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Processo n.º 568/2012 Data do acórdão: 2012-10-4 (Autos de recurso penal)
  Assuntos:
– tráfico de droga
– punibilidade da tentativa de crime impossível
– inexistência do objecto do crime
– medida da pena

S U M Á R I O

1. Segundo a matéria fáctica dada por assente no acórdão impugnado, a 2.ª arguida, ao receber a bagagem entregue pelo 1.o arguido, essa bagagem já não continha a droga inicialmente visada, pelo que a arguida nunca poderia ter consumado o crime de tráfico de droga do art.o 8.o da Lei n.o 17/2009.
2. Entretanto, a conduta dolosa dela em receber tal bagagem, por ela tida como contentora de grande quantidade de Heroína inicialmente visada para ser entregue por ela depois a outrem – e enquanto a falta dessa droga no interior da bagagem (i.e., a inexistência do objecto para a consumação do crime de tráfico de droga) não era reconhecível como evidente pela generalidade das pessoas normais e razoáveis colocadas na situação concreta dela – deve ser punida devido ao desvalor dessa acção sua (nos termos conjugados do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 e dos art.os 21.o, n.o 1, 22.o, n.os 1 e 2, do Código Penal).
3. Em sede da medida da pena, há que atender a que são muito elevadas as exigências da prevenção do crime de tráfico de droga, especialmente quando praticado por pessoa estrangeira e com grande quantidade de substâncias estupefacientes.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 568/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: A
B




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Em 11 de Maio de 2012, foi proferido acórdão em primeira instância no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR4-12-0038-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por força do qual o 1.o arguido B e a 2.a arguida A, aí já melhor identificados, ficaram condenados como co-autores materiais de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, em 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão e em 8 (oito) anos de prisão, respectivamente, tendo o 1.o arguido beneficiado do disposto no n.o 1 do art.o 18.o da mesma lei (cfr. o teor desse acórdão, a fls. 567 a 576 dos presentes autos correspondentes).
Inconformados, vieram os dois arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), rogando o 1.o arguido a diminuição da pena, ou até, a atenuação especial da pena (devido à falta de antecedentes criminais dele em Macau, à sua confissão parcial dos factos, às suas condições sócio-económicas modestas e à sua colaboração então prestada à Polícia para a descoberta da verdade, mormente a nível de identificação ou, pelo menos, localização dos “reais mentores” do crime), e imputando a 2.a arguida à decisão recorrida o erro na qualificação jurídica dos factos provados (por defender que os mesmos só configurariam, na sua própria pessoa, meros actos preparatórios do crime de tráfico de droga, e nunca a consumação (em autoria ou em co-autoria) nem qualquer tentativa deste delito, porquanto sobretudo ela não chegou a receber nenhuma droga das mãos do 1.o arguido) (cfr. as duas motivações em questão, a fls. 622 a 631 e 607 a 620, respectivamente).
Aos recursos respondeu a Digna Procuradora-Adjunta junto do Tribunal recorrido no sentido de redução da pena do 1.o arguido (para 6 anos e 3 meses de prisão), e de manutenção do julgado quanto à 2.a arguida (cfr. as respostas de fls. 634 a 636 e 637 a 640, respectivamente).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta junto deste TSI parecer (a fls. 657 a 659), pugnando materialmente também pela redução da pena do 1.o arguido, e pela improcedência do recurso da 2.a arguida.
Feito subsequentemente o exame preliminar e corridos os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento.
Cumpre, pois, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Como ponto de partida para o trabalho, é de dar por aqui integralmente reproduzido (nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 6, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal) todo o acervo dos factos já dados como provados pelo Tribunal a quo, descritos na Parte II do texto do acórdão recorrido (i.e., e concretamente, nas páginas 6 a 9 desse texto) e não impugnados pelos dois arguidos nos seus recursos, de acordo com os quais, e na sua essência:
– no dia 1 de Maio de 2011, cerca das 20:30 horas, o 1.o arguido, que acabou de chegar a Macau através do voo n.o AK56 proveniente de Kuala Lumpur da Malásia, foi interceptado pelo pessoal da Polícia Judiciária na zona de levantamento de bagagens no Aeroporto Internacional de Macau, na sequência do que foi descoberto que o arguido trouxe consigo, no interior de uma bagagem, um total de 479,64 gramas líquidos de Heroína, a ele entregue previamente naquele país por um indivíduo de identidade não apurada mas conhecida por “C”, para ser transportada a Macau e entregue depois a outro indivíduo a ser indicado por tal “C”;
– depois de detido policialmente, o arguido, em colaboração com a Polícia de Macau, entrou em contacto com tal “C” por via de SMS de telemóvel, tendo esse “C” exigido ao arguido que se deslocasse a um hotel para entregar tal bagagem a uma senhora conhecida por “D” (que veio a ser a 2.a arguida);
– a 2.a arguida, sob instrução dada por um indivíduo no Interior da China, com identidade não apurada mas conhecido por “E”, veio a Macau em 30 de Abril de 2011 para efeitos de receber a droga supra referida no dito hotel para depois levar a droga ao tal “E” no Interior da China;
– no dia 1 de Maio de 2011, às 23:00 horas e tal, a Polícia Judiciária levou o 1.o arguido ao salão do tal hotel, para proceder à entrega da droga à arguida nos termos indicados pelo “C”;
– às 23:14 horas do mesmo dia, a arguida chegou ao salão do hotel conforme a instrução dada pelo “E”, e levou, do arguido, tal bagagem (que entretanto já não continha a droga, por ter sido previamente retirada pela Polícia), na sequência do que foi interceptada pelo pessoal da Polícia Judiciária;
– os dois arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, sem autorização legal, e apesar de saberem que a sua conduta era proibida e punível por lei;
– os dois arguidos são delinquentes primários em Macau;
– o 1.o arguido declarou trabalhar como operário de construção civil, com quinhentos dólares americanos de rendimento mensal, com curso universitário completo, e com os pais a seu cargo;
– a 2.a arguida declarou trabalhar como tesoureira, com três mil renminbis de rendimento mensal, e com curso secundário elementar completo.
Outrossim, segundo a identificação dos dois arguidos constante do intróito do acórdão recorrido, eles não são residentes de Macau.
E do exame dos autos, sabe-se que:
– no acórdão recorrido, foram dados como provados todos os factos então descritos no despacho de pronúncia;
– segundo o despacho de pronúncia, o 1.o arguido terá cometido, em autoria material, de um crime consumado de tráfico de droga, p. e. p. pelos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o da Lei n.o 17/2009, e a 2.a arguida terá praticado, em autoria material, e sob forma de tentativa sob a égide do art.o 22.o, n.o 3, do Código Penal (CP), um crime de tráfico de droga do art.o 8.o, n.o 1, da dita Lei;
– o Tribunal Colectivo recorrido acabou por condenar os dois arguidos como co-autores materiais de um crime consumado de tráfico de droga do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei, tendo o 1.o arguido efectivamente beneficiado do disposto no art.o 18.o dessa Lei.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Por uma questão de método, é de conhecer primeiro do recurso da 2.a arguida, que assacou à decisão recorrida o erro de qualificação jurídico-penal dos factos provados.
No caso, atenta a matéria fáctica dada por assente no acórdão impugnado, cumpre observar que como ao receber a bagagem entregue pelo 1.o arguido no salão do hotel, a bagagem já não continha a droga inicialmente visada, a 2.a arguida nunca poderia ter consumado o crime de tráfico de droga do art.o 8.o da Lei n.o 17/2009. Nesta perspectiva, tem razão a arguida.
Contudo, ela já deve ser condenada nos termos jurídico-penais então pronunciados pelo Juízo de Instrução Criminal, porquanto a conduta dolosa dela em receber uma bagagem do 1.o arguido, por ela tida como contentora de grande quantidade de Heroína inicialmente visada para ser entregue por ela depois a outrem – e enquanto a falta dessa droga no interior da mesma bagagem (i.e., a inexistência do objecto para a consumação do crime de tráfico de droga) não era reconhecível como evidente pela generalidade das pessoas normais e razoáveis colocadas na situação concreta dela – deve ser punida devido ao desvalor dessa acção sua (nos termos conjugados do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 e dos art.os 21.o, n.o 1, 22.o, n.os 1 e 2, do CP). E como boa doutrina jurídica para a aferição do critério de punibilidade da tentativa de “crime impossível”, veja maxime o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Abril de 1994, no Processo n.o 46310, referenciado na página 242 do 1.o Volume do consabidamente conhecido CÓDIGO PENAL ANOTADO, por MANUEL LEAL-HENRIQUES e MANUEL SIMAS SANTOS.
Do exposto decorre logicamente precludida a tese de acto preparatório defendida pela arguida.
Por outro lado, é de notar também que a arguida não é co-autora de ninguém, pois da factualidade provada não resulta nenhuma referência ao eventual acordo prévio entre ela e algum outro indivíduo para prática do crime de tráfico. (E esse entendimento é também aplicável ao 1.o arguido, que também não deve ser considerado como co-autor de qualquer indivíduo na prática do crime de tráfico).
Há-de improceder, assim, parcialmente o recurso da arguida.
Cabe, agora, tratar da questão da medida da pena, por decorrência lógica da solução acima encontrada para o recurso da arguida, e também a pedido do 1.o arguido.
A este propósito, há que frisar, desde já, que a colaboração então prestada pelo 1.o arguido à Polícia na investigação do caso já foi considerada pelo Tribunal recorrido à luz do art.o 18.o da Lei n.o 17/2009.
E sobre a pretendida atenuação especial da pena nos termos gerais, a alegada confissão parcial dele dos factos nunca configura uma postura de sincero arrepedimento, por um lado, e, por outro, ainda que ele não tenha antecedentes criminais, e seja de condições sócio-económicas modestas, estas circunstâncias, por si só ou em conjunto, não têm a virtude de fazer atenuar especialmente a pena nos termos gerais do art.o 66.o do CP, nem fazer baixar mais a pena de prisão concretamente achada pelo Tribunal recorrido nos termos conjugados dos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o da Lei n.o 17/2009, uma vez que são muito elevadas as exigências da prevenção do crime de tráfico de droga, especialmente quando praticado por pessoa estrangeira e com grande quantidade de substâncias estupefacientes (pois, in casu, são 479,64 gramas líquidos de Heroína como rainha da droga).
Naufraga, deste modo, e totalmente, a pretensão do arguido posta no seu recurso, embora, tal como já se referiu acima, ele deva ser considerado como autor material (e não co-autor material) de um crime de tráfico de droga.
No que à 2.a arguida diz respeito, e sob os padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, e ponderando em especial que ela veio para Macau com o propósito de praticar o crime de tráfico de droga com grande quantidade de Heroína, e ainda que não tenha antecedentes criminais em Macau, é de aplicar-lhe 4 anos de prisão, atentas as circunstâncias fácticas apuradas, e a moldura penal finalmente aplicável à conduta criminosa dela (cfr. o art.o 18.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, conjugado com os art.os 21.o, n.o 1, e 22.o, n.os 1 e 2, e 67.o, n.o 1, alíneas a) e b), do CP).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso do 1.o arguido e julgar parcialmente provido o recurso da 2.a arguida, passando a condenar o 1.o arguido como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico p. e p. pelos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, e condenar a 2.a arguida como autora material, na forma tentada, de um crime de tráfico do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei n.o 17/2009, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Custas do recurso do 1.o arguido totalmente a cargo deste, com três UC de taxa de justiça.
Pagará a 2.a arguida a metade das custas do seu recurso, com duas UC de taxa de justiça.
Macau, 4 de Outubro de 2012.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto) (Embora subscreva a qualificação jurídica da conduta da 2ª arguida – no mesmo sentido, e peranta situação idêntica, decidiu o S.T.J, no seu Ac. de 06.11.2008, Proc. n.º 08P2501- creio que excessiva é a pena fixada, já que, no caso, e nos termos do art.º 67º do C.P.M em causa está uma pena de 6 meses a 10 anos de prisão.)



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