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Processo n.º 659/2012 Data do acórdão: 2012-9-27 (Autos de recurso penal)
  Assuntos:
– tráfico de droga
– atenuação especial da pena
– medida da pena

S U M Á R I O
1. Dentro de um mesmo processo penal aberto por actividades relativas à droga, é de atender, para efeitos de apuramento da responsabilidade penal sob a égide do tipo legal de tráfico de droga, à totalidade de substâncias traficadas pela pessoa arguida dentro de todo o período concreto de factos sob investigação.
2. Ainda que a arguida tenha confessado integralmente e sem reservas os factos, seja delinquente primária em Macau, e tenha condições sócio-económicas modestas, estas circunstâncias, por si só ou em conjunto, não têm a pretendida virtude de fazer atenuar especialmente a pena do seu crime de tráfico de droga nos termos gerais do art.o 66.o do Código Penal, nem fazer baixar mais, à luz dos padrões vertidos sobretudo nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do mesmo Código, a pena de prisão concretamente achada pelo tribunal recorrido dentro da moldura penal do art.o 8.o, n.o 1, da referida Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, uma vez que são muito elevadas as exigências da prevenção do crime de tráfico de droga, especialmente quando praticado por pessoa vinda do exterior de Macau e com diversos tipos de substâncias estupefacientes, em quantidades não consideradas pequenas.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 659/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: B (B)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Em 8 de Junho de 2012, foi proferido acórdão em primeira instância no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR2-12-0030-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por força do qual a arguida B, aí já melhor identificada, ficou condenada como autora material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, em 8 (oito) anos de prisão, de três crimes de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o dessa Lei, na pena de 1 (um) mês de prisão por cada, de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, p. e p. pelo art.o 15.o da mesma Lei, na pena de 1 (um) mês de prisão, de três crimes de uso de documento falsificado, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 3, da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de 7 (sete) meses de prisão por cada, de dois crimes de falsas declarações sobre a identidade, p. e p. pelo art.o 19.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, na pena de 6 (seis) meses de prisão por cada, de três crimes de reentrada ilegal, p. e p. pelo art.o 21.o da mesma Lei n.o 6/2004, na pena de 4 (quatro) meses de prisão por cada, e de um crime de falsidade de depoimento de parte ou declaração, p. e p. pelo art.o 323.o, n.o 2, do Código Penal (CP), na pena de 7 (sete) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas penas todas, na pena única de 9 (nove) anos e 9 (nove) meses de prisão (cfr. o teor desse acórdão, a fls. 345 a 371v dos presentes autos correspondentes).
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para (através da motivação apresentada a fls. 387 a 413):
– rogar a renovação da prova por alegada existência do vício de erro notório na apreciação da prova sobretudo no respeitante à pessoa que teria alugado o quarto n.o ...... do Hotel ...... em Macau e à pessoa a quem teriam pertencido verdadeiramente as substâncias estupefacientes aí encontradas, bem como no tocante a algumas circunstâncias que seriam relevantes para a determinação da medida da pena do crime de tráfico pelo qual vinha condenada em primeira instância;
– imputar à decisão condenatória a falta de indicação expressa dos fundamentos de determinação da pena, ao arrepio do exigido no art.o 65.o, n.o 3, do CP, e a falta de exposição dos motivos de facto e de direito da decisão, ao contrário do exigido pelo art.o 355.o, n.o 2, do CPP;
– e assacar ao Tribunal recorrido o excesso na medida da pena referente ao crime de tráfico, porquanto o peso líquido da totalidade das substâncias estupefacientes apreendidas só ronda apenas cerca de 22 gramas, e as mesmas não são consideradas como “droga-rainha”, devendo ela obter até a atenuação especial da pena desse crime, por ela “ter confessado quase integralmente e sem reservas”, “ter mostrado arrependimento sincero durante a audiência de discussão e julgamento”, “ter sido ameaçada para o efeito e ter sido vítima de tráfico humano” e ser ainda delinquente primária.
Ao recurso respondeu o Digno Representante do Ministério Público junto do Tribunal recorrido (a fls. 415 a 426) no sentido de redução da pena da arguida do crime de tráfico para 6 anos de prisão.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta junto deste TSI parecer (a fls. 439 a 441), pugnando pela improcedência do recurso, e opinando pela oficiosa alteração da qualificação jurídico-penal dos factos provados em primeira instância, no sentido de a arguida dever ser condenada ainda como autora material de dois crimes de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.o 11.o da Lei n.o 17/2009, por factos praticados em 15 de Abril e 27 de Maio de 2011.
Notificada dessa parte do parecer do Ministério Público, veio a arguida defender (a fls. 444 a 447) que não estão preenchidos os requisitos para a alteração da qualificação jurídica dos factos, na medida em que essa alteração não corresponde a uma convolação, mas sim a uma condenação adicional em crimes diversos dos quais foi condenada em primeira instância, e que, mesmo que assim não se entenda, a qualificação jurídica sugerida no dito parecer nunca pode comprometer o princípio da proibição da reforma para pior, mesmo em relação às penas parcelares.
Feito subsequentemente o exame preliminar (em sede do qual se entendeu não poder haver renovação da prova, uma vez que conforme a acta da audiência de julgamento então realizada perante o Tribunal recorrido, a arguida já confessou os factos a ela imputados), e corridos os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento.
Cumpre, pois, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos pertinentes à solução do recurso:
– 1) O acórdão recorrido encontra-se redigido em versão bilingue, com concreta enumeração dos factos tidos por provados, seguida das duas frases seguintes “Factos não provados:// Nada a salientar uma vez que ficaram provados todos os factos relevantes da acusação”, para além de conter a transcrição de todas as normas incriminatórias em causa e as seguintes passagens: “Na determinação da pena concreta, ao abrigo do disposto no artigo 65o do CP, atender-se-á à culpa do agente e às exigências da prevenção criminal, tendo em conta o grau de ilicitude, o modo de execução, gravidade das consequências, o grau da violação dos deveres impostos, intensidade do dolo, os sentimentos manifestados, a motivação da arguida, suas condições pessoais e económicas, comportamento anterior e posterior, e a quantidade de estupefacientes na sua posse, e demais circunstancialismo apurado, pelo que se tem por ajustada uma pena oito (8) anos de prisão para o crime de tráfico ilícito de estupefacientes ...”.
– 2) No mesmo acórdão, deu-se por provado nomeadamente o seguinte:
  – no dia 15 de Abril de 2011, por volta das 05:30 horas, os guardas da Polícia de Segurança Pública (PSP) encontraram na mala que a arguida trazia, uma caixa metálica que continha uma substância cristalizada de cor branca com peso líquido de 0,979 grama, com Ketamina, o que tinha sido adquirido pela arguida para consumo próprio e também para fornecimento e venda a terceiros;
  – no dia 27 de Maio de 2011, os guardas encontraram na mala que a arguida trazia, um pacote de substância cristalizada de cor branca com peso líquido de 1,092 grama, com Ketamina, e um outro pacote de substância cristalizada de cor branca com peso líquido de 0,432 grama, com Metanfetamina, e ainda dois comprimidos de cor verde com peso líquido total de 0,374 grama, com Nimetazepam, estupefacientes esses que tinham sido adquiridos pela arguida para consumo próprio e para fornecimento e venda a terceiros;
  – em função do exercício das actividades relacionadas com droga, a arguida alugou o quarto n.o ...... do Hotel ...... com nome alheio, bem como depositou os estupefacientes dentro do quarto, tais como no cofre e nas mesinhas de cabeceira, etc., no intuito de vender ou fornecer a terceiros a qualquer momento;
  – no dia 3 de Junho de 2011, por volta das 04:00 horas, nas proximidades do Hotel ......, a arguida foi interceptada por guardas da PSP, os quais encontraram na posse dela três pacotes de substância cristalizada de cor branca com 1,089 gramas líquidos de Metanfetamina, dois pacotes de pó branco com 1,707 gramas líquidos de Ketamina, e 14 comprimidos de cor vermelha com 0,205 grama líquido de Metanfetamina, estupefacientes esses que tinham sido adquiridos pela arguida para consumo próprio e também para fornecimento e venda a terceiros; seguidamente, os guardas deslocaram-se ao dito quarto de hotel para proceder à busca, e encontraram aí 3,926 gramas líquidos de Ketamina, 4,610 gramas líquidos de Ketamina, 3,361 gramas líquidos de Metanfetamina, 3,468 gramas líquidos de Metanfetamina, 0,249 grama líquido de Metanfetamina, 1,509 gramas líquidos de Cocaína, 56 comprimidos com peso líquido total de 10,337 gramas que continham Nimetazepam, 0,105 grama líquido de Metanfetamina, um líquido de cor castanha que se encontrava dentro de seis frascos, no volume de 69 ml, que continha Cocaína, Metanfetamina, Ketamina e Nimetazepam, e um líquido que se encontrava dentro de garrafas de plástico transparentes com tampa azul e com tampa branca, respectivamente no volume de 185 ml e 120 ml, que continha Metanfetamina e Anfetamina, estupefacientes esses que a arguida depositava no dito quarto de hotel para fornecer e vender a terceiros em outras ocasiões;
  – a arguida é empregada de mesa e aufere mensalmente cerca de mil patacas, tem como habilitações académicas o ensino primário e tem a mãe a seu cargo;
  – conforme o certificado de registo criminal, a arguida é primária.
– 3) Segundo a identificação da arguida constante do intróito do acórdão recorrido, ela não é cidadã de Macau.
– 4) Conforme o teor da acta da audiência então realizada no Tribunal recorrido (na parte concretamente constante de fl. 331v), a arguida confessou integralmente e sem reservas os factos a ela imputados.
– 5) A arguida não chegou a reclamar da decisão tomada pelo relator em sede de exame preliminar dos presentes autos recursórios acerca da questão de renovação da prova.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros e ante os elementos referidos na parte II do presente aresto de recurso, é de conhecer agora da questão de falta de fundamentação, e eventualmente também da questão da medida da pena, conforme o objecto do recurso delimitado na motivação da arguida, sem prejuízo da eventual necessidade de tratar da questão suscitada no parecer do Ministério Público a nível de alteração da qualificação jurídico-penal dos factos.
Pois bem, perante o teor do acórdão recorrido, e havendo que afastar qualquer perspectiva maximalista na matéria em questão, é de entender que o Tribunal seu autor já cumpriu o dever de fundamentação exigido no n.o 2 do art.o 355.o do CPP, e que esse acórdão não comprometeu o disposto no art.o 65.o, n.o 3, do CP.
Assim sendo, e antes de tratar da questão da medida da pena posta finalmente pela arguida, há que decidir da nova qualificação jurídica dos factos sugerida pela Digna Procuradora-Adjunta.
A este propósito, afigura-se a este Tribunal ad quem que dentro de um mesmo processo penal aberto por actividades relativas à droga, é de atender, para efeitos de apuramento da responsabilidade penal sob a égide do tipo legal de tráfico de droga, à totalidade de substâncias traficadas pela pessoa arguida dentro de todo o período concreto de factos sob investigação, pelo que no caso dos autos, se deve considerar que a arguida só praticou um crime de tráfico de estupefacientes do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009.
Resta conhecer da questão de excesso, ou não, na medida da pena desse crime.
Na óptica do presente Tribunal de recurso, ainda que a arguida tenha confessado integralmente e sem reservas os factos, seja delinquente primária em Macau, e tenha condições sócio-económicas modestas, estas circunstâncias, por si só ou em conjunto, não têm a pretendida virtude de fazer atenuar especialmente a pena do crime de tráfico de droga nos termos gerais do art.o 66.o do CP, nem fazer baixar mais, à luz dos padrões vertidos sobretudo nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, a pena de oito anos de prisão concretamente achada pelo Tribunal recorrido dentro da moldura penal do art.o 8.o, n.o 1, da referida Lei n.o 17/2009, uma vez que são muito elevadas as exigências da prevenção do crime de tráfico de droga, especialmente quando praticado por pessoa vinda do exterior de Macau e com diversos tipos de substâncias estupefacientes, em quantidades não consideradas pequenas.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela arguida recorrente, com seis UC de taxa de justiça, e duas mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa, a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 27 de Setembro de 2012.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
(Vencido. Considero que se devia reduzir a pena de 8 anos de prisão imposta pelo crime de “tráfico”, que se me afigura excessiva, face à moldura legal aplicável – 3 a 15 anos de prisão – e à quantidade e natureza de estupefaciente, dando aqui também como reproduzida a declaração de voto que anexei ao Ac. de 31.03.2011, Proc. n.° 81/2011).



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