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Processo nº 403/2012 Data: 27.09.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
Pedido civil.
Erro notório na apreciação da prova.
Responsabilidade pelo risco.



SUMÁRIO

1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

Há pois que ter em conta que não basta uma mera dúvida ou probabilidade para se afirmar que incorreu o Tribunal em “erro notório na apreciação da prova”

2. No domínio da responsabilidade civil extracontratual, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito - isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido - censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico - ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa - de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto.

E embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre (cfr., art°477°, n°2, 496° a 501° do C.C.M.).

A responsabilidade objectiva ou pelo risco pressupõe todos os requisitos da responsabilidade por factos ilícitos, com excepção da culpa e da ilicitude, ou seja, pressupõe o facto danoso e o nexo causal entre o facto e o dano.

Exige-se (também) assim uma conexão ou nexo causal entre o dano e os riscos específicos do veículo.

No domínio da responsabilidade objectiva, a causalidade resulta de a origem dos danos se localizar na zona de risco normativamente definida.
O círculo dos danos indemnizatórios é definido pelos perigos específicos inerentes ao veículo enquanto máquina usada com determinadas finalidades, mas que compreende, ainda, contingências relacionadas com o seu condutor.

Em síntese, para que os danos possam ser atribuídos ao lesante, (em termos de responsabilidade objectiva), é necessário que aqueles ocorram intercedendo com determinadas relações funcionais com o condutor ou que provenham dos riscos próprios do veículo.

3. Provado não estando o“nexo de causalidade” entre a circulação do veículo conduzido pelo arguido e a queda do motociclo de onde advieram as lesões para os demandantes, que nele circulavam, afastada está (também) qualquer “responsabilidade pelo risco”.

O relator,

______________________


Processo nº 403/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se absolver o arguido A, com os sinais dos autos, da imputada prática de 2 crimes de “ofensa a integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 1 e 3 do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, julgando-se também improcedentes os pedidos de indemnização civil pelos demandantes B e C enxertados nos autos; (cfr., fls. 203-v a 204-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados os demandantes civis recorreram.
Motivaram para, a final, e em conclusões, afirmar o que segue:

“1- Os presentes recursos são interpostos do acórdão absolutório proferido e 29 de Fevereiro de 2012, na parte que julgou improcedente, por não provado, os pedidos de indemnização civis formulados pelos recorrentes neste autos.
2- Não podem os recorrentes concordarem com a matéria-de-facto tida por provada e não provada, o raciocínio que norteou a análise dos factos bem como as conclusões a que se chegou o acórdão recorrido, porquanto, dos autos espelham elementos probatórios suficientes que, devidamente conjugados com as regras da experiência, imporiam uma decisão diametralmente oposta.
3- Com efeito, “grosso modo”, sustentou-se no seu libelo acusatório que terá havido colisão ligeira entre os 2 veículos (o ciclomotor e o automóvel pesado) e que tal colisão originou o acidente de viação. Todavia, a decisão recorrida entendeu que não tendo sido demonstrado que tenha havido colisão entre os veículos, não podia imputar ao arguido a culpa pela deflagração do acidente.
4- Os elementos probatórios colhidos nos autos, mormente as fotografias insertas a fls. 22 permitem demonstrar que:
a) Devido à largura do corpo do autocarro, esse ocupa quase a totalidade da área do pavimento da sua faixa de rodagem, quase que tangendo a linha descontínua do meio da rua;
b) Como é normal e segunda as regras de experiência, o condutor ao conduzir o autocarro fazia o seu percurso de forma a evitar aproximar-se demasiado da parede de cimento que está no meio da Rua da XX separando as faixas de rodagem de direcção oposta, e, portanto, o condutor necessariamente que circulava o autocarro próximo da linha descontínua do meio.
c) O ponto de colisão entre o ciclomotor e o autocarro pode muito bem não ter sido os pontos onde a parte esquerda do corpo do autocarro registou danos ou amolgaduras; ou seja, pode muito bem ter havido um ligeiro toque entre os veículos em causa mas sem que tal toque tenha causado danos no corpo do autocarro;
5- Se o ciclomotor ia animado de uma velocidade aproximada de 40Km/hora, e se o autocarro que vinha de trás também ia animado a uma velocidade aproximada de 40km/hora tal como refere o réu, como era possível ao autocarro ultrapassar o ciclomotor tal como aconteceu?
6- As regras da experiência comum ensinam-nos que se o condutor do autocarro entendeu que não houve colisão ou não sentiu qualquer colisão, dificilmente que o mesmo pararia o autocarro e apearia para ver o que aconteceu. O condutor do autocarro ia em serviço. Aliás, este ponto de incongruência é referido pelo Digno Procurador-Adjunto em seu despacho que, atendendo a reclamação feita, decidiu reabrir o inquérito e proceder à acusação pública contra o condutor do autocarro.
7- O “croquis” elaborado pelos agentes do Departamento de Trânsito da PSP e inserto junto aos autos fazem a representação gráfica da via em causa – a Rua XX – como sendo uma via rectilínea. Estamos perante um erro manifesto. A referida via pública é uma via tendencialmente recta, mas com ligeira tendência curvilínea. As fotografias insertas nos autos a fls. 22 e 23 demonstram bem esse aspecto. Este pormenor é importante, pois que pode por em causa a afirmação do condutor do autocarro de que nunca invadiu a faixa de rodagem do ciclomotor.
8- Todos esses aspectos, devidamente comprovados nos autos e devidamente conjugados com as regras da experiência, permitiam ao Tribunal Colectivo “a quo” alcançar uma decisão sobre a matéria-de-facto diametralmente oposta àquela que consta da decisão recorrida.
9- Mesmo que se admita por hipótese que não tivesse havido colisão entre os veículos, sempre se dirá que o condutor do autocarro violou o dever especial de condução com prudência, estatuído no n.° 2 do artigo 21.° da Lei do Trânsito Rodoviário, aprovado pela Lei n.° 3/2007, pois que não guardou a distância necessária com o veículo lateral.
10- Dos autos há prova bastante para concluir que o condutor do autocarro agiu com culpa. Decidindo diversamente, a decisão recorrida está eivada do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 400°, n.° 2, alínea b), do Código de Processo Penal de Macau, bem como violou a norma legal constante do artigo 477°, n.° 1, do Código Civil de Macau.
11- Por outro lado, o Tribunal Colectivo “a quo” entendeu que não devia haver lugar ao pagamento de indemnização pelos danos causados, a título de risco, uma vez que entendeu que havia lugar a exclusão da responsabilidade pelo risco.
12- O Tribunal Colectivo em sua decisão recorrida errou na interpretação e aplicação da norma constante do artigo 498° do CC.
13- Não se provando que o recorrente tivesse culpa na deflagração do acidente, nem se provando que o mesmo circulava em velocidade acima do limite legal, nem se provando que o lesado com o seu ciclomotor tivesse invadido a faixa de rodagem do autocarro, nem tão pouco que o acidente tenha sido causado por terceiro estranho, e, sendo claro e óbvio que o acidente não resultou de força maior estranha ao funcionamento do veículo, mas que devido à largura do corpo do autocarro que ocupava praticamente toda a área do pavimento da sua faixa de rodagem, aliado ao facto de o autocarro ter feito “ultrapassagem” ao ciclomotor, naquelas estreitas condições da via, o autocarro em causa criou um perigo que era próprio do funcionamento da “máquina” autocarro;
14- Sempre os pedidos de indemnização civis deveriam ter sido atendidos, a título de risco, não havendo, pois, causas de exclusão da responsabilidade pelo risco.
15- Decidindo diversamente, a decisão recorrida, nessa parte, violou a lei, as normas constantes dos artigos 493°, 496° e 498° do Código Civil de Macau”; (cfr., fls. 237 a 246).

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Em resposta, pede a demandada “COMPANHIA DE SEGUROS LUEN FUNG HANG S.A.R.L.” a improcedência dos recursos; (cfr., fls. 253 a 259).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Deu o Colectivo a quo como provada a seguinte factualidade:

“Em 30 de Novembro de 2008, pelas 10h15, o arguido A transitou, conduzindo o autocarro de Transmac de matrícula MN-XX-XX, pela direita faixa de rodagem da Rua da XX (da Travessa dos XX em direcção da Mercado Municipal Almirante Lacerda).
Ao mesmo tempo, B, quer dizer o 1º ofendido, circulava com o ciclomotor de matrícula CM-XXXXX, transportando a sua filha menor C (a 2ª ofendida), pelo lado direito da esquerda faixa de rodagem da mesma rua (perto do eixo da faixa).
Neste momento, o arguido descobriu através do espelho retrovisor do lado esquerdo que tal ciclomotor perdeu o controlo e que o motorista e a passageira caíram no chão. Pelo que o arguido parou o autocarro no local cerca de 10 metros à frente do da ocorrência do incidente, e saiu do autocarro para ver o lado esquerdo da sua carroçaria.
Encontrou-se fracturas das costelas n.ºs 6, 7, 8 e 10 do lado direito e contusões e escoriações nos tecidos moles da face direita e dos mãos do 1º ofendido, lesões essas precisão de 30 dias para recuperar, vide o relatório de exame de lesões e o parecer do médico-legal constantes de fls. 15 e 38 dos autos, cujos conteúdos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
Encontrou-se fracturas da fossa craniana média esquerda com hemorragia subaracnóidea traumática, a paralisia facial periférica do nervo troclear esquerdo e nervo facial direito, surdez nervosa leve da orelha direita e contusões dos pulmões. A 2ª ofendida ficou prolongadamente doente pelo incidente e precisou de 90 dia para recuperar. Tais lesões graves ameaçaram a vida da ofendida quando esta foi inicialmente submetida ao hospital, vide o relatório de exame de lesões e o parecer do médico-legal constantes de fls. 15 e 38 dos autos, cujos conteúdos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
Na altura fez sol e a superfície da via estava com boa condição e o trânsito estava fluido.
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Através da apólice de seguro n.º LFH/MFT/2008/000102, a responsabilidade de indemnização civil por prejuízos sofridos por terceiros nos acidentes de viação do veículo pesado de passageiros de matrícula MN-XX-XX foi transferida à Companhia de Seguros Luen Fung Hang, S.A.R.L, sendo o limite máximo de indemnização por acidente de 20 milhões patacas.
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O 1º requerente gastou em 30 de Novembro de 2008 nos serviços de urgência do Centro Hospitalar Conde de S. Januário 538,00 patacas em despesas com as medicinas e os tratamentos médicos.
Ao sair do hospital, o 1º requerente não tinha dinheiro suficiente para pagar tais despesas. O hospital permitiu-lhe a dívida, pelo que o 1º requerente assinou uma declaração de dívida das despesas com os cuidados médicos.
Antes da ocorrência do incidente, o 1º requerente era guarda de D Security Guards Company Limited (D護衛有限公司), com rendimento mensal de MOP$8.746,00.
Ocorrido o incidente, o 1º requerente não consegue trabalhar por pelo menos 3 meses.
Ferida, a 2ª requerida da indemnização civil aceitou tratamento médico no Centro Hospitalar Conde de S. Januário e ficou internado, dos quais resultou despesas no valor de MOP$39.955,00.
Ao sair do hospital, a 2ª requerente não tinha dinheiro suficiente para pagar tais despesas. O hospital permitiu-lhe a dívida, pelo que a mesma, representada pelo seu representante legal (isto é o 1º requerente), assinou uma declaração de dívida das despesas com os cuidados médicos.
Depois de ter saído do hospital, a 2ª requerente dirigiu-se ao Centro de Radiologia de Macau Limitada para fazer radiografia, sendo as despesas de MOP$1.160,00.
Até agora a 2ª requerente precisa de submeter-se periodicamente às consultas seguintes aos serviços de otorrinolaringologia.
O 1º requerente sofreu ofensas à sua integridade física e ainda sente dores nos locais lesados.
As lesões sofridas pela 2ª requerente uma vez ameaçaram a sua vida. Ela precisava de submeter-se a diferentes tratamentos quando se encontrava desmaiada e sentia dores.
A 2ª requerente sofreu lesão cerebral e tem sequelas como paralisia rígida dos músculos corporal e facial, e precisa de submeter-se periodicamente aos tratamentos físicos.
Após ter sido lesada a 2ª requerente, encontrou-se o grande declínio da sua memória e do desempenho académico.
*
Segundo o registo criminal, o arguido não tem antecedente criminal.
Segundo o arguido, ele é condutor de autocarro, com rendimento mensal de MOP$12.000,00, tem ao seu cargo a mulher e 4 filhos e tem como a sua habilitação literária o 6º ano da escola primária”; (cfr., fls. 210-v a 211-v).

Seguidamente, como factos não provados, consignou o mesmo Colectivo que “segundo o registo criminal, o arguido não tem antecedente criminal.
Segundo o arguido, ele é condutor de autocarro, com rendimento mensal de MOP$12.000,00, tem ao seu cargo a mulher e 4 filhos e tem como a sua habilitação literária o 6º ano da escola primária.
Não se provaram os demais factos relevantes que se encontram na acusação, no pedido da indemnização civil e na contestação e inconformados com os factos provados acima referidos, designadamente não se provaram que:
Dada a grande largura do autocarro, quando este “ultrapassou”, na faixa tomada, o supracitado ciclomotor, uma certa parte do lado esquerdo da carroçaria roçou levemente ao lado direito do ciclomotor, fazendo com que este perdesse o equilíbrio e o controlo, e que os 1º e 2ª ofendidos caíssem no chão.
As lesões supra referidas dos dois requerentes foram causadas directa e necessariamente pela colisão dos dois veículos.
O arguido bem sabia que o automóvel por ele conduzido era relativamente grande e ocupava mais espaço das vias. Mesmo que transitasse numa faixa de rodagem independente, o arguido tinha de manter cuidado em marcha, de forma a assegurar que o espaço à sua frente será suficiente para a passagem do autocarro e que nenhuma parte do automóvel ficará demasiado perto de outros veículos que circulem na outra faixa de rodagem na mesma direcção. No entanto, o arguido violou o supracitado dever de cuidado e causou o acidente de viação em causa.
O arguido praticou a conduta de forma consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Nos dois meses após a ocorrência do acidente, o 1º requerente submeteu-se ao tratamento médico tradicional chinês no interior da China para curar a fractura das costelas, sendo as despesas por vez mais de RMB$500, valor esse convertível em ‘cerca de 600 patacas. O mesmo submeteu-se ao tratamento duas vezes por semana e em total 15 vezes durante os dois meses, gastando 9.000,00 patacas em despesas.
O 1º requerente perdeu MOP$26.238,00 de rendimentos.
A 2ª requerente ficou internada no hospital por 20 dias por causa do acidente, e precisou de submeter-se aos tratamentos físicos seguintes e ser transferida a Hong Kong para o tratamento médico. A mesma foi forçada a repetir o ano académico. A sequela da paralisia facial periférica do nervo facial direito causa a paralisia rígida dos músculos faciais direitas e que o olho direito vira à direita sem controlo.
Ocorrido o acidente, a 2ª requerente não se atreveu a transitar em ciclomotor.
Tendo experienciado tal acidente, a 2ª requerente não conseguirá crescer como uma criança comum e é impossível que ela volte para o estado anterior”; (cfr., fls. 211-v a 212).

E, fundamentando esta sua decisão, consignou que: “o arguido prestou declaração na audiência, narrando o decurso da ocorrência do acidente.
Os dois requeridos da indemnização civil (sic.) narraram o decurso do acidente na audiência.
O respectivo pessoal do CPSP narrou o decurso da investigação da causa na audiência.
Segundo o relatório do exame dos dois veículos, o local danificado num veículo não corresponde ao no outro.
As testemunhas dos dois requerentes da indemnização civil alegaram as afectações causadas pelas lesões sofridas por eles para as suas vidas, saúde e estados mentais.
O relatório de exame de lesões e o parecer do médico-legal constantes de fls. 15 e 38 dos autos confirmaram as lesões do 1º requerente e a sua situação de tratamento.
O relatório de exame directo, o relatório do exame do tratamento, o parecer do médico-legal e o relatório da perícia de inteligência constantes de fls. 20, 29 a 31 e 120 a 130 dos autos confirmaram as lesões dos lesados, as situações do tratamento e as consequências das lesões.
Tendo em conta as provas desta causa, designadamente: não há provas suficientes de o veículo pesado de passageiros conduzido pelo arguido ter ultrapassado a linha e entrado na faixa ao lado; não há provas suficientes de o ciclomotor ter entrado na direita faixa da rodagem; os dois veículos transitaram na respectiva linha da rodagem à sua própria velocidade, não existiu a chamada “ultrapassagem”; além disso, os vestígios das danificações dos veículos não se corresponderam. Por isso, as provas nesta causa não são suficientes para o reconhecimento da colisão (…)”; (cfr., fls. 212-v).

Do direito

3. Vem os demandantes civis recorrer da decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou improcedente os pedidos de indemnização civil que enxertaram nos presentes autos.

Vejamos.

Como resulta da decisão de matéria de facto, provada não ficou a colisão entre o veículo (autocarro) conduzido pelo arguido e o outro, o ciclomotor, no qual seguiam os demandantes, e, assim, (ainda que estes últimos tenham sofrido um acidente que lhes causou lesões várias), provado não estando nenhum “facto ilícito e culposo” por parte do arguido, não se vê como censurar a decisão recorrida.

Dizem, essencialmente, os ora recorrentes, que o Colectivo a quo incorreu em “erro notório na apreciação da prova”, e que, seja como for, devia condenar os demandados civis com base no risco.

Ora, como repetidamente tem este T.S.I. afirmado, “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 31.05.2012, Proc. n.° 49/2012 do ora relator).

E, tendo o Colectivo a quo apreciado a prova em conformidade com o princípio ínsito no art. 114° do C.P.P.M., não vislumbrando onde, como ou em que termos tenha violado as regras sobre o valor de prova tarifada, as regras de experiência e legis artis, sentido não faz imputar-se tal vício de julgamento da matéria de facto.

Há pois que ter em conta que não basta uma mera dúvida ou probabilidade para se afirmar que incorreu o Tribunal em “erro notório na apreciação da prova”.

De facto, tal vício tem de ser “notório”, “evidente”, “ostensivo”, que “salta à vista” e que “não passa despercebido”, o que não sucede com uma mera dúvida ou possibilidade…

Quanto à “responsabilidade pelo risco”, vejamos.

No domínio da responsabilidade civil extracontratual, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito - isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido - censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico - ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa - de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto; (cfr., art° 477°, n°1, 480°, n°2, 556°, 557°, 558°, n°1, do C.C.M.).

E embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre (cfr., art°477°, n°2, 496° a 501° do C.C.M.).

Por sua vez, é também verdade que em Ac. de 21.04.2004 deste T.S.I., (Proc. n.° 247/2004), decidiu-se que “quando o autor formula o pedido de indemnização cível por acidente de viação com base na culpa do lesante, implicitamente está a formulá-lo com base no risco. Assim sendo, basta que o veículo esteja em movimento na estrada para já constituir um risco, e daí que, não estando provada a culpa do condutor, o acidente cabe logo, em princípio, na esfera do risco”; (no mesmo sentido, cfr., o Ac. de 26.05.2005, Proc. n.° 43/2005).

Todavia, tal entendimento, (que se mostra de manter) não implica uma (automática) condenação com base em “responsabilidade pelo risco” em todos os casos em que não se prova a culpa do(s) demandado(s), pois que na “responsabilidade pelo risco” também se exige um “nexo de causalidade adequada”.
Como com razão afirma José A. González, (in “Responsabilidade Civil”, pág. 146), “está hoje em dia razoavelmente assente que na responsabilidade objectiva importa apenas determinar se o dano concretamente ocorrido está (ou não) dentro do domínio dos riscos imputáveis a alguém. Ou seja, basta verificar se o dano tal como sucedeu é uma concretização possível dos riscos pelos quais alguém é responsável. O que, no fundo, está contido ainda no brocardo que essencialmente funda esta espécie de responsabilidade: uni commudum ibi incommudum.
Julga-se, apesar disso, que entre esta ideia de causalidade tão lata e abstractamente edificada e a teoria da causa adequada na sua formulação negativa não haverá muito provavelmente grandes diferenças práticas a assinalar, ao menos quanto aos resultados obtidos. Pelo que se justificará afirmar que também no que ao nexo de causalidade diz respeito a responsabilidade objectiva não manifesta dissemelhança de maior em confronto com a subjectiva”; (no mesmo sentido, ou melhor, afirmando mesmo que também a responsabilidade objectiva ou pelo risco pressupõe todos os requisitos da responsabilidade por factos ilícitos, com excepção da culpa e da ilicitude, ou seja, pressupõe o facto danoso e o nexo causal entre o facto e o dano, vd., A. Varela in “Das Obrigações em Geral”, pág. 660 e M.J. Almeida e Costa in “Direito das Obrigações”, pág. 531).

Com efeito, preceitua o art. 496°, n.° 1 do C.C.M. que “aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.

Resulta assim deste normativo a exigência de uma conexão ou nexo causal entre o dano e os riscos específicos do veículo.

Como salienta Dário M. Almeida (in “Manual dos Acidentes de Viação”, pág. 273), dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco.

No domínio da responsabilidade objectiva, a causalidade resulta de a origem dos danos se localizar na zona de risco normativamente definida.
O círculo dos danos indemnizatórios é definido pelos perigos específicos inerentes ao veículo enquanto máquina usada com determinadas finalidades, mas que compreende, ainda, contingências relacionadas com o seu condutor.

Em síntese, para que os danos possam ser atribuídos ao lesante, (em termos de responsabilidade objectiva), é necessário que aqueles ocorram intercedendo com determinadas relações funcionais com o condutor ou que provenham dos riscos próprios do veículo.

No caso dos autos, e atenta a factualidade dada como provada (e que não merece censura), inexiste “nexo de causalidade” entre a circulação do veículo conduzido pelo arguido e a queda do motociclo de onde advieram as lesões para os demandantes, que nele circulavam.

Dest’arte, também na parte em questão improcede o recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.000,00.

Macau, aos 27 de Setembro de 2012


_________________________
José Maria Dias Azedo
(Relator)

_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(com declaração de voto vencido)

_________________________
Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

















Declaração de voto ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 403/2012
Votei vencido no Acórdão hoje emitido por este Tribunal de Segunda Instância nos presentes autos de recurso penal n.o 403/2012, porquanto após examinados em global e criticamente todos os elementos constantes dos autos (e, em especial, o croqui elaborado pela Polícia de Trânsito e as fotografias coloridas tiradas ao lado esquerdo do corpo do autocarro conduzido pelo arguido (e constantes de fls. 22 a 24) que mostram bem a existência de riscas), à luz das regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, me é patente, por razões aliás convergentes às veiculadas pelo Digno Procurador-Adjunto no segundo parágrafo da sua nota preambular (tecida a fl. 68) e justificativa das razões de dedução da acusação contra o arguido em sede da decisão da reclamação hierárquica do despacho de arquivamento do inquérito, que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova quando julgou não provada a colisão entre o autocarro e o ciclomotor dos autos, pelo que entendo que deve ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento de todo o objecto do pedido cível então enxertado, por procedência do vício a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, invocado pela parte demandante civil na motivação do recurso ora sub judice.
               O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng


Proc. 403/2012 Pág. 30

Proc. 403/2012 Pág. 1