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Processo n.º 52/2012 Data do acórdão: 2012-10-18 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– crime tentado de falsificação de documento de especial valor
– assento de nascimento de bebé recém-nascido
– paternidade falsa
S U M Á R I O
1. Não há vício de erro notório na apreciação da prova alegadamente cometido pelo tribunal a quo, se após feito o exame global e crítico de todos os elementos referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente ao tribunal ad quem que aquele tribunal, aquando do julgamento de factos, tenha violado qualquer regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou qualquer norma jurídica sobre a prova legal, ou quaisquer legis artis.
2. A arguida, ao ter declarado à Conservatória do Registo Civil uma paternidade falsa do seu bebé então recém-nascido para efeitos de feitura do assento de nascimento deste, já praticou actos de execução do crime de falsificação de documento de especial valor, sem que este crime tenha chegado a consumar-se (cfr. o art.o 21.o, n.o 1, do Código Penal), graças à decisão então tomada pela Conservatória no sentido de não fazer constar no assento de nascimento tal paternidade indicada pela arguida.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 52/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A (XXX)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 60 a 62v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-11-0067-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) que a condenou como autora material de um crime tentado de falsificação de documento de especial valor, p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea b), 245.o e 22.o, n.o 2, do vigente Código Penal (CP), na pena de cinco meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, veio a arguida A (XXX), aí já melhor identificada, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a sua absolvição do crime (com fundamento na alegada verificação do vício de erro notório na apreciação da prova referente ao dolo na prática do crime), ou, pelo menos, a não punição da sua conduta (devido à aplicabilidade da figura de desistência referida no art.o 23.o, n.o 1, do CP, ou à verificação da situação prevista no n.o 3 do art.o 22.o do CP) (cfr. a motivação apresentada a fls. 72 a 82 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 84 a 88) no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 96 a 97v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, realizou-se a audiência de julgamento, em sede da qual a arguida, representada para o efeito pelo seu Ex.mo Defensor, ficou advertida pelo relator da eventualidade de o recurso não ser conhecido na parte respeitante ao erro notório na apreciação da prova (devido à eventual falta do seu interesse em agir para invocar este vício, em virtude da sua confissão dos factos perante o Tribunal a quo).
Cumpre, pois, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
De acordo com a fundamentação fáctica do acórdão ora recorrido (redigido originalmente em chinês), ficou provado o seguinte, materialmente (com tradução ora feita para português pelo relator):
– em 20 de Fevereiro de 2006, a arguida deu à luz o bebé XXX no Centro Hospitalar Conde de São Januário;
– após nascido XXX, a arguida não forneceu ao hospital dados identificativos do pai de XXX, pelo que o hospital lhe exigiu que se deslocasse sozinha à Conservatória do Registo Civil para tratar do assento de nascimento;
– em 2 de Março de 2006, a arguida declarou à Conservatória do Registo Civil que o pai biológico do bebé XXX é XXX, residente na China, com morada na cidade de Zhuhai, [...];
– como XXX não pôde vir para Macau nem fez exibir qualquer documento de procuração, a Conservatória do Registo Civil não chegou a fazer constar do assento de nascimento do bebé os dados identificativos do pai deste tal como os declarados pela arguida;
– na verdade, XXX foi inventada ficticiamente pela arguida;
– o pai biológico de XXX é XX, que em 15 de Dezembro de 2006, reconheceu por perfilhação a relação de filiação entre ele próprio e XXX;
– a arguida, ao praticar os actos acima referidos, agiu livre, voluntária e conscientemente;
– a arguida sabia claramente que o pai biológico do bebé XXX não era XXX, e apesar disso, prestou declarações inverídicas à Conservatória do Registo Civil, com o intuito de fazer constar do processo do assento de nascimento do bebé elementos falsos sobre a paternidade;
– o intuito acima referido não se alcançou por motivo alheio à vontade própria da arguida;
– a conduta da arguida prejudicou a autenticidade e a fé pública da certidão do assento de nascimento, e afectou os interesses da Região Administrativa Especial de Macau e de terceiros;
– a arguida estava ciente de que a sua conduta era proibida e sujeita à punição pela Lei de Macau;
– no decurso da audiência de julgamento, a arguida confessou de modo franco os factos;
– segundo o certificado de registo criminal, a arguida é delinquente primária;
– a arguida declara trabalhar em Zhuhai como empregada de venda, com três mil e duzentos Renminbis de salário mensal, e tem os pais e um filho a seu cargo, e tem por habilitações académicas o ensino secundário complementar completo.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde logo, quanto ao primeiramente assacado vício de erro notório na apreciação da prova, e ainda que se admita que a recorrente, apesar da sua “confissão franca dos factos”, tenha ainda o interesse em agir para invocar o erro notório alegadamente cometido pelo Tribunal a quo na apreciação da prova atinente ao dolo da prática do crime em questão, o presente Tribunal ad quem terá de entender que após feito o exame global e crítico de todos os elementos referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente que o Tribunal a quo, aquando do julgamento de factos, tenha violado qualquer regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou qualquer norma jurídica sobre a prova legal, ou quaisquer legis artis, pelo que não deixará de naufragar o recurso da arguida nessa primeira parte.
E agora a propósito da tese da arguida de verificação da desistência a que alude o art.o 23.o, n.o 1, do CP ou até da situação de não punibilidade da tentativa a que se refere o art.o 22.o, n.o 3, do CP, a razão não se encontra no lado dela, porquanto a factualidade então descrita como provada não se enquadra nem numa nem noutra.
De facto, é correcta a condenação, tal como decidida pelo Tribunal recorrido, da arguida como autora material de um crime tentado de falsificação de documento de especial valor, uma vez que ela, ao declarar à Conservatória do Registo Civil uma paternidade falsa do seu bebé então recém-nascido para efeitos de feitura do assento de nascimento deste, já praticou materialmente actos de execução do crime de falsificação de documento de especial valor (in casu, o assento de nascimento do bebé), sem que este crime tenha chegado a consumar-se (cfr. o art.o 21.o, n.o 1, do CP) (porquanto a Conservatória decidiu em não fazer constar no assento de nascimento tal paternidade indicada pela arguida), sendo certo que da factualidade descrita como provada no acórdão ora posto em crise, nem resulta alguma referência sobre a eventual desistência, por parte da arguida, do prosseguimento da execução do crime ou sobre algum acto seu de impedimento da consumação do crime, pelo que não se verifica a alegada desistência voluntária do crime de que se fala o art.o 23.o, n.o 1, do CP.
Ademais, também há que cair por terra a tese de aplicabilidade do disposto no n.o 3 do art.o 22.o do CP, precisamente porque a prestação de declarações pela mãe biológica de um bebé recém-nascido sobre a identidade do pai biológico deste é um meio apto para fazer lavrar o assento de nascimento do mesmo, por um lado, e, por outro, no caso existe claramente o objecto do crime, qual seja, o assento de nascimento do bebé.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pela arguida, com seis UC de taxa de justiça.
Macau, 18 de Outubro de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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