 crimes de “burla (simples)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1, do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão cada;
- condenar a mesma arguida, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 crime de “burla (qualificada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão; e,
- em cúmulo jurídico das mencionadas penas parcelares e a de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses, aplicada nos autos CR2-11-0251-PCS, foi a arguida condenada na pena única de 4 anos e 2 meses de prisão, assim como no pagamento de diversas indemnizações aos ofendidos que totalizam MOP$190,000.00; (cfr., fls. 511-v a 512-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada com o assim decidido, a arguida recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:

“1. O presente recurso vem interposto do acórdão que condenou a recorrente pela prática de 14 crimes de burla, sendo 13 de burla simples, puníveis ex vi do art. 211.°, n.° 1, do C.P., e 1 de burla qualificada (em razão do “valor elevado”), punível por força do n.° 3 do mesmo artigo.
2. Por outro lado, considerando o processo CR2-11-0251-PCS – em que à arguida haviam sido aplicadas 4 meses de prisão suspensos na sua execução por 1 ano - , o Tribunal a quo determinou aplicar à recorrente uma pena única de a anos e 2 meses.
3. A decisão judicial acima descrita, pelas razões que a seguir se explanam, não acolhe a aquiescência da recorrente.
4. Violou o acórdão recorrido as normas constantes dos artigos 106.°, al. b), 37.° e 38.°, todos do Código de Processo Penal, ao não ter declarado, como lhe competiria, a ilegitimidade da promoção dos autos pelo Ministério Público - e a nulidade insanável daí decorrente - atento o facto de as 13 queixas-crime terem sido apresentadas em momento em que esse direito já se encontrava há muito prescrito.
5. No acórdão houve a utilização de prova proibida, no sentido de ter sido feita a valoração do depoimento feito pela 2.a arguida no Ministério Público, o qual não foi produzido ou examinado em audiência de julgamento, o que acarreta necessariamente a anulação do julgamento e impõe a sua repetição.
6. De acordo com a acta da audiência de julgamento de 23 de Maio de 2012, tais declarações da 2.a arguida perante o Ministério Público - apesar de esta ter requerido a sua leitura - nunca chegaram a ser admitidas nem, pois, foram produzidas ou examinadas na mencionada audiência de julgamento de 23 de Maio de 2012.
7. De igual forma, nunca tais mesmas declarações da 2.a arguida foram submetidas ao princípio do contraditório a fim de se permitir à ora recorrente poder contradizê-las ou refutá-las.
8. Dispõe o art. 336.°, n.° 1, do Código de Processo Penal que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
9. A utilização pelo acórdão recorrido de meio de prova proibido acarreta necessariamente a anulação do julgamento e importa a sua repetição.
10. Violou, pois, o acórdão recorrido, por referência aos artigos 105.°, n.° 3, e 106.°, os artigos 336.°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal.
11. Refere o Tribunal a quo que a arguida aqui recorrente não estava habilitada nem tinha a capacidade para prestar ou providenciar pela obtenção de trabalho em Macau e dos respectivos títulos de permanência para trabalhadores não residentes - cfr. pontos 2 e 5 do acórdão, em "B. Factos, II. Factos provados".
12. No entanto dos autos é patente - face aos documentos e declarações da arguida e dos ofendidos, que a recorrente tinha capacidade ou possibilidade para providenciar aquilo a que se obrigava sendo certo que aquilo a que se obrigava era a interceder e intermediar o contacto entre os potenciais trabalhadores não residente e a potencial entidade empregadora, que era frequentemente o Landmark (em que a recorrente trabalhou de 2002 a 2009) ou, por vezes também, outros hotéis ou casinos de Macau.
13. Esta vinculou-se, assim, perante cada um dos ofendidos e demais potenciais trabalhadores não residentes a uma obrigação de meios ou de diligência e não a uma obrigação de resultado, como aliás ela mesma disse em julgamento e foi corroborado pelo 1.° ofendido.
14. No caso de não conseguir, não obstante as diligências efectuadas, fazer com que os ofendidos conseguissem obter trabalho e respectivo visto em Macau, o que a recorrente sempre se dispôs a fazer foi proceder à devolução da totalidade das quantias que lhe tinham sido pagas,
15. Alias, estaríamos, perante uma situação sem ressonância penal de vulgo "cunha para emprego" remunerada, situação essa meramente contratual e obrigacional consistente numa prestação de serviços atípica lícita.
16. Para se estar perante uma burla, não bastaria que a recorrente mentisse, mostrando-se necessário que uma tal invocada mentira fosse acompanhada da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe credibilidade e; assim, de uma encenação dirigida a facilitar o convencimento do sujeito passivo - situação que não ocorreu no caso concreto!
17. Só assim a agressão ao património revestiria a gravidade suficiente para justificar a intervenção do direito penal, ou seja, é necessário que a conduta do agente consubstancie um particular engenho, habilidade ou astúcia e, nesta acepção, uma «mentira qualificada».
18. Na realidade, compete, em primeira linha, às pessoas adoptar as cautelas necessárias à defesa dos seus interesses e só na hipótese de o comportamento, pelo especial engenho ou astúcia que reveste, se mostrar susceptível de iludir o cuidado que normalmente se espera de cada um, se estaria perante uma situação merecedora de tutela jurídico-criminal.
19. No caso, sem conceder, estaríamos unicamente perante uma simples mentira da arguida, desacompanhada de quaisquer outros actos exteriores para dar uma maior credibilidade às suas afirmações, e as ofendidas, sem mais, acreditaram nela, entregando-lhe as quantias, sendo certo que o comportamento prometido não consubstancia qualquer ilícito criminal, merecedor de especial censura também face aos ofendidos.
20. Pelo exposto, e por não estarem preenchidos todos os requisitos exigidos para os imputados crimes de burla, há que absolver a arguida recorrente pelos crimes de burla por que vem acusada e foi condenada, sem prejuízo de os ofendidos, caso entendam, poderem recorrer aos meios comuns para se verem ressarcidos dos prejuízos que eventualmente entendam ser de seu direito.
21. Por tudo o exposto, o acórdão recorrido incorreu, pois, num erro de julgamento nos termos do art. 400.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, ao ter feito incorrecta aplicação do art. 211.° do Código Penal.
22. Atentando-se nos elementos constantes dos autos e da matéria de facto assente, retira-se que a recorrente não estava habilitada nem tinha a capacidade para prestar ou providenciar pela obtenção de trabalho em Macau e dos respectivos títulos de permanência para trabalhadores não residentes
23. Por outro lado, também se retira que a recorrente conseguiu diligenciar e obter que os dois filhos da 2.a arguida arranjassem emprego no Landmark - cfr. Ponto III e C, 1.° parágrafo, do acórdão - e que logrou obter tais colocações fazendo intercessão junto do Departamento de Recursos Humanos do Landmark.
24. Ora, ambos os factos tidos por assentes colidem se se excluem mutuamente, não podendo ser ambos verdade, pois, ou bem que a recorrente tinha tal aptidão para, mediante a sua obrigação de meios traduzida na sua intermediação ou intercessão, conseguir obter trabalho e respectivo visto ou, pelo contrário, não tinha, nunca teve e sábia que não tinha tal aptidão.
25. Violou, assim, o acórdão recorrido o art. 400.°, n.° 2, al, b) do Código de Processo Penal.
26. Os conjuntos factuais dos autos descrevem sempre situações em que existe um alegado acordo entre os sujeitos e uma repetição de oportunidades, favoráveis à prática do crime que já havia sido aproveitada na primeira daquelas condutas criminosas o que diminui consideravelmente a alegada culpa da arguida.
27. A recorrente trabalhava no "Landmark" e já tinha anteriormente ajudado os 2 filhos da 2a arguida com sucesso e existia uma expectativa real de obter e providenciar o que prometeu (e que antes já tinha conseguido), sendo que se comprometeu a devolver o dinheiro se não conseguisse que as pessoas tivessem trabalho e respectivo visto.
28. Estaria, assim, perante uma situação sem ressonância penal de vulgo "cunhas para emprego" remuneradas, situação essa, que, se acaso tiver relevância penal sempre deverá ser enquadrada como crime continuado.
29. No caso dos autos, é inquestionável que a alegada actividade da arguida foi basicamente homogénea e é inquestionável que houve uma solicitação exterior, o facto notório e público da falta de mão-de-obra laboral para os hotéis e casinos à data dos factos e a situação de já ter anteriormente ajudado os 2 filhos da 2a arguida com sucesso a ter emprego e vistos, sendo que acreditava que existia uma expectativa real de conseguir o que prometeu e também sempre comprometeu a devolver em caso de insucesso - o que fez em parte.
30. Este factor externo personificado na falta de mão-de-obra laboral para os hotéis e casinos, a situação de já ter anteriormente ajudado os 2 filhos da 2a arguida com sucesso a ter emprego em Macau e o acreditar que existia uma expectativa real de conseguir o que prometeu, leva-nos à conclusão que existia efectivamente uma disposição exterior das coisas para o facto.
31. Como resultou provado no julgamento, "A recorrente trabalhava no "Landmark" e ajudou os 2 filhos da 2a arguida com sucesso a ter emprego e também foi a 2a arguida que lhe pediu - em face do sucesso com o caso dos filhos - para ver se arranjava emprego para os seus amigos e familiares.
32. É, pois, patente, a existência de uma relação que, de fora, (precedente) e de maneira considerável, facilitou e impeliu a alegada repetição da actividade da arguida, tomando cada vez menos exigível à mesma que se comportassem de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
33. É, desse modo, inegável a diminuta culpa da arguida em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída, pelo que a sua conduta, procedendo a acusação de burla da arguida não poderia deixar de ser subsumida à figura do crime continuado, nos termos do art.° 29° n° 2 do C.P.
34. A pena aplicada a arguida recorrente deveria ter sido subtraída às regras do concurso de penas, previstas no art.° 71°, aplicando-se a regra prevista no art.° 73°, ambos do CP ..
35. A pena, então, aplicável seria aquela que se reportasse à conduta mais grave que integra a continuação, logo, a do crime de burla de valor elevado p. e p. pelo n° 3 do art.° 211 ° do Código Penal (até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias).
36. Na determinação da medida da pena a aplicar à arguida haveria, pois que ponderar, nomeadamente, a intensidade do dolo (dolo directo), o grau superior ao médio da ilicitude das condutas da arguida e a gravidade dos crimes cometidos, aqui em apreciação, atendendo ao modo de actuação de cada um deles e consequências das respectivas condutas.
37. Com todo o devido respeito, a dosimetria da pena aplicada em concreto à Recorrente, pelo seu exagero, olvidando todos os elementos pessoais e em manifesta violação da medida da culpa parece resultar de um retomo, por parte do Tribunal a quo à velha e anti-social teoria da retribuição, ao invés de se prosseguir os fins de prevenção especial positiva, adequando-se a pena à sua função ressocializadora.
38. O Tribunal a quo esqueceu que a política criminal que está na raiz do Código Penal de Macau é a de prosseguir os fins de prevenção especial positiva de reinserção social do agente.
39. As penas que foram aplicadas à Recorrente são excessivas e violam o disposto nos artigos 65.°, 71.° e 73.° do Código Penal.
40. Não são adequadas à culpa da recorrente e não contribuem minimamente para realizar as finalidades da sua reinserção social.
41. Recorde-se que a recorrente, à data da ocorrência dos factos, era primária e vivia na companhia do seu marido e dos seus dois seus filhos menores (7 anos e 11 anos), estudantes, de quem é o único amparo, mormente afectivo.
42. A recorrente esteve sempre presente em todas as sessões de julgamento realizadas, jamais fugindo, revelando um comportamento de uma cidadã responsável e respeitável.
43. A recorrente foi condenada no processo CR2-11-0251-PCS a uma pena efectiva 4 meses de prisão suspensa por 1 ano e tem cumprido sempre a medida de suspensão que lhe foi imposta e que findará em Setembro de 2012.
44. O acórdão recorrido violou os princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação das penas, ínsitos no artigo 64.0 do mesmo diploma ~ legal, pois todas as circunstâncias que envolveram os factos, assim como as características pessoais da recorrente, imporiam uma pena menos gravosa.
45. Refira-se que cada uma das penas individuais do crime de burla simples situou-se precisamente a 1/4 do máximo da moldura abstracta, ou seja, no patamar dos 9 meses de prisão (!) quando, na verdade, cada uma delas nunca deveria ter excedido 1/9 daquele máximo da moldura penal, ou sejam, 4 meses de prisão.
46. E a pena individual do crime de burla de valor elevado situou-se precisamente na orla de 1/2 do máximo da moldura abstracta, ou seja, no patamar dos 2 anos e 3 meses de prisão (!) quando, na verdade, nunca deveria ter excedido 1/9 daquele máximo da moldura penal, ou sejam, 7 meses de prisão.
47. Nos diversos percursos de determinação da pena concreta final, não foram devidamente ponderadas a reduzida culpa da arguida e, bem assim, a conduta e comportamentos anteriores e posteriores aos crimes, personalidade e situação económica, familiar e social da mesma, tudo conforme o disposto nos artigos 40.° e 65.° do Código Penal.
48. No processo de concretização da sanção penal, aplicável a arguida, deveriam ter sido percorridas três fases: a determinação da moldura penal abstracta, a fixação da pena adequada e a indagação do tipo de pena exigido.
49. Quanto à primeira etapa, a moldura abstracta do crime de burla simples é uma de pena de prisão até 3 anos (cfr. artigo 211° do Código Penal) e do crime de burla de valor elevado é uma pena de prisão até 5 anos.
50. E analisando as circunstâncias que o art. 65° do Cód. Penal exemplificadamente enumera e a que deve atender para fixação da pena concreta, concluir-se-á o seguinte:
• Quanto à censurabilidade das condutas ilícitas, não poderia deixar de se atender ao quase inexistente ou ao, quanto muito, ténue grau de dolo revelado pela arguida, nos termos supra citados;
• A recorrente era primária à data da ocorrência dos factos, sem antecedentes criminais e com bom comportamento actual;
• É residente permanente e tem uma situação económica, familiar e social estável tendo a seu cargo 2 filhos menores;
• Procedeu ao pagamento da quantia de 27.000,00 Remebis à 14a ofendida no que respeita ao crime de burla de valor elevado – documento 1.
• O crime de burla de valor elevado é exclusivamente devido a um factor inteiramente alheio à vontade e ao domínio da recorrente visto que consiste na mera flutuação especulativa e arbitrária do Yuan face à pataca do que resulta que os respectivos valor de referência entre ambas as moedas alteram-se frequentemente.
51. Pelos motivos largamente discutidos supra, considerados agora globalmente e à laia de conclusão, partindo do princípio que é procedente a prescrição invocada, entende-se como, ajustada, adequada e proporcionada, no caso de punição pelo crime de burla de valor elevado - a pena única de 1 ano de prisão para a arguida - devendo a mesma ser suspensa por um período até 5 anos .
52. Tal medida da pena justifica-se por a recorrente ter na medida do possível já reparado as consequências do crime ao proceder ao pagamento do prejuízo da 14a ofendida e ter demonstrado por essa um arrependimento sincero e espontânea em consonância do que sempre prometeu desde inicio, sendo-lhe inteiramente justa ver reflectida na medida da pena este seu comportamento reparador conforme permitem os artigos 65°, n.° 2, al. e) e 66°, n.° 2, al. c), ambos do C.P.
53. Bem como, deverá ser relevando também o facto do crime de burla de valor elevado é exclusivamente devido a um factor inteiramente alheio à vontade e ao domínio da recorrente visto que consiste na mera flutuação especulativa e arbitrária do Yuan face à pataca do que resulta que os respectivos valor de referência entre ambas as moedas alteram-se frequentemente, ou seja, a arguida só é punida a esse titulo qualificado não por um desvalor da acção ou resultado mais acentuado, mas unicamente, pelo factor conjuntural do câmbio.
54. Por mera cautela de patrocínio, entende-se como, ajustada, adequada e proporcionada, no caso de punição por crime continuado - a pena única de 1 ano e 3 meses de prisão para a arguida - devendo a mesma ser suspensa por um período até 5 anos, e caso se justificasse, a suspensão ficaria sujeita à condição de pagar as demais quantias aos ofendidos.
55. Por ultimo e também por mera cautela de patrocínio, caso se entenda que a arguida cometeu, respectivamente, 13 (treze) crimes de burla simples e 1 (um) crime de burla de valor elevado (MOP$31.500,00 - somente devido ao câmbio), deve então, a mesma ser condenada, em concurso de crimes, em penas únicas manifestamente inferiores aos estabelecidos na sentença recorrida, nos termos prescritos no artigo 71 ° do CP. - Entendendo-se como, ajustada, adequada e proporcionada - a pena única de 1 anos e 9 meses de prisão - devendo a mesma ser suspensa por um período até 5 anos, e caso se justificasse, a suspensão ficaria sujeita à condição de pagar as demais quantias aos ofendidos.
56. Também nesta situação, no que respeita ao Crime de burla de valor elevado, deverá ser atendidos os factos referidos nos artigos da presente peça n.° 137° e 138° supra.
57. Caso seja a Recorrente, após analisado o recurso e seja o mesmo procedente ou parcialmente procedente, punida com uma pena única inferior a 3 anos de prisão, como se espera, entende esta ser dever esse Venerando Tribunal suspender a respectiva execução.
58. Nos presentes autos, entende a Recorrente que se verificam, em concreto, todos os elementos necessários e suficientes para permitir ao Tribunal um juízo de prognose favorável ao Recorrente e conducente à suspensão de uma eventual pena de prisão.
59. Afigura-se adequada uma prognose favorável à luz de considerações exclusivas de socialização, tomando em conta que a recorrente não tinha antecedentes criminais à data dos factos da acusação, apresentando bom comportamento anterior e posterior ao crime; nunca teve qualquer experiência prisional (só agora que está em prisão preventiva injustamente); e mostra-se social e familiarmente integrada na RAEM onde é residente permanente.
60. Sendo que a ameaça de prisão contém por si mesma, virtualidades para assegurar a realização das finalidades da punição, sem sujeição ao regime, sempre estigmatizante e muitas vezes de êxito problemático, da prisão.
61. E no que concerne à prevenção geral perde algum sentido uma condenação em prisão efectiva cuja gravidade foi mitigada por circunstâncias atenuantes - como sejam a confissão, ainda que parcial, e a solicitação externa a que foi sujeito – que diminuíram notoriamente a culpa, a ilicitude e sobretudo as necessidades de punição.
62. Deverá assim esse Venerando Tribunal suspender a execução da pena de prisão arbitrada à Recorrente pois, perante os princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação das penas, ínsitos no art. 64° do CPM, uma pena efectiva se mostraria desnecessária para cumprir as finalidades da punição.
63. O douto acórdão recorrido violou a norma do citado artigo 48° do CPM uma vez que face à ponderação global do grau de culpabilidade e comportamento moral do Recorrente e demais circunstâncias, devia ter aplicado o instituto da suspensão da execução da pena fixada.
64. Violou, ainda, o douto acórdão recorrido o princípio da proporcionalidade e da necessidade das penas pois uma pena efectiva é desnecessária para cumprir as finalidades da punição no caso concreto.
65. Verificando-se os pressupostos legais, requer assim que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, seja aplicado o regime da suspensão da execução da pena aplicada à recorrente.”
A final pede que se julgue “procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida no sentido de:
i) Ser considerado extinto o procedimento criminal em relação aos 13 crimes de burla simples;
ii) Ser a recorrente absolvida de todos os crimes de burla simples e de valor elevado por falta dos respectivos elementos subjectivos e objectivo do tipo de crime;
iii) Ser declarada nula a sentença por utilização de meio de prova proibido, com reenvio do processo para novo julgamento;
iv) Ser declarado existente a contradição insanável, com reenvio para o processo para novo julgamento;
v) Ser a recorrente condenada ao abrigo regime do crime continuado;
vi) Ser a recorrente condenada somente pelo crime de um crime de valor elevado;
vii) Ser a recorrente condenada, em qualquer dos casos, em medida de pena inferior a 3 anos, suspensa na sua execução até 5 anos e sujeita a condição de pagamento das demais quantia aos ofendidos, se assim for entendido”; (cfr., fls. 650 a 704).

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Respondendo, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 749 a 763).

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Remetidos os autos a este T.S.I., neles subiu 1 outro recurso, entretanto interposto de um despacho que determinou a alteração do teor (correcção) da acta de audiência de julgamento.

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“–– Recurso da alteração da acta
Nos termos da al d) do n° 3 do art° 89°, CP, da acta de audiência de julgamento deve constar, além do mais, "Qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova...", o que se nos afigura ser o caso relativamente à menção da leitura das declarações prestadas pela recorrente no MP, elemento probatório consignado no douto acórdão condenatório.
Temos algumas dúvidas que, a subsistir tal falta de consignação a mesma fosse susceptível de prefigurar qualquer nulidade, conforme, de resto, imputado no recurso daquele acórdão e que parece ter algum sustento, designadamente na jurisprudência portuguesa ( cfr, a título de exemplo, acs do STJ de 27/10/04 e 12/11/97, respectivamente in CJSTJ, 1994, ano II, tomo III, pág 219 e BMJ 472,, pág 402, relativamente a declarações prestadas pelos arguidos perante o juíz de instrução).
De todo o modo, o certo é que o Mmo Juíz presidente entendeu por bem rectificar o conteúdo da acta da audiência, ficando na mesma a constar aquela leitura, o que não acontecia primitivamente, fundando-se, para tal, na sua própria memória, bem como em manuscritos do oficial de justiça presente no acto (e, dizemos nós, também confirmado pelo Magistrado do MP, na sua resposta ao recurso do acórdão), tendo ainda presente ter a recorrente assinado declaração (fls 127 dos autos) autorizando a ocorrência do julgamento na sua ausência e pedindo a leitura das suas declarações feitas no MP, durante a sessão.
Ora, pese embora tratar-se de documento autêntico, não se vê que se não encontre no poder, na disponibilidade do Juíz presidente do colectivo proceder à rectificação ou alteração do mesmo, conquanto tal alteração se destine a repor a verdade do que efectivamente aconteceu.
E, é aqui que, a nosso ver, verdadeiramente reside o "busilis" : é que, colocando a questão em termos puramente formais, não se descortina que a recorrente ponha em causa que a alteração produzida na acta se tenha destinado a repor a verdade do que efectivamente aconteceu, sendo certo que, se assim fosse, se entendesse que, com tal alteração, a acta do julgamento passou a não traduzir a realidade, deveria, na altura própria, aquando da sua notificação, ter lançado mão do incidente de falsidade, o que se não regista.
Assim sendo, quer-nos parecer não lhe assistir qualquer razão a este propósito.
–– Recurso do acórdão
Das queixas
Nos termos do n° 1 do art° 107°, CP, "o direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data que o titular tiver conhecimento do facto ... "
Conforme circunstanciadamente expõe o Exmo Colega junto do tribunal "a quo" na sua resposta, a verdade é que, pese embora os ofendidos tenham entregue as quantias em que foram lesados em momentos bastante anteriores, o fizeram mediante a promessa de tratamento "futuro" de documentação e formalidades para poderem vir a trabalhar e permanecer em Macau, ficando, portanto, na expectativa do tratamento efectivo dos casos respectivos.
E, sendo verdade que, por norma, as "promessas" em questão se reportavam a prazos máximos de 3 meses, não deixa de ser certo apontar a normalidade para que os visados fossem, esperançadamente, aguardando pelo sucesso das supostas "démarches " da recorrente, pelo que a prova do seu efectivo conhecimento da prática dos factos delituosos não poderá deixar de reportar-se aos momentos que aquele ilustre Colega reporta circunstanciadamente relativamente a cada um dos ofendidos, sendo que, a partir dos mesmos, se não mostra decorrido o prazo de caducidade do exercício do direito de queixa de todos eles.
Da valoração de prova proibida
Este "item" encontra-se, como é bom de ver, prejudicado pelo entendimento, já assumido, relativamente à questão da alteração/rectificação da acta do julgamento, da qual passou a fazer parte a leitura efectiva das declarações da recorrente prestadas perante o MP, razão por que, efectuada e assumida tal consignação em documento autêntico, cuja falsidade não foi arguida, ficará esvaziado de conteúdo e sentido todo o esgrimido nesta base.
Dos elementos do crime de burla
Pretende, a este nível, a recorrente, essencialmente, fazer vingar a ideia da não utilização, da sua parte, de astúcia, erro mi engano dolosamente provocados, já que, para além de transmitir aos ofendidos que conseguiria arranjar empregos e autorização de permanência em Macau, também lhes referiria que, se o não conseguisse, devolveria o dinheiro.
Só que não é isso que resulta do douto aresto controvertido, donde ressalta, isso sim, que, para além de ter assumido a mentira (já que bem sabia que não estava habilitada e que não tinha a capacidade de providenciar pela obtenção de trabalho em Macau e respectivos títulos de permanência para trabalhadores não residentes), diligenciou, por várias formas, no sentido de, nomeadamente através da divulgação, por terceiros, dessa capacidade, enganar os visados, determinando-os à entrega dos montantes respectivos, mostrando-se, pois, preenchidos os elementos, quer objectivos, quer subjectivos dos ilícitos em questão.
Da contradição na fundamentação
Pretende, a este propósito, a recorrente confrontar 2 realidades distintas: uma, respeitante aos factos dados como provados ("a recorrente não estava habilitada nem tinha a capacidade para prestar ou providenciar pela obtenção de trabalho em Macau e dos respectivos títulos de permanência para trabalhadores não residentes'') e outra proveniente da descrição das suas próprias declarações, não constante dos factos dados como provados ("a recorrente teve sucesso em arranjar para os 2 filhos da 2ª arguida trabalhos no hotel Landmark'')
Logo, revela-se inócuo procurar contradição entre asserções completamente diferentes e não ambas dadas como provadas.
De todo o modo, ainda que assim não fosse, não ocorreria a almejada contradição, já que a possível existência de um caso de "sucesso" não teria o condão de "per se", afastar o sucedido em relação aos restantes, ao que acresce que, bem vistas as coisas, não será de excluir que o apontado caso, até por que referente a familiares da 2a arguida, possa ter sido utilizado como "isco ", como "engodo" para os restantes visados, não detendo, assim, qualquer pertinência o alegado neste específico.
Do crime continuado
No caso sob escrutínio estão em causa vários ofendidos, abordados das mais variadas formas e condições, designadamente de tempo e local, inexistindo uma "unidade de dolo" não se verificando uma linha psicológica continuada, nem se podendo falar verdadeiramente na persistência de uma situação exterior facilitadora da consumação dos ilícitos, por forma a poder falar-se em diminuição considerável da culpa da recorrente, sendo que nem o eventual "sucesso" com a contratação dos 2 filhos da 2a arguida, nem a insuficiência de recursos humanos em Macau detêm, por si, o condão de prefigurar aquela situação, tratando-se, isso sim, de condições que favoreceram a actividade da recorrente no encalce do engano, do convencimento dos ofendidos visados, mas que não detêm a virtualidade de lhe diminuir acentuadamente a culpa.
Atentas as medidas penais abstractas dos ilícitos imputados à recorrente, o facto de a mesma não ser primária, ter negado os factos e não se ter apurado qualquer atenuante de relevo, afigura-se-nos que, quer as penas parcelares (abaixo de 1/3 do máximo nas burlas simples e abaixo de 1/2 na burla qualificada), quer o cúmulo de 4 anos prisão alcançados se apresentam com dosimetria penal justa e adequada, a afastar, desde logo, no plano formal, a pretendida suspensão da execução respectiva, sendo que, mesmo que assim não fosse, nunca a mesma se justificaria, por não ser de concluir que a mera censura dos factos e a ameaça de prisão realizassem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
(…)”; (cfr., fls. 879 a 884).

*

Cabe decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:

“1.
A 2ª arguida B (XXX) é residente do Interior da China, entrou em Macau munida do Salvo-conduto dos residentes da RPC para Deslocações a Hong Kong e Macau em 2007 e trabalhou como empregada doméstica na casa da 1ª arguida A (XXX); a 2ª arguida B (XXX) não tem documento que lhe permite trabalhar em Macau mas permanecia em Macau fora do prazo de autorização.
2.
Na sua estadia em Macau, a 2ª arguida B (XXX) sabia que muitos parentes e amigos do Interior esperavam trabalhar em Macau, pelo que, a 1ª arguida A (XXX) transmitiu a notícia, através da 2ª arguida B (XXX), aos parentes e amigos do Interior, de que a 1ª arguida A pode tratar documentos aos residentes do Interior para trabalharem em Macau, aproveitando esta oportunidade para cobrar emolumentos dos residentes do Interior que pretendem trabalhar em Macau, a fim de adquirir interesses pecuniários; de facto, as duas arguidas não têm competência para tratar TI/TNR.
3.
A seguir, as duas arguidas começaram a realizar o plano supracitado, a 2ª arguida B (XXX) distribuiu a notícia entre os parentes e amigos da Cidade de Yangjiang da Província de Guangdong, alegando que a 1ª arguida A (XXX) pode tratar os trâmites para trabalhar em Macau e fornecer empregos em hotéis ou casinos de Macau, com salário mensal cerca de MOP$5.000,00, incluindo comida e moradia, mais, prometendo que os requerentes podem trabalhar em Macau após 3 meses de entrega de requerimento, o emolumento de cada requerente varia entre alguns milhares a dez mil reminbi.
4.
Até 15 de Julho de 2008, a 2ª arguida B (XXX) foi proibida de entrar em Macau pelo CPSP por permanência fora do prazo, com duração de 9 meses (até Abril de 2009); após a expulsão, a 2ª arguida de novo entrou clandestinamente em Macau de Zhuhai, de barco em 31 de Janeiro de 2009 e continuou a trabalhar na casa da 1ª arguida A (XXX) como empregada doméstica.
5.
No período entre Agosto de 2007 e Outubro de 2009, a 1ª arguida A (XXX) e a 2ª arguida B (XXX) cobraram os emolumentos totais ou parciais de dezenas de indivíduos do Interior para tratar documentos, no total de mais de RMB$600.000,00; ambas as duas não têm competência para tratar documentos para os indivíduos do Interior trabalharem em Macau, nem lhes conseguem fornecer empregos. Depois de cobrar os emolumentos, as duas arguidas também não trataram os documentos supracitados, pelo que, quando decorreu o prazo de 3 meses prometido pelas duas arguidas aos requerentes, as duas utilizaram vários pretextos para esquivar-se da sua responsabilidade. No período entre Maio e Junho de 2010, foram denunciadas as duas arguidas ao CPSP pelos seguintes ofendidos, respectivamente:
1. Em 24 de Abril de 2009, XXX (XXX) teve um encontro com a 1.ª arguida A (XXX) e a 2.ª arguida B (XXX) num estabelecimento de comidas perto do Hotel Grand Lisboa Macau, durante o qual, as duas arguidas prometeram que poderiam arranjar para a irmã mais velha de XXX (XXX) um emprego como assalariada num hotel de Macau no prazo de 3 meses e a despesa foi de RMB¥20.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em representação da sua irmã mais velha, uma quantia de RMB¥10.000,00 à 1.ª arguida A (XXX) (vide fls. 16 dos autos), porém, até Maio de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso.
2. Em Março de 2008, XXX (XXX) teve um encontro com a 1.ª arguida A (XXX) no domicílio da 2.ª arguida B (XXX) na Cidade de Yangjiang, durante o qual, a 1.ª arguida A (XXX) disse que podia arranjar para XXX (XXX) um emprego como empregada de limpeza num hotel. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou à 1.ª arguida A (XXX) uma quantia de RMB¥10.000,00 através da transferência bancária, porém, até Maio de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso.
3. Em Abril de 2009, XXX (XXX) ouviu a 2.ª arguida B (XXX) dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em hotéis de Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥27.000,00. Tendo acreditado nas duas arguidas, XXX (XXX) pagou, em 19 de Abril de 2009, uma quantia de RMB¥27.000,00 no domicílio da 1.ª arguida A (XXX) e esta emitiu a XXX (XXX) um recibo (vide fls. 92 dos autos) em 15 de Maio de 2009, porém, até Maio de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso, o que fez com que XXX (XXX) sofresse um prejuízo de RMB¥27.000,00, equivalente a MOP$31.552,20, à taxa média de câmbio RMB para pataca de 1.1686 naquela altura (vide fls. 390 dos autos);
4. Em Julho de 2007, XXX (XXX) teve um encontro com a 2.ª arguida B (XXX) no seu domicílio na Cidade de Yangjiang, durante o qual, a 2.ª arguida B (XXX) disse que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em hotéis de Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥27.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas, e posteriormente, através da sua apresentação, mais de 10 parentes e amigos de XXX (XXX) também pediram à 2.ª arguida B (XXX) para procurar emprego. XXX (XXX) pagou, duas vezes, a quantia de RMB¥43.000,00 e a quantia de RMB¥95.000,00 à 2.ª arguida B (XXX),como a sua despesa e as despesas dos seus parentes e amigos para tratar as referidas formalidades (vide fls. 98 e 99 dos autos), das quais, inclui a quantia de RMB¥27.000,00 por si paga, porém, até Maio de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso, o que fez com que F (XXX) sofresse um prejuízo de RMB¥27.000,00, equivalente a MOP$28.590,30, à taxa média de câmbio RMB para pataca de 1.0589 naquela altura (vide fls. 390 dos autos);
5. Em Fevereiro de 2008, quando XXX (XXX) teve um encontro com a 2.ª arguida B (XXX), esta disse-lhe que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em hotéis de Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥20.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em Agosto de 2008, uma quantia de RMB¥20.000,00 à 2.ª arguida B (XXX) para que esta entregasse-a à 1.ª arguida A (XXX). Posteriormente, não tendo havido qualquer notícia sobre isso, XXX (XXX) perguntou várias vezes à 2.ª arguida sobre o assunto e as duas arguidas chegaram a restituir, em Novembro de 2009, a quantia de RMB¥5.000,00 a XXX (XXX) e emitiram-lhe um recibo (vide fls. 167 dos autos).
6. Em Fevereiro de 2009, XXX (XXX) ouviu a 2.ª arguida B (XXX) dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥9.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em 10 de Fevereiro de 2009, uma quantia de RMB¥4.000,00 à 2.ª arguida B (XXX) (vide fls. 194 dos autos), porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia.
7. Num encontro realizado em meados do ano de 2008, XXX (XXX) ouviu a 2.ª arguida B (XXX) dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥12.000,00. Acreditando nas duas arguidas, XXX (XXX) chegou a dizer esta notícia aos seus parentes e amigos e pagou, em representação dos seus seis parentes e amigos, uma quantia total de RMB¥65.000,00 à 2.ª arguida B (XXX) (vide fls. 200 dos autos), da qual inclui a quantia de RMB¥12.000,00 por si paga, porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso.
8. Em Abril de 2009, XXX (XXX) ouviu seu amigo dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em hotéis de Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥10.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em 16 de Abril de 2009, uma quantia de RMB¥10.000,00 à 1.ª arguida A (XXX) num restaurante chinês em Gongbei (vide fls. 205 dos autos), porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso.
9. Em Novembro de 2008, XXX (XXX) ouviu seu amigo dizer que a 2.ª arguida B (XXX) podia arranjar emprego em hotéis de Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥9.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em 30 de Novembro de 2008, uma quantia de RMB¥9.000,00 à 2.ª arguida B (XXX) (vide fls. 210 dos autos), porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia.
10. Num encontro realizado no início do ano de 2008, XXX (XXX) ouviu a 2.ª arguida B (XXX) dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥5.000,00 a RMB¥12.000,00. Acreditando nas duas arguidas, XXX (XXX) disse esta notícia aos seus parentes e amigos e pagou respectivamente a quantia de RMB¥24.000,00 e a quantia de RMB¥15.000,00 à 2.ª arguida B (XXX), como sua despesa e das despesas dos outros 4 indivíduos para tratar as referidas formalidades, das quais inclui a quantia de RMB¥5.000,00 por si paga, porém, até Outubro de 2009, ainda não houve qualquer notícia. Depois de perguntar várias vezes à 2.ª arguida B (XXX) sobre o assunto, a 2.ª arguida B (XXX) chegou a restituir uma quantia de RMB¥5.000,00 a um dos requerentes e emitiu a XXX (XXX) um recibo de RMB¥34.000,00 (vide fls. 227 dos autos). Contudo, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia.
11. Em Outubro de 2008, XXX (XXX) teve um encontro com a 2.ª arguida B (XXX) e a 1.ª arguida A (XXX) na Cidade de Yangjiang, durante o qual, a 1.ª arguida A (XXX) disse que podia arranjar emprego em Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥18.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em 30 de Novembro do mesmo ano, uma quantia de RMB¥18.000,00 à 2.ª arguida B (XXX) (vide fls. 238 dos autos), porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia.
12. Em Setembro de 2007, XX (XX) ouviu a 2.ª arguida B (XXX) dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em hotéis de Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥11.000,00. XX (XX) acreditou nas duas arguidas e pagou, em finais do ano de 2008, uma quantia de RMB¥22.000,00 à 2.ª arguida B (XXX) (vide fls. 244 dos autos), como despesas para tratar as formalidades de pedir seu emprego e da sua mãe em Macau, porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia.
13. Em Março de 2009, XXX (XXX) ouviu seu amigo dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥10.000,00. XXX (XXX) acreditou nas duas arguidas e disse esta notícia aos seus dois parentes e amigos, e depois, os dois parentes e amigos de XXX (XXX) pediram-lhe para os ajudar a pagar as referidas despesas, por isso, em 1 de Junho de 2009, XXX (XXX) combinou com a arguida para um encontro num restaurante em Gongbei, tendo pago, durante o qual, uma quantia de RMB¥30.000,00 à 1.ª arguida A (XXX) (vide fls. 251 dos autos), da qual inclui a quantia de RMB¥10.000,00 por si paga, porém, até Junho de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso.
14. Em Maio de 2009, XXX (XXX) ouviu a 2.ª arguida XXX (XXX) dizer que a 1.ª arguida A (XXX) podia arranjar emprego em Macau para residentes do interior da China, cuja despesa foi de RMB¥22.000,00. Acreditando nas duas arguidas, XXX (XXX) chegou a pedir emprego em representação do seu sobrinho no interior da China e pagou, em nome deste, uma quantia de RMB¥22.000,00 à 1.ª arguida A (XXX) como despesa para o pedido de emprego, porém, posteriormente, não houve qualquer notícia sobre isso, e depois de perguntar várias vezes à arguida sobre o assunto, a arguida chegou a emitir um recibo a XXX (XXX) em 21 de Março de 2010 (vide fls. 348 dos autos), porém, até Julho de 2010, ainda não houve qualquer notícia sobre isso.
6.
Recebendo o emolumento da ofendida, 1ª arguida A (XXX) não procedeu a qualquer formalidade a fim de pedir para trabalhar em Macau por esta, mas se apropriou das quantias dadas pelos respectivos ofendidos.
7.
1ª arguida A (XXX) agiu livre, voluntaria e conscientemente ao praticar as condutas acima referidas. Bem sabendo que não era capaz de tratar documentos de trabalho em Macau por residente no interior da China, ainda divulgou mentiras no interior da China, dizendo que conseguia pedir para trabalhar em Macau por residentes no interior da China, de forma a fazer os ofendidos acreditarem sua capacidade e lhe pagarem dinheiro. A arguida apropriou-se das quantias recebidas, o que causa prejuízo patrimonial aos ofendidos.
8.
Bem sabendo que era proibida de entrada pelo CPSP, a 2ª arguida B (XXX) ainda agiu livre, voluntaria e conscientemente ao violar a proibição e entrou mais uma vez em Macau durante o período da proibição de entrada.
9.
As duas arguidas bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas pela lei.
***
Além disso, mais se provou:
O certificado de registo criminal mostra que a 1ª arguida A (XXX) não é delinquente primária, que foi condenada na pena de prisão de quatro meses pelo cometimento de um crime de contratação ilegal em 19/09/2011 e no processo n.º CR2-11-0251-PCS de TJB, com a sua execução suspensa por doze meses.
A 2ª arguida B (XXX) é delinquente primária em Macau”; (cfr., fls. 792 a 802).

Do direito

3. Dois são os recursos sobre os quais importa emitir pronúncia.

3.1. Mostra-se de começar pelo “recurso do despacho que decidiu alterar o teor da acta de julgamento”.

Aqui, e em síntese, diz o recorrente o que segue:

“1.a O presente recurso é interposto na sequência do despacho do M.° Juiz Presidente do Tribunal Colectivo a quo que, após ter recebido o recurso interposto pela recorrente, decidiu unilateralmente fazer a alteração da acta de julgamento e a rectificação do acórdão condenatório em face dessa alteração.
2.a O despacho recorrido violou os princípios da legalidade e da preclusão visto que havia já terminado e ficado exaurido por inteiro o poder de jurisdição do juiz, quanto mais para proferir e tentar sanar qualquer nulidade substancial incidente sobre prova proibida que contra legem foi valorada no acórdão.
3.a Pelo que o despacho recorrido incorreu numa errónea interpretação e aplicação do n.° 1 do art. 569.° do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 4.° do C.P.P., o que se invoca nos termos e para os efeitos do n.° do art. 400.° do C.P.P.
4.a Por outro lado, inexiste qualquer lacuna e mesmo que a houvesse estaria vedada a sua integração por via analógica pois que o resultado da sua utilização teria por efeito piorar ou degradar a posição processual da aqui recorrente, como que convalidando um meio de prova proibido que foi utilizado e valorado no acórdão, isto além de que o regime da própria “correcção da sentença” (361.° do C.P.P.) dispõe que a eliminação da incorrecção estará vedada quando tal eliminação importe modificação essencial, o que é manifestamente o caso.
5.a O despacho recorrido incorreu, assim, numa errónea interpretação e aplicação dos artigos 4.° e 361.° do C.P.P., nos termos acima explicitados, o que se invoca nos termos e para os efeitos do n.° do art. 400.° do C.P.P.
6.a Ainda por outro lado, in casu não existe – visto que a audiência não foi agravada – qualquer outro referencial ou repositório para se saber o que possa ter, segundo as normas do C.P.P., ocorrido ou o que, simetricamente, não haja ocorrido na mesma audiência de julgamento.
7.a Ora, não se mostrando a acta devidamente elaborada antes do acórdão, forçoso é ter de considerar-se, por respeito ao art. 89.° do C.P.P. e ao art. 29.° da Lei Básica, que inexistiu a leitura das declarações da 2.a arguida prestadas no M.P., não sendo permitido”; (cfr., fls. 720 a 745).

Que dizer?

Pois bem, a questão é a seguinte.

– no acórdão com o qual se condenou a arguida ora recorrente, consignou-se que as declarações pela 2ª arguida (B) prestadas em sede de inquérito e lidas em audiência contribuíram para a convicção do Tribunal na decisão da matéria de facto.

– no recurso que deste mesmo acórdão interpôs a (1ª) arguida A, ora recorrente, afirma a mesma que o Tribunal incorreu em “valoração de prova proibida”, uma vez que ponderou tais declarações da 2ª arguida sem que a sua leitura em audiência constasse da respectiva acta de julgamento.

– conclusos os autos ao Mmo Juiz Presidente, exarou o mesmo o seguinte despacho:

“Através do trabalho diário do Tribunal, o signatário tomou conhecimento do recurso interposto pela 1ª arguida nos autos A (XXX), com fundamento de que na audiência de julgamento, o Tribunal Colectivo não procedeu à leitura do auto de interrogatório judicial prestado pela arguida B (XXX) no Ministério Público e o tomou em consideração para servir de prova no sentido de fazer juízo dos factos em causa.
*
Compulsados os registos existentes nos autos, elaborados na audiência de julgamento realizada no dia 23 de Maio de 2012, deles não consta a acta de leitura do auto de interrogatório judicial prestado pela arguida B (XXX) no Ministério Público.
Segundo a memória do signatário, é um lapso por omissão a não menção nos respectivos registos do dito acto de interrogatório prestado pela arguida B (XXX) no Ministério Público, que já foi lido na audiência de julgamento. Contudo, em termo objectivo, tendo o tribunal, durante a audiência de julgamento nesse dia, já efectivamente procedido à leitura do dito auto de interrogatório judicial prestado pela arguida B (XXX) no Ministério Público, esse acto de leitura pode ser provado por parte do Tribunal, do Ministério Público e dos dois defensores das arguidos que intervieram na audiência de julgamento.
*
Segundo o acórdão, na parte da descrição relativa à apreciação de força probatória e à análise dos meios de prova, indica-se expressamente que na audiência de julgamento já foi feita a leitura do auto de interrogatório judicial prestado pela arguida no Ministério Público: “Pelo que, quanto aos factos dados por provados nos autos, o Tribunal, segundo as regras de experiência, analisou logicamente e deu como provados as declarações prestadas na audiência de julgamento pela 1ª arguida A (XXX), o auto de interrogatório judicial prestado pela 2ª arguida B (XXX) no Ministério Público que foi lido conforme a lei, os depoimentos prestados por todas as testemunhas, os autos de declaração para memória futura prestados no Juízo de Instrução Criminal pelas respectivas testemunhas e todos os documentos documentais anexos aos autos incluindo os recibos emitidos pelas duas arguidas etc., por serem provas suficientes os factos provados.” (vd. fls. 508, 4º parágrafo dos autos, e a actual sublinha foi feita pelo signatário)
Além disso, segundo os registos manuscritos feitos pelo oficial de justiça XXX (XXX) que interveio na audiência de julgamento e elaborou os registos de audiência, deles também constam expressamente os dizeres de “leitura”, “119, 120, 58 e 59”, e tudo isso corresponde às folhas de declarações feitas respectivamente pela 2ª arguida no Ministério Público e na Polícia Judiciária, e o referido oficial de justiça, na resposta à inquirição feita pelo signatário, afirmou também que na altura da audiência, o Tribunal efectivamente procedeu à leitura do auto de interrogatório prestado pela 2ª arguida B (XXX) no Ministério Público.
Salvo o devido respeito ao diferente entendimento da lei, de acordo com o registo constante de fls. 508, 4º parágrafo dos autos que se procedeu à leitura do auto de interrogatório prestado pela 2ª arguida no Ministério Público, quanto à omissão da medida de leitura do auto interrogatório na audiência de julgamento, a sua rectificação não causará à alteração substancial da decisão.
Pelo que, nos termos do art.º 361º, n.º4 do Código de Processo Penal, tendo em consideração que a acta de audiência foi assinada pelo signatário, com natureza de procedimento de registo em audiência de julgamento, determina indicar a fls. 494, 1º parágrafo dos autos, abaixo do asterisco, os seguintes:
De acordo com o pedido da 2ª arguida B (XXX) feito a fls.127 dos autos e nos termos do art.º 338º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, o meritíssimo presidente do Tribunal Colectivo procedeu à leitura do auto de interrogatório prestado pela 2ª arguida no Ministério Público, a fls. 119 a 120 dos autos incluindo o auto de interrogatório prestado e confirmada pela mesma arguida na Polícia Judiciária, a fls. 58 a 59v dos autos.
Foram fotocopiados os registos manuscritos do oficial de justiça XXX (XXX) e juntos aos autos.
Do presente despacho, dê conhecimento aos dois juízes que constituem o tribunal colectivo e ao Ministério Público”.

– e, o presente recurso tem como objecto o transcrito despacho, afirmando, em síntese, a recorrente, que não podia o Tribunal decidir como decidiu.

Ora, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, cremos que carece a recorrente de razão.

É verdade que a leitura de declarações antes prestadas em audiência de julgamento tem de ficar registada em acta sob pena de nulidade; (cfr., art. 337°, n.° 8 do C.P.P.M.).

Todavia, sendo uma “nulidade sanável”, já que não consta do elenco do art. 106° do mesmo C.P.P.M., (onde se consagram, de forma taxativa, as “nulidades insanáveis”), não vemos como concluir que não pudesse o Tribunal a quo saná-la.

Tenha-se aliás em conta que a alegada nulidade por falta de registo na acta de julgamento da dita leitura tem de ser tempestivamente arguida sob pena de ficar sanada; (cfr., neste sentido Ac. R.P. de 19.06.2002, Proc. n.° 00034856).

E, se por falta de arguição fica a nulidade em questão sanada, não se mostra de considerar que a mesma não pudesse ser sanada pelo Tribunal que a cometeu.

Atente-se que o que em causa está é a mera “rectificação de uma omissão da acta” no sentido de nela se fazer constar o registo da prática de um acto processual, (que, efectivamente, ocorreu), – já que, oficiosamente, solicitou-se ao T.J.B. o registo da gravação do julgamento, nela constando a leitura das declarações em questão – e não a alteração do decidido no Acórdão prolatado, não nos parecendo assim adequado falar-se de “violação do princípio da legalidade e da preclusão por extinção do poder de jurisdição”; (cfr., concl. 2ª).

Por sua vez, não se pode olvidar que também nos termos do art. 90°, n.° 3 do C.P.P.M., pode o Tribunal rectificar a acta em caso de desconformidade entre o teor do ditado e o ocorrido.

Assim, e confirmando-se que foram as declarações em causa efectivamente lidas na audiência de julgamento, e, assim, constituindo a omissão de registo de tal acto processual um mero “lapso”, motivos não há para se julgar procedente o presente recurso.

3.2. Do “recurso do Acórdão”.

Aqui, coloca a arguida as questões seguintes:
- ilegitimidade do Ministério Público para a promoção do processo em relação aos 13 crimes de “burla simples” por extemporaneidade das respectivas queixas;
- valoração de prova proibida;
- incorrecta aplicação do art. 211° do C.P.M.;
- contradição insanável;
- qualificação da matéria de facto como a prática de um crime continuado; e,
- medida da pena.

Vejamos se tem a recorrente razão.

–– Quanto à (i)legitimidade do Ministério Público.

Diz o art. 220° do C.P.M. que “o procedimento penal pelos crimes previstos nos n°s 1 e 2 do art. 211° … depende de queixa”.

Por sua vez, prescreve o art. 107° do mesmo Código que:

“1. O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.

2. O não exercício tempestivo da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não possam ser perseguidos sem queixa.

3. Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles”.

Sendo o crime de “burla simples” punido nos termos do art. 211°, n.° 1, e atento o prazo de “6 meses” previsto no art. 107°, n.° 1, entende a ora recorrente que a queixa pelos seus (13) ofendidos apresentada ocorreu muito para além de tal prazo.

Entende também a recorrente que o início do dito prazo deve coincidir com o momento em que os ofendidos lhe entregaram o dinheiro, ou, na pior das hipóteses, 3 meses depois, dado que a mesma prometera que os mesmos poderiam começar a trabalhar após tal período de tempo, 3 meses; (cfr., facto provado n.° 3).

Não se mostra de acompanhar o assim entendido.

Com a entrega do dinheiro, ocorre o “prejuízo” dos ofendidos, e “consuma-se” o crime de “burla”.

Com efeito, “o crime de burla é um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo, mas também de resultado, pois apenas se consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo, consubstanciada num prejuízo efectivo”; (cfr., v.g., o Ac. do T. Rel. Guimarães, de 06.12.2010, Proc. n.° 1257/05 in, “www.dgsi.pt”).

Porém, e como se pode ler no transcrito art. 107°, o prazo para a queixa apenas começa a contar da data em que o titular “tiver tido conhecimento do facto” (e dos seus autores), isto é, a partir do momento em que os ofendidos tomem conhecimento que foram enganados e que eram, ou tinham sido, “vítimas” do crime de burla, e não, a partir da sua prática; (nesse sentido, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 18.04.2012, Proc. n.° 148/07 in “www.dgsi.pt”).

Assim, e provado não estando que as ofendidas tiveram “conhecimento do facto” (de terem sido “burladas”) há mais de 6 meses a contar das datas das suas respectivas queixas, (e certo sendo que à recorrente cabia o ónus de tal prova, não sendo também, e de qualquer forma, este o momento para se averiguar de tal “circunstância”), à vista está a solução.

Continuemos.

–– No que diz respeito à questão da “utilização de prova proibida”, (as declarações pela 2ª arguida prestadas em sede de Inquérito), prejudicada está face à solução a que se chegou em relação ao (2°) recurso pelo recorrente interposto do despacho que ordenou a rectificação da acta e que atrás se apreciou.

–– Quanto à “contradição insanável”.

Pois bem, ocorre este vício quando: “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g. no Acórdão deste T.S.I. de 24.05.2012, Proc. n° 179/2012).

E, para fundamentar tal maleita, diz a recorrente que:

“Atentando-se nos elementos constantes dos autos e da matéria de facto assente, retira-se que a recorrente não estava habilitada nem tinha a capacidade para prestar ou providenciar pela obtenção de trabalho em Macau e dos respectivos títulos de permanência para trabalhadores não residentes
Por outro lado, também se retira que a recorrente conseguiu diligenciar e obter que os dois filhos da 2.a arguida arranjassem emprego no Landmark - cfr. Ponto III e C, 1.° parágrafo, do acórdão - e que logrou obter tais colocações fazendo intercessão junto do Departamento de Recursos Humanos do Landmark.
Ora, ambos os factos tidos por assentes colidem e se excluem mutuamente, não podendo ser ambos verdade, pois, ou bem que a recorrente tinha tal aptidão para, mediante a sua obrigação de meios traduzida na sua intermediação ou intercessão, conseguir obter trabalho e respectivo visto ou, pelo contrário, não tinha, nunca teve e sábia que não tinha tal aptidão”.

Ora, sem demoras, é evidente a inexistência de qualquer contradição, (muito menos, insanável), sendo de se dar aqui como reproduzido o entendimento explanado no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto.

De facto, para além do demais, e como bem se nota, “a possível existência de um caso de "sucesso" não teria o condão de "per se", afastar o sucedido em relação aos restantes, ao que acresce que, bem vistas as coisas, não será de excluir que o apontado caso, até por que referente a familiares da 2a arguida, possa ter sido utilizado como "isco ", como "engodo" para os restantes visados…”.

–– Quanto à incorrecta “aplicação do art. 211°”, também aqui improcede o recurso.

Nos termos do art. 211° do C.P.M.:

“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. A tentativa é punível.

3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:

a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;

b) O agente fizer da burla modo de vida; ou

c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.

E como já decidiu este T.S.I. “a construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo).
Impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro”; (cfr., Ac. de 05.07.2012, Proc. n.° 464/2012).

Adequado nos parecendo este entendimento, basta ler a “matéria de facto dada como provada”, nomeadamente, a referenciada com os n°s 1 a 3 e 7 para se constatar que presentes estão todos os elementos típicos do (s) crime(s) em questão.

–– Pede também a recorrente que se considere a sua conduta uma “continuação criminosa”.

Pois bem, é sabido que “a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores”; (cfr. v.g., o Ac. de Rel. Porto de 25.07.1986, in B.M.J. n.° 358 - 267).

E nos termos do art. 29° do C.P.M.:

“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Ora sobre o crime continuado já teve este Tribunal oportunidade de afirmar que:

“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., o Acórdão de 21.07.2005, Proc. n.°135/2005, e mais recentemente, o Acórdão de 29.03.2012, Proc. n.° 828/2011).
Face ao exposto, inviável é a consideração no sentido de integrar a conduta da ora recorrente uma continuação criminosa.

De facto, o cerne do crime continuado, (o seu “traço distintivo”), está na existência de uma circunstância exterior que diminua, consideravelmente, a culpa do agente.
Na verdade, de harmonia com uma concepção normativa pura da culpa, vê-se nesta não somente uma demonstração da vontade interior, mas ainda, e também, o resultado da situação ambiente exterior.
Ora o agente, na acção penalmente relevante, é motivado não só pelo processo psico-fisiológico de motivação da vontade, mas também pelas reais circunstâncias que, a cada vez, encara.
E, assim, a questão essencial está em saber em que medida a “solicitação externa” diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
Eduardo Correia, (in “Direito Criminal”, II, pág. 211), refere-se à “disposição exterior das coisas para o facto”, da “existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilita a repetição da actividade criminosa”.
Nesta conformidade, só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, de fora, não sendo o agente o veículo, através do qual, a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.

E, como bem nota P. Pinto de Albuquerque, (in “Comentário do C.P. à luz da Constituição da República”…, pág. 162), “a diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. No caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa não há diminuição sensível da culpa. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso”.

E, não se pode também olvidar que, como refere E. Correia, (ob. cit. pág. 96), “a experiência e as leis da psicologia ensinam-nos que, em regra, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta então que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades do agente, uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência normal de vida e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação”.

No caso dos autos, é verdade que a arguida traçou um “plano”.

Porém, “a existência de uma resolução inicial que, depois, acaba por se traduzir numa execução plúrima do mesmo tipo de crime, não exclui, só por si, a possibilidade de uma efectiva pluralidade de crimes”; (cfr., Ac. do S.T.J. de 10.18.2001, Proc. n.° 01P1923).

E, ainda que tenha a ora recorrente engendrado um plano para conseguir apropriar-se de quantias monetárias, há que ter em conta que a ulterior acção concreta da mesma sobre as vítimas, convencendo-as da sua capacidade de lhes arranjar emprego, torna evidente a autonomia de cada uma das específicas actuações da arguida face a cada uma das suas vítimas, traduzindo-se, em autónomas resoluções criminosas; (neste sentido, cfr., v.g., Ac. de Rel. Porto de 02.04.1998, Proc. n.° 9610419).

Nesta conformidade, também aqui se confirma a decisão recorrida.

–– Por fim, quando à pena.

Já se viu que o crime de “burla (simples)”, (art. 211°, n.° 1) é punido com a pena de prisão até 3 anos ou multa, e o de “burla (qualificada)” do n.° 3, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Decidiu o Tribunal a quo fixar em 9 meses de prisão a pena para cada um dos 13 crimes de “burla (simples) ”, e em 2 anos e 3 meses de prisão, a pena para o crime de “burla (qualificada)” do n.° 3 do art. 211°.

Diz a recorrente que excessiva é a tal pena.

Ora, vejamos.

Na determinação da pena há que ponderar nos seus fins – art. 40° do C.P.M. – assim como nos critérios expostos no art. 65° do mesmo Código.

Teve já este T.S.I. oportunidade de dizer que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 31.05.2012, Proc. n° 391/2012).

No caso, a ora recorrente agiu com dolo directo e intenso, motivada pela simples ambição de fazer suas quantias alheias que lhe fossem entregues.

Não se pode deixar de notar também que os factos perduraram por anos, não tendo a recorrente arrepiado caminho, impondo-se assim ponderar nas necessidades de prevenção criminal.

Assim, e afastada estando a opção da pena não privativa da liberdade – art. 64° do C.P.M. – pois que esta “não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, mostra-se justo e adequado fixar-se as penas de 7 meses de prisão para cada um dos 13 crimes de “burla (simples)”, e a de 1 ano e 6 meses de prisão, para o crime de “burla (qualificada)” do n.° 3 do art. 211° do C.P.M..

Atento o disposto no art. 71° do mesmo C.P.M., quanto ao “cúmulo jurídico das penas”, tendo em conta as supra referidas penas parcelares e a de 4 meses de prisão fixada no CR2-11-0251-PCS, em causa estando assim uma moldura com um limite mínimo de 1 ano e 6 meses de prisão e com um limite máximo de 9 anos e 5 meses, e sendo também que na determinação da pena única, se deve considerar “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, afigura-se-nos justa e equilibrada a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.

Sendo tal pena em medida “superior a 3 anos”, (cfr., art. 48° do C.P.M.), afastada está a possibilidade da pretendida suspensão da sua execução.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar improcedente o recurso do despacho que determinou a correcção da acta, concedendo-se parcial provimento ao recurso do Acórdão.

Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.

Macau, aos 27 de Setembro de 2012
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng (vencido, conforme a declaração ora junta)
Tam Hio Wa

Declaração de voto ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 681/2012

Votei vencido no Acórdão hoje emitido por este Tribunal de Segunda Instância nos presentes autos de recurso penal n.o 681/2012, por se me afigurar, em síntese, que depois de proferida a decisão final sobre o mérito da causa penal subjacente, e enquanto essa decisão era susceptível de recurso ordinário, o Tribunal a quo não poderia vir a rectificar a acta da audiência então realizada, para tentar sanar a nulidade expressamente cominada no art.o 337.o, n.o 8, do Código de Processo Penal, e concretamente arguida na motivação do recurso ordinário entrementes já interposto pelo sujeito processual ali condenado.
               O primeiro juiz-adjunto,
                
                Chan Kuong Seng


Proc. 681/2012 Pág. 64

Proc. 681/2012 Pág. 65