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Processo nº 413/2012 Data: 11.10.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crimes de “corrupção” e “abuso de poder”.
Erro notório na apreciação da prova.
Absolvição.



SUMÁRIO

1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

Não basta uma mera “possibilidade” ou “probabilidade” para se concluir que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova.

2. Tanto para o crime de corrupção para acto ilícito como para o de corrupção para acto lícito, é sempre necessário que se apure uma conexão directa entre a vantagem auferida pelo corrupto e um acto por este cometido no exercício das suas funções.

É, pois, imprescindível a “prática de um acto pelo funcionário” e a “promessa ou recebimento de dinheiro ou vantagem patrimonial”.

3. Quanto ao crime de “abuso de poder”, sendo, como é, um “crime de intenção determinada”, o mesmo reclama um “dolo específico”, pois que os seus fins ou motivos (a intenção de o agente obter para si ou terceiro, um benefício ilegítimo ou a de causar prejuízo a outra pessoa), fazem parte integrante do respectivo tipo.

4. Não padecendo a decisão da matéria de facto de qualquer dos vícios previstos no art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c), e não sendo a factualidade dada como provada bastante para se considerar preenchidos os elementos objectivos e subjectivos típicos dos crimes imputados aos arguidos, impõe-se a sua absolvição.


O relator,

______________________


Processo nº 413/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se absolver os arguidos A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N dos crimes que lhes eram imputados; (cfr., fls. 1638 a 1652).

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Inconformado, o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorreu.
Na sua motivação de recurso, produziu as conclusões seguintes:

“1. O auto de apreensão a fls. 41 demonstra que foram encontrados no gabinete da companhia O (CHINA-MACAU) CARGO o carimbo desta (a imagem do carimbo consta a fls. 175) e 6 maços de envelopes de «lai si» de P (dez por cada conjunto). Se confrontamos a imagem do carimbo com a fotografia a fls. 945 do auto de exame (a fls. 921 a 925, em que se afirmou: “encontra-se impresso em todos os envelopes de «lai si» de P o carimbo da empresa O (CHINA-MACAU) CARGO”) elaborado pelo MºPº, verificamos que o carimbo impresso nos envelopes de «lai si» é muito semelhante ao carimbo da referida companhia.
2. Nos termos das supracitadas provas documentais e do auto de exame resulta provado que os envelopes de «lai si» de P encontrados na empresa acima identificada são semelhantes, ou até idênticos àqueles apreendidos aos arguidos, semelhantes ou até idênticos também o carimbo encontrado nessa empresa e o carimbo impresso nos envelopes de «lai si» detidos pelos arguidos, daí que exista erro notório no douto acórdão a quo, que não devia ter reconhecido que os respectivos envelopes de «lai si» de P não tinham a impressão do carimbo da empresa O (CHINA-MACAU) CARGO.
3. Atentas as profissões dos arguidos M e N, caso seja comprovado que o carimbo da empresa O (CHINA-MACAU) CARGO se encontrava impresso em todos os envelopes de «lai si» de P encontrados na posse dos arguidos, será demonstrado que os dois arguidos acima mencionados (ou pelo menos o 13º arguido, dono dessa empresa), pela distribuição de «lai si», preenchem um requisito constitutivo do crime de corrupção activa, e que os 2º a 11º arguidos, ao aceitar os «lai si» preenchem um dos requisitos constitutivos do crime de corrupção passiva.
4. Tendo em conta que os 2º e 11º arguidos já aceitaram expressa e facilmente os «lai si» de Ano Novo Chinês dados pela empresa de Q, e levando em consideração que o referido conjunto de notas no valor de $420 foi encontrado na posse de todos os 2º a 11º arguidos, pode-se deduzir razoavelmente que estas 10 pessoas se enriqueceriam também com os 36 envelopes de «lai si».
5. Com observância das regras da experiência comum, numa situação normal, não é possível que os 2º a 11º arguidos receberem envelopes de «lai si» do mesmo tipo, no mesmo dia e com mesmo conjunto de notas lá dentro, nem há possibilidade de o 2º arguido B ter 18 maços de envelopes de «lai si» com o respectivo conjunto de notas (excepto se o arguido B fosse exactamente aquele que distribuiu uniformemente os «lai si»).
6. Dito por outras palavras, dentre os supracitados arguidos verificadores que beneficiaram do «lai si» de Ano Novo Chinês, uns estavam encarregados de solicitar «lai si» a diferentes empresas, e outros, de receber «lai si», o qual seria, depois, distribuído uniformemente aos seus colegas.
7. Daí que o acórdão recorrido enferme do erro notório na apreciação da prova, em virtude de ter dado como não provados os factos nos n.ºs 4, 7 e 8 da pronúncia.
8. No processo de desalfandegamento, os verificadores possuem grandes poderes, aos quais compete proceder a inspecções integral, parcial ou ordinária das mercadorias, sendo essas três inspecções bastante diferentes em termos do tempo levado, facto esse constitui o factor chave a levar em consideração pelas empresas de entrega rápida ao decidir se lhes dar ou não «lai si» de Ano Novo Chinês, e explica também por que é que a testemunha Q informou do patrão da sua empresa de que um verificador tinha solicitado «lai si» de Ano Novo Chinês, mesmo que esse funcionário não fosse conhecido, em vez de recusar presencialmente ao seu pedido ou de não comunicar a situação à sua empresa.
9. Portanto, o acórdão recorrido enferma do vício de erro notório na apreciação da prova por ter dado como não provados os factos nos n.ºs 5 e 6 da pronúncia.
10. Nos termos da parte “Convicção do Tribunal” do acórdão recorrido (a fls. 1650 e 1650v), a respectiva afirmação do Tribunal a quo equivaleu a declarar que os Registos de Reconhecimento da Pessoa constantes a fls. 262 a 267 e a fls. 774 a 777 dos autos não tinham valor com prova.
11. O Registo de Reconhecimento da Pessoa constante a fls. 262 a 267 dos autos destina-se a confirmar se a testemunha Q reconhece o 1º arguido A como o agente alfandegário que lhe solicitou «lai si»; enquanto o Registo de Reconhecimento da Pessoa constante a fls. 774 a 777 dos autos destina-se a confirmar se a testemunha R reconhece o 4º arguido D como o agente alfandegário que lhe solicitou ténis.
12. Contudo, na decisão a quo, não se viu nenhuma explicação sobre essa desconformidade dos dois Registos de Reconhecimento da Pessoa com os procedimentos legais. Mas durante a audiência de julgamento, nem os defensores dos arguidos nem o Tribunal a quo duvidaram que os respectivos Registos de Reconhecimento da Pessoa estivessem eivados de vícios.
13. Consoante os documentos a fls. 261 e 772 dos autos, o CCAC procedeu à gravação e filmagem dos referidos reconhecimentos da pessoa, estando o levantamento dos respectivos autos de reconhecimento também em conformidade com o artigo 134.º, n.º 2 do CPP, só que não se escreveu nos autos se os três auxiliares apresentavam semelhanças, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Não obstante, atendendo a que os referidos reconhecimentos da pessoa já foram gravados e filmados, mesmo que os autos destes tivessem a deficiência acima identificada, o Tribunal a quo sempre podia mostrar o respectivo vídeo de forma a apurar se os reconhecimentos efectuados pelo CCAC estavam em conformidade com a lei.
14. Por último, não há disposição legal expressa que equivalha o efeito do vício de omissão da indicação de se os três auxiliares apresentam semelhanças (inclusive de vestuário) com a pessoa a identificar ao efeito daquele estatuído no artigo 134.º, n.º 4 do CPP.
15. Por essa razão, os respectivos Registos de Reconhecimento da Pessoa podem ser apreciados na audiência como provas com valor. E o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova.
16. Caso assim não se entenda, a decisão recorrida sempre enferma do vício apontado no artigo 400.º, n.º 1 do CPP.
17. Os requisitos constitutivos do crime de abuso de poder previstos no artigo 347.º do Código Penal são: (1) O funcionário abusa de poderes ou viola deveres inerentes às suas funções; (2) Com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
18. Por outro lado, a violação de deveres refere-se também à violação dos deveres que estão relacionados com o exercício da função, e que por regra só subsistem enquanto o funcionário está em actividade. Aqui se incluem deveres funcionais específicos impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma função em particular, e deveres funcionais genéricos que se referem a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado. Integram-se aqui o dever de obediência (que tem como contrapólo o poder de direcção por parte do legítimo superior hierárquico, em objecto de serviço e com a forma legal), o dever de zelo, o dever de sigilo, o dever de isenção e o dever de lealdade, entre outros.
19. Uma diferença entre o crime de abuso de poder e o de corrupção reside em que o benefício ou prejuízo do primeiro não é a contrapartida de acto de função, mas sim a sua consequência.
20. Quer o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração, quer as instruções emitidas pelo CCAC, quer o memorando interno dos SA, manifesta que os funcionários não devem aceitar qualquer presentes ou «lai si» oferecidos por quem tenha relações de serviço público consigo ou com o seu serviço de origem.
21. O 2º arguido B e a 11ª arguida K, como verificadores na função por muitos anos, eram responsáveis pelo tratamento dos procedimentos de desalfandegamento, e sabiam perfeitamente que era uma relação de serviço público entre a empresa S e os SA. Apesar disso, conforme os factos provados, os dois arguidos sempre decidiram aceitar os 36 envelopes de «lai si». Assim se constata que os actos dos dois arguidos eram contrários às instruções supracitadas, tendo, assim, os dois violado gravemente o dever de isenção, com a intenção de retirar vantagem pecuniária dos «lai si».
22. Os 2º e 11º arguidos, no exercício das suas funções nos SA, aproveitaram os seus cargos de verificador para receber «lai si» oferecido por quem tinha relações de serviço público com eles, sendo que tal conduta dos mesmos já serve para constituir o crime de abuso de poder, sem a necessidade de apurar se os referidos verificadores vieram a criar dificuldades aquando do desalfandegamento das mercadorias das respectivas empresas (ou seja, o n.º 2 dos “Factos não provados” do acórdão recorrido, a fls. 1648v), se isso for apurado, constituir-se-á o crime de corrupção activa.
23. Dos “Factos provados” do acórdão recorrido (cfr. 1646, 1646v e 1647) resulta que todos os 2º a 11º arguidos tinham dinheiro composto pelos conjuntos de notas cada um no valor de $420, ou levado consigo, ou colocado na secretária no gabinete, ou posto na sua mala de mão.
24. Considerando que os referidos arguidos são verificadores alfandegários do mesmo departamento, atenta a atitude dos 2º e 11º arguidos expressa em recebendo “naturalmente” os «lai si» oferecidos pela empresa de Q, e tendo em consideração que os outros arguidos também aceitaram o respectivo «lai si» com o valor de $420, detecta-se que existia certo acordo entre os demais arguidos e os 2º e 11º arguidos, o qual consistia no aproveitamento dos seus cargos de verificador para obter «lai si». Porém, os arguidos tinham perfeito conhecimento de que não deviam aceitar «lai si», sob pena da violação do dever de isenção. Pelo exposto, os 2º a 11º arguidos, pela prática dos supracitados actos, violaram o dever de isenção.
25. E a intenção dos arguidos era obter benefício pecuniário ilegal, isto é, os respectivos «lai si» (os 36 envelopes de «lai si» de Ano Novo Chinês distribuídos pela empresa S e o «lai si» composto pelo respectivo conjunto de notas no valor de $420).
26. Dest´arte, os 2º a 11º arguidos praticaram, em co-autoria material, um crime de abuso de poder.
27. Sendo o «lai si» um elemento enraizado nos costumes e hábitos da China, não podemos exigir a todos os funcionários a recusar a aceitar «lai si», nem o faremos. Não obstante, exactamente devido à ocupação dos cargos públicos, e com vista ao exercício imparcial das funções públicas e em proveito da impressão que a inteira sociedade tem sobre os funcionários, quando enfrentam as pessoas com quem têm relações de serviço público, os funcionários devem recusar a praticar qualquer acto contrário aos seus deveres, ou que faça a comunidade suspeitá-los da violação de deveres inerentes às suas funções, o que se afigura como uma qualidade profissional que eles devem ter. E aqui mesmo se reside o espírito do dever de isenção previsto pelas instruções do CCAC e por lei.
28. Embora o Tribunal a quo, com base nos “Factos provados”, tenha julgado improcedente a acusação contra os referidos arguidos pela prática do crime de corrupção passiva para acto lícito, como o TSI entendeu no acórdão no processo n.º 990/2010, esta decisão não obstará a que o Tribunal superior recorra aos “Factos provados” para condenar os arguidos pela prática do crime de abuso de poder, por que a respectiva qualificação jurídica se enquadra na matéria de conhecimento de direito.
29. Face aos “Factos provados” constantes no acórdão recorrido (a fls. 1647), na parte referente à aceitação pelo 4º arguido D dos ténis oferecidos pela empresa S, este arguido violou o dever de isenção estabelecido nas instruções do CCAC e no artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
30. Nestes termos, o 4º arguido D, ao aproveitar as suas funções para retirar vantagem ilegal, cometeu o crime de abuso de poder.
31. De acordo com os “Factos provados” no acórdão recorrido (a fls. 1647), na parte relativa à aceitação pelo 6º arguido F das botas femininas oferecidas pela empresa S, este arguido violou o dever de isenção estabelecido nas instruções do CCAC e no artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
32. Assim sendo, o 6º arguido, ao aproveitar as suas funções para obter benefício ilegal, cometeu o crime de abuso de poder.
33. Por todo o exposto, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 347.º do Código Penal sobre o crime de abuso de poder, enfermando do vício resultante do erro da interpretação da lei. (sic)
34. Nos termos dos artigos 40.º, 65.º, 48.º e 71.º do Código Penal, sugerimos: condenar o 2º arguido B numa pena de prisão não inferior a 2 anos, suspensa na sua execução por um período não inferior a 2 anos; condenar os 3º, 5º e 7º a 11º arguidos em penas de prisão em medida não inferior a 9 meses, suspensa na sua execução por períodos não inferior a 1 ano e 6 meses; condenar o 4º arguido D, pela prática, em co-autoria material, dum crime, numa pena de prisão não inferior a 9 meses, e pela prática do outro crime, numa pena de prisão não inferior a 6 meses, em cúmulo jurídico, numa única pena de prisão em medida não inferior a 1 ano, suspensa na sua execução por um período não inferior a 2 anos; condenar o 6º arguido F, pela prática, em co-autoria material, dum crime, numa pena de prisão não inferior a 9 meses, e pela prática do outro crime, numa pena de prisão não inferior a 6 meses, em cúmulo jurídico, numa única pena de prisão em medida não inferior a 1 ano, suspensa na sua execução por um período não inferior a 2 anos.
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Nos termos acima expostos, o MºPº solicita ao Venerando TSI que julgue procedente o recurso vertente, e que, consequentemente, o acórdão recorrido seja declarado nulo por enfermar do vício indicado no artigo 400.º, n.º 2, alínea c) do CPP, com o reenvio do processo para novo julgamento; ou que, em alternativa, passe a condenar os 2º a 11º arguidos, pela prática, em co-autoria material, de um crime, e condenar, respectivamente, os 4º e 6º arguidos pela prática de um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 347.º do mesmo diploma legal”; (cfr., fls. 1678 a 1692 e ……).

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Após respostas dos arguidos, vieram os autos a este T.S.I.

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Analisado o douta acórdão em crise, constata-se que o mesmo é, ao longo da sua exposição e fundamentação, suficientemente claro e expresso no sentido de se não conseguir, de facto, alcançar que da prova produzida tenha resultado que os 11 primeiros arguidos tenham traçado previamente um plano ilegítimo de, durante o Ano Novo Chinês, exigirem a todas as empresas que necessitassem dos serviços de desalfandegamento de mercadorias, o pagamento de quantitativos diversos, sob o cognome de "V de arranque no trabalho", a favor de todos os verificadores alfandegários do posto, sendo que, só depois desses pagamentos procederiam ao normal desalfandegamento, sem problemas, demoras ou percalços, designadamente a demora resultante do "full chec ", não se alcançando também, nos termos do douto aresto controvertido, que os inspectores do dia (no caso, os 2 primeiros arguidos) tenham exigido aqueles "V" junto dos funcionários das empresas e correio rápido, em representação dos restantes verificadores alfandegários, estendendo-se tal falta de comprovativo à imputação de que as empresas de transportes, para assegurarem o tratamento rápido das formalidades de desalfandegamento das suas mercadorias (sobretudo durante o Ano Novo Chinês) entregassem aos verificadores os quantitativos em causa, mesmo quando não expressamente exigidos por estes e que, neste sentido, os 2 últimos arguidos tenham oferecido aos 11 primeiros, de forma voluntária, retribuições pecuniárias, com vista a desfrutarem daquelas facilidades, ocorrendo também insuficiência de prova relativamente às condutas especificamente imputadas aos 1°, 4°, 6° e 12° arguidos, relativas às exigências respectivas (par de ténis, comestíveis e outras), para o cumprimento das suas funções.
Como tem sido pacificamente entendido, o "erro notório na apreciação da prova" tem de ressaltar de forma patente e evidente, em termos de ser ostensivo que os julgadores erraram ao considerarem determinado facto como assente ou como provado, ou seja, que perante a decisão, de imediato se constate que o tribunal decidiu contra o que ficou provado ou não provado, ocorrendo esse erro quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se tirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Acresce que, nos termos do art° 114° C.P.P.M., "Salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
Os julgadores, no douto acórdão em crise, não se eximiram a expressar, concreta e especificamente a sua valoração da prova produzida e dos motivos que os levaram às conclusões que formularam, não se divisando que tenham sido dados como provados factos incompatíveis entre si", ou que se tenham retirado de tais factos conclusões logicamente inaceitáveis, não competindo a este Tribunal censurar o julgador por ter formado a sua convicção neste ou naquele sentido, quando na decisão recorrida, confirmado pelo senso comum, nada contraria as conclusões alcançadas.
No caso, quer-nos parecer que com a sua alegação, a Exma Colega junto do tribunal "a quo", pretende manifestar a sua discordância com a matéria de facto dada assente pelo tribunal, melhor dizendo, da interpretação que este faz dessa matéria, expressando a sua visão àcerca da apreciação e valoração da prova, sendo que, porém, não se vê que do teor do texto da decisão em crise, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte patente, evidente, ostensivo que o Colectivo errou ao apreciar como apreciou, sendo certo que, conforme é fácil descortinar no acórdão em causa, os julgadores tiveram a preocupação de expressar, reportando-se, inclusivé, especificamente aos diversos tipos de prova carreados para os autos, quais os motivos, quais os fundamentos em que alicerçaram a sua convicção, tratando-se, pois, de convicção que, embora pessoal, é objectivável e motivável, capaz de se impor.
Analisada, a decisão recorrida na sua globalidade, constata-se, pois ser a mesma lógica e coerente, não tendo o Tribunal decidido em contrário ao que ficou provado ou não provado, contra as regras da experiência ou em desrespeito dos ditames sobre o valor da prova vinculada ou das "legis artis", não passando a invocação do erro notório da apreciação da prova de uma mera manifestação de discordância no quadro do julgamento da matéria de facto, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame de direito.
No caso, a acusação, certamente limitada pelos elementos disponíveis, imputou aos recorridos a prática de determinados factos, de forma dedutiva e generalizante, não concretamente individualizada, imputando aos primeiros 11 consignados, juntamente com outros agentes não concretamente identificados, o facto de, em 2006, com o intuito de receberem recompensas indevidas, terem planeado exigir a todas as empresas de transportes de mercadorias e seus empregados, durante o desalfandegamento, a entrega, a cada agente, de determinada importância em dinheiro, resultando aquela consignação dos "11" do facto de serem os presentes aquando da deslocação do CCAC para o efeito, com o transporte de 36 "lai-sis" já preparados como "armadilha" que o graduado de serviço recebeu e foram entregues a uma agente que os colocou em cima de uma secretária.
O problema, em nosso critério, reside no facto de, sem prejuízo dessa aceitação, da mesma ter resultado que só depois das empresas em questão e seus empregados terem satisfeito os agentes alfandegários com as recompensas remuneratórias em questão é que os mesmos fiscalizaram as mercadorias e facilitaram a circulação respectiva.
É claro que não somos ingénuos ao ponto de não acreditar que tal se registasse, atento, designadamente, o ocorrido com os envelopes do CACC: o que releva, porém, é que não se vê que aquela prova essencial se encontre estabelecida, sendo certo que o cômputo das importâncias encontradas em poder da generalidade dos recorridos não pode, por si, relevar como consubstanciação de eventual vantagem ilícita.
Como supra se referiu, não nos consideramos ingénuos: em termos normais, não existirá justificação válida para a recepção e arrecadação do conjunto de "lai-sis" entregue, sem que se soubesse da proveniência respectiva e a que os mesmos se destinavam - simplesmente, repete-se, mesmo a partir-se do princípio que os mesmos se destinassem a ser distribuídos pelos agentes em serviço naquele dia, nada permite confirmar que, independentemente, de os envelopes se encontrarem carimbados (assunto a que vemos assistir inteira razão à Exma Colega), os mesmos haviam sido oferecidos aos agentes alfandegários como contrapartida de actos contrários aos seus deveres funcionais e se a prática de tais actos efectivamente se registou.
A questão, no fundo, resume-se ao facto de se não terem apurado, especificamente, quaisquer comportamentos ilícitos, concretamente individualizados e concretizados, consubstanciadores dos ilícitos imputados, por parte de qualquer dos arguidos que, com um mínimo de rigor e segurança, pudesse abalar a livre convicção do julgador nesse sentido.
Donde, "malgré" a doutíssima sustentação da Exma Colega junto do tribunal "a quo", não vermos como assistir-lhe razão e, daí, entendermos não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 2258 a 2262).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Deu o Colectivo do T.J.B. como provada a matéria de facto seguinte:

“Os arguidos A, B, C, D, E, F, G, H, I, J e K são verificadores alfandegários. Os ditos foram acreditados respectivamente no posto de transporte do Aeroporto Internacional de Macau, carregados de fiscalização e de verificação dos fretes a entrarem em Macau ou dos que tinham como Macau interposto, de forma a garantir fazer-se cumprimento de todos os trâmites de desalfandegamento.
O regime de turno desse posto funcionava assim: dez verificadores trabalhavam durante cada período de trabalho, sendo um subinspector alfandegário carregado de inspecção (vd. o boletim de turno do posto alfandegário no Aeroporto Internacional de Macau a fls. 565 a 568).
Os arguidos A e B eram os inspectores do dia, de categoria de subinspector alfandegário (designado correntemente por “n.º 2”).
Em Janeiro de 2006, mês em que recaiu o Ano Novo Chinês, os arguidos M e N eram respectivamente dono e subdirectora da secção de operação em aeroportos da “O CARGO (MACAU) CO., LTD”, empresa de transporte que importa e exporta mercadorias por intermediário do posto alfandegário do Aeroporto Internacional de Macau (vd. artigo apreendido n.º 35 – lista na secretária do posto alfandegário de transporte).
Essa empresa fica situada no XX GARDEN, BLOCK XX, R/C, XX, Taipa, com representações na China Interior, Macau e Taiwan. Cabe à filial de Macau transportar materiais de fabricação de calçados de Taiwan à China Interior por via do Aeroporto Internacional de Macau, para mais tarde enviar de volta os calçados acabados da China Interior a Taiwan, igualmente pelo Aeroporto Internacional de Macau.
Em 7 de Fevereiro de 2006, deu a conhecer ao director da empresa T a exigência dos “V de arranque de trabalho” por um verificador alfandegário não identificado.
Em 9 de Fevereiro do mesmo ano, após uma consulta junto do responsável da empresa, T mandou o contabilista U para preparar 36 “V” (um a mais como medida de precaução), com 100 patacas em cada um, os quais foram entregues mais tarde ao funcionário W para dar aos verificadores.
Pelas 4h30 à tarde do mesmo dia, um funcionário do Comissariado contra a Corrupção (CCAC) dirigiu-se à S para entrar em contacto com Q, que na altura estava pronto a ir ao posto alfandegário do Aeroporto Internacional de Macau.
Q tinha consigo os 36 “V de arranque de trabalho” que iam ser entregues aos verificadores alfandegários (um deles servia para efeitos preventivos) – (vd. Consentimento de prestação de interesse ilegítimo constante da fls. 7)
Consoante o que o funcionário do CCAC lhe tinha dito, Q assinalou com o carácter “W” em 7 dos envelopes dos V para efeitos de identificação (vd. a fls. 19).
Pelas 6h05 à tarde ainda do mesmo dia, Q, em acompanhamento do funcionário do CCAC X, chegou ao gabinete do posto alfandegário de transporte em causa e entregou ao arguido B, o inspector do dia no posto, os 36 “V de arranque de trabalho” que tinha preparado de antemão, dizendo, “aqui tem os‘V de arranque de trabalho’ para vocês, 36 no total”.
Logo depois, o arguido B acenou à arguida K ao seu lado para receber os 36 “V de arranque de trabalho”.
A arguida K pôs os mencionados V na secretária dela depois de os receber (vd. a foto a fls. 14).
Em seguida, por meio de uma revista, o funcionário do CCAC interceptou 36 “V de arranque de trabalho” na secretária da arguida K (7 dos quais assinalados com o carácter “W”) – (vd. o auto de apreensão a fls. 38. – o artigo n.º 9).
Feito isso, o funcionário do CCAC seguiu a revista e ampliou a busca a todo o gabinete. Descobriu na gaveta da secretária do arguido B uma sacola de papel da “XX” com 18 pilhas de envelopes de V prendidos com elástico, tendo cada pilha um envelope da P com 100 patacas/dólares de HK. De resto, todas as pilhas eram compostas por envelopes iguais e totalizavam igualmente 420 patacas/dólares de HK (só faltava uma nota de 20 patacas a 5 das 18, nos envelopes também iguais).
Além disso, o funcionário o CCAC descobriu ainda 2 pilhas de V iguais às outras que o arguido B tinha consigo. Atados com cada uma dessas duas pilhas estavam uma nota de 500 patacas, um V de envelope do Banco da China de 200 patacas (marcado com a palavra “n.º 2”), um envelope de V da P com 100 patacas.
Dentro da mala da arguida K posta na secretária dela, o funcionário descobriu uma outra pilha de “V”, com os envelopes idênticos, no valor das 420 patacas. Estava entre os envelopes um da P com 100 patacas.
Dentro da mala branca da arguida I, o funcionário descobriu uma outra pilha de “V” atada por um elástico, com os envelopes idênticos, no valor das 420 patacas. Estava entre os envelopes um da P com 100 dólares de HK.
Na algibeira do arguido H, o funcionário do CCAC descobriu uma pilha de notas somando 420 patacas/dólares de HK (sem envelope de V) - (vd. o auto de apreensão a fls. 38v – o artigo n.º 16 e o auto de inspecção a fls. 923).
Na carteira do arguido G, o funcionário do CCAC descobriu uma pilha de notas somando 420 patacas/dólares de HK (sem envelope de V), sendo uma delas de 100 dólares de HK - (vd. o auto de apreensão a fls. 39v – o artigo n.º 26 e o auto de inspecção a fls. 923).
O funcionário descobriu uma outra pilha de “V” atada por um elástico que o arguido D trazia consigo, com os envelopes idênticos, no valor das 420 patacas (mas faltavam uma nota de 100 patacas e uma outra de 50). Estava entre os envelopes um da P com 100 patacas.
Na carteira do arguido E, o funcionário do CCAC descobriu uma pilha de notas somando 420 patacas/dólares de HK (sem envelope de V e faltavam duas notas de 50 patacas), sendo uma delas de 100 dólares de HK - (vd. o auto de apreensão a fls. 40 – o artigo n.º 33 e o auto de inspecção a fls. 923).
O funcionário do CCAC descobriu uma outra pilha de notas somando 420 patacas/dólares de HK (sem envelope de V e faltava uma nota de 100 patacas) que o arguido J tinha consigo, sendo uma delas de 100 dólares de HK - (vd. o auto de apreensão a fls. 39 – o artigo n.º 23 e o auto de inspecção a fls. 923).
Na carteira do arguido C, o funcionário do CCAC descobriu uma pilha de notas somando 420 patacas/dólares de HK (sem envelope de V e faltavam duas notas de 100, duas de 50 e uma de 10) - (vd. o auto de apreensão a fls. 39 – o artigo n.º 20 e o auto de inspecção a fls. 923).
As notas nos “V” apreendidos, sobretudo as recém-impressas, são na sua maioria, de números seguidos (vd. a lista dos envelopes de “V” e de notas dos mesmos a fls. 897 a 898).
Em 5 de Julho de 2005, depois de o dirigente da S Y ter tomado conhecimento, alguém deslocou-se à loja de artigos de desporto XX e comprou um par de ténis de 26 da marca “XX”, cuja referência de fábrica era de 8KN-526 (vd. os atestados a fls. 705, 706 e 731), o qual foi depois entregue ao arguido D através de um terceiro desconhecido.
Em 29 de Maio de 2006, o funcionário do CCAC descobriu os ténis em causa na casa do arguido L, sita na Rua do XX n.º XX, XX GARDEN XX.º E (vd. o auto de apreensão a fls. 753).
Numa data não determinada, alguém solicitou dois pares de botas femininas ao funcionário da S T.
Em 23 de Dezembro de 2005, a contabilista da S U foi à “XX” comprar dois pares de botas femininas da cor preta de modelos diferentes, cujos números eram respectivamente de 36 e 37. Custaram os dois HK$957 (vd. os duplicados do recibo a fls. 149 e o artigo apreendido n.º 38 o livro de conta).
Em 12 de Fevereiro de 2006, o funcionário do CCAC descobriu os dois pares de botas acima referidos na sequência de uma busca feita ao domicílio do arguido F, localizado na Rua de XX n.º XX, EDF. XX GARDEN Bloco XX, XX.º W (vd. o auto de apreensão a fls. 422 e o auto de reconhecimento de objectos a fls. 430 e 434)”.
Deu também como provado que:
  “O 1.º arguido
  Aposentado. Aufere mensalmente MOP$30000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mãe, mulher e o filho.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 2.º arguido
  Subinspector alfandegário. Aufere mensalmente MOP$30000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento dos pais e dois filhos.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 3.º arguido
  Verificador alfandegário. Aufere mensalmente MOP$22000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento dos pais e dois filhos.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 4.º arguido
  Verificador alfandegário. Aufere mensalmente MOP$21000 como rendimento.
  Solteiro e encarregado do sustento da mãe e do filho.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 5.º arguido
  Verificador alfandegário. Aufere mensalmente MOP$23000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mãe, da mulher e da filha.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 6.º arguido
  Aposentado. Ora condutor. Aufere mensalmente MOP$39000, como rendimento e pensão de aposentação.
  Casado e encarregado do sustento da mulher e de dois filhos.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 7.º arguido
  Aposentado. Aufere mensalmente MOP$27000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mulher e de dois filhos.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  O 8.º arguido
  Verificador alfandegário principal. Aufere mensalmente MOP$26000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mulher, dos pais e de dois filhos.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  A 9.ª arguida
  Verificadora alfandegária. Aufere mensalmente MOP$21000 como rendimento.
  Casada. Não carece de sustentar ninguém.
  Manteve-se calada perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primária.
  O 10.º arguido
  Verificador alfandegário superior. Aufere mensalmente MOP$28000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mãe e da filha.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  A 11.ª arguida
  Verificadora alfandegária. Aufere mensalmente MOP$21000 como rendimento.
  Casada e encarregada do sustento dos pais e da filha.
  Manteve-se calada perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primária.
  O 12.º arguido
  Inspector alfandegário. Aufere mensalmente MOP$36000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mulher e dos dois filhos.
  Negou os factos que lhe foram imputados. É primário.
  O 13.º arguido
  Dono duma empresa de correio rápido. Aufere mensalmente MOP$10000 a MOP$20000 como rendimento.
  Casado e encarregado do sustento da mãe e dos três filhos.
  Manteve-se calado perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primário.
  A 14.ª arguida
  Subdirectora da secção de operação em aeroportos duma empresa de correio rápido. Aufere mensalmente MOP$6500 como rendimento.
  Casada e encarregada do sustento dos pais e dos dois filhos.
  Manteve-se calada perante os factos que lhe foram imputados durante a audiência de julgamento. É primária”.
  
  E, no que toca a matéria de facto não provada, consignou que não se provaram “outros factos relevantes não correspondentes aos factos provados, os quais constam da acusação, designadamente:
  Nalguns dias ainda não apurados no princípio do ano 2006, em conjugação com outros verificadores alfandegários não identificados, os arguidos A, B, C, D, E, F, G, H, I, J e K traçaram um plano de enriquecimento ilegítimo, i.e., durante o Ano Novo Chinês, exigir a todas as empresas e funcionários que passariam pela alfândega para efeitos de desalfandegamento o pagamento no valor de 10 a 500 patacas/dólares de HK a favor de todos os verificadores alfandegários no posto, em nome de “V de arranque de trabalho”.
  Só depois de os funcionários das empresas terem dado os “V de arranque de trabalho” conforme das instruções é que os verificadores alfandegários verificavam atempadamente as mercadorias transportadas, e normalmente o desalfandegamento das mesmas corria sem qualquer problema, sem que houvesse demora ou percalço propositadamente colocado (como por exemplo: apreender todas as mercadorias para ficarem sujeitas a inspecção plena, nomeadamente “XX”).
  As empresas de transporte, por sua vez, de forma a tratarem tão depressa quanto possível de todas as formalidades necessárias a desalfandegamento para entregar atempadamente as mercadorias aos clientes, sobretudo durante o Ano Novo Chinês, se bem que os verificadores alfandegários não tivessem exigido por iniciativa deles, davam dinheiro na mesma aos verificadores do posto em nome de “V de arranque de trabalho”.
  De acordo com o plano previamente traçado, ficou a cargo dos inspectores do dia, designadamente A e B, requerer “V de arranque de trabalho” junto dos funcionários das empresas de correio rápido em representação dos demais arguidos C, D, E, F, G, H, I, J e K e outros verificadores alfandegários não identificados.
  Mais tarde, era a responsabilidade dos arguidos, A, B, C, D, E, F, G, H, I, J e K, e de uns quantos outros verificadores alfandegários não identificados receber os “V de arranque de trabalho” e distribui-los igualitariamente entre eles.
  A fim de assegurar o bom desenrolar do procedimento de desalfandegamento das mercadorias a cargo da empresa, o arguido M ordenou à N que desse 100 patacas/dólares de HK por pessoa a todos os verificadores alfandegários do posto no Aeroporto Internacional de Macau, incluindo A, B, C, D, E, F, G, H, I, J e K, bem como outros verificadores não identificados, em nome de “V de arranque de trabalho”.
  A arguida N colocou 100 patacas/dólares de HK em vários envelopes vermelhos do P, sendo os mesmos, na sua maioria, timbrados da “O CARGO (MACAU) CO.,LTD” (vd. artigo apreendido n.º 36).
  A 7 de Fevereiro de 2006, consoante o plano, o arguido A perguntou no posto ao funcionário Q encarregado de transferência de mercadorias duma outra empresa de transporte (S ENTREGA INTERNACIONAL CO.,LTD – adiante designada simplesmente por “S”) que estava no momento a cumprir os trâmites de desalfandegamento, “Se tem aí ‘V de arranque de trabalho’?” Q respondeu a perguntar, “quantos?” Em resposta, A disse, “35 V ao todo.”
  Todos os “V” com envelopes um da P timbrado com o selo da “O CARGO (MACAU) CO.,LTD” e descobertos junto dos arguidos foram dados pelos funcionários da empresa “O CARGO (MACAU) CO.,LTD”, nomeadamente os arguidos M e N, a fim de tratar de todos os processos de desalfandegamento sem qualquer problema; enquanto os demais “V” são provenientes de outras empresas de transporte não apuradas constantes da lista de apreensão n.º 35 com o mesmo objectivo.
  No início de Julho de 2005, o arguido L, o então inspector alfandegário (o chamado “n.º 3”) do posto de transporte do Aeroporto, exigiu um par de ténis ao condutor da S R, via o arguido, verificador alfandegário D.
  Em 17 de Dezembro de 2005, o arguido A, o então subinspector do posto de transporte do Aeroporto Internacional de Macau, ordenou que o funcionário da S T fosse ao Estabelecimento de Comida XX na Taipa buscar o almoço e pagasse a conta no valor de MOP$568,5. (vd. os duplicados do recibo a fls. 152 e 153 e o artigo apreendido n.º 38 o livro de conta)
  Nos dias 21 e 22 de Dezembro de 2005, o arguido A reclamou ao funcionário da S T MOP$2000 (que foi depois reduzido a MOP$1500) a título de “apoio financeiro de festejos de XX”, bem como o mandou que fosse ao Restaurante XX da Taipa buscar o seu almoço e pagasse a conta no valor de MOP$224. (vd. os duplicados do recibo a fls. 148, 150 e 151 e o artigo apreendido n.º 38 o livro de conta)
  Em 8 de Janeiro de 2006, o arguido A mandou outra vez o funcionário da S T que fosse ao Restaurante XX, ao Fortune Palace da Pousada Mariana Infante e ao Estabelecimento de Comida XX levantar comida takeaway e pagasse as contas no valor de MOP$372,5 (vd. os duplicados do recibo a fls. 599, 600 e 601)
  Os arguidos A, B, K, C, D, E, F, G, H, I e J adquiriram interesses ilegítimos para si próprios e para outrem de forma livre, voluntária e dolosa, aproveitando as funções que exerciam, através de esforços conjugados coordenados pelos conluios resultantes de acordo de vontade deles todos.
  Os arguidos supraditos, enquanto funcionários públicos alfandegários, reclamaram e receberam várias vezes interesses pecuniários como não devia ter sido, sob pretexto de retribuição dos seus desempenhos de funções inspectoras no posto de importação e exportação do Aeroporto, sob pena de a empresa acima indicada e todos os indivíduos respeitantes deixarem de continuar a adquirir os seus próprios interesses.
  Os arguidos M e N ofereceu retribuições pecuniárias de forma livre, voluntária e dolosa aos arguidos A, B, K, C, D, E, F, G, H, I e J como funcionários públicos alfandegários, com vista a poderem beneficiar de facilidades de desalfandegamento, o que demonstrou o seu objectivo de promover corrupção passiva.
  Os arguidos L e D, enquanto funcionários públicos alfandegários, abusaram direitos concedidos pelas Leis por causa das funções e violaram obrigações inerentes de forma livre, voluntária e dolosa, aproveitando as funções que exerciam para reivindicarem interesses em espécie a outrem, em regime de esforços conjugados coordenados pelos conluios resultantes de comum acordo de vontade dos dois, com vista a obter interesses ilegítimos para si próprios e para terceiros em detrimento de interesses de outrem, bem como prejudicar a justiça e a credibilidade das autoridades da RAEM.
  O arguido F, enquanto funcionário público alfandegário, abusou direitos concedidos pelas Leis por causa das funções e violou obrigações inerentes de forma livre, voluntária e dolosa, aproveitando as funções que exercia para reivindicar interesses em espécie a outrem, com vista a obter interesses ilegítimos para si próprios e para terceiros em detrimento de interesses de outrem, bem como prejudicar a justiça e a credibilidade das autoridades da RAEM.
  O arguido A, enquanto funcionário público alfandegário, abusou direitos concedidos pelas Leis por causa das funções e violou obrigações inerentes várias vezes de forma livre, voluntária e dolosa, aproveitando as funções que exercia para reivindicar interesses pecuniários e em espécie a outrem, com vista a obter interesses ilegítimos para si próprios e para terceiros em detrimento de interesses de outrem, bem como prejudicar a justiça e a credibilidade das autoridades da RAEM.
   Todos os arguidos sabem perfeitamente que as condutas supra mencionadas são proibidas e punidas por lei”; (cfr., fls. 1645 a 1650).

Do direito

3. Vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto to T.J.B. recorrer do Acórdão que absolveu os (14) arguidos dos presentes autos dos crimes que lhes eram imputados no despacho de pronúncia de fls. .

É de opinião que o veredicto em questão padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e de “erro de direito”, (na qualificação dos factos).

Sem embargo do muito respeito por tal entendimento, cremos que o recurso não merece provimento, (aliás, como no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto se deixou explanado, pouco havendo a acrescentar).

Com efeito, não se vislumbra o apontado vício da matéria de facto, e assim sendo, face à factualidade dada como provada, totalmente inviável é a pretendida condenação dos arguidos ora recorridos.

–– Vejamos, começando pelo “erro notório na apreciação da prova”.

Em sede de pronúncia quanto a tal maleita, tem este T.S.I. afirmado de forma repetida e unânime que:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 31.05.2012, Proc. n.° 49/2012 do ora relator).

Na verdade e como também já se teve oportunidade de afirmar, não basta uma mera “possibilidade” ou “probabilidade” para se concluir que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova.

E, como se deixou já consignado, não se vislumbra onde, como, ou que termos tenha o Tribunal desrespeitado as regras sobre o valor da prova tarifada, (v.g., dando como não provado um facto sobre o qual existem nos autos documentos autênticos que impunham decisão contrária), ou contra as regras de experiências ou legis artis, (v.g., o dar-se simultaneamente como provado que o arguido, num espaço de 5 minutos do mesmo dia, esteve em Macau e Hong Kong).

Diz o Exmo. Magistrado Recorrente que o Tribunal a quo não valorou ou não valorou devidamente os “reconhecimentos” feitos em sede de Inquérito e registados nos “autos de reconhecimento” de fls. 262 a 267 e 774 a 777.

Pois bem, não se alcança o porque deste entendimento, já que em parte alguma do Acórdão recorrido se extrai tal realidade.

Com efeito, em sede de fundamentação da sua convicção consignou o Colectivo a quo que:

“Depois de o Tribunal ter analisado de forma articulada as declarações feitas pelo 12.º arguido durante a audiência de julgamento, a negação pelo 12.º arguido dos factos que lhe foram imputados, os depoimentos das testemunhas Q, T, U, R, Y, Z, AA, AB, AC, da testemunha do 2.º arguido, da testemunha do 4.º arguido, da testemunha do 5.º arguido, da testemunha do 8.º arguido, da testemunha do 10.º arguido e da testemunha do 12.º arguido, prestados durante a audiência, o decorrer e o resultado contados de forma explícita e objectiva pelos cinco funcionários do CCAC responsáveis pela investigação do caso durante a audiência de julgamento, as fotos constantes nos autos (a fls. 164 a 165, 213, 242, 444 a 450, 926 a 983), os reconhecedores e o boletim de reconhecimento de objectos (a fls. 262 a 267, 431 a 437 e 774 a 777), bem como todas as provas documentais (sobretudo a fls. 148 a 153, 506 a 535, 537 a 540, 545 a 562, 572 a 576, 579 a 588, 592 a 601, 663 a 690, 695 a 708 e 897 a 898), tendo especialmente em conta que no decorrer da audiência, as testemunhas não conseguiram identificar de jeito claro e específico os verificadores alfandegários que solicitaram os “V de arranque de trabalho”, os calçados e a comida, as facilidades que poderiam obter e os registos das testemunhas elaborados sem cumprimento completo dos procedimentos legais, confirmam-se apenas os factos atrás expostos”.

E, da nossa parte, não vemos que daí se possa retirar a conclusão no sentido de ter o Tribunal a quo efectuado uma “menos correcta” valoração de tais elementos de prova.

Aliás, não se pode esquecer que os mesmos “reconhecimentos”, não constituindo prova de valor tarifado, não deixam de estar também sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, e que em audiência de julgamento, onde são apreciadas as provas, impera o princípio da oralidade e da imediação.

Quanto aos “factos da pronúncia referenciados com os n°s 4 a 8”, (cfr., concl. 7 e 9), pouco há a dizer, ou acrescentar, pois que, se decidiu o Tribunal em conformidade com o art. 114° do C.P.P.M., podendo-o fazer, evidente é que inexiste qualquer “erro notório”.

–– Assim, não tendo o Colectivo a quo incorrido no assacado vício da matéria de facto, e não merecendo, consequentemente, a “decisão de facto”, qualquer censura, cabe apenas concluir que acertada foi (também) a decisão de (total) absolvição dos (14) arguidos dos presentes autos.

Vejamos.

Nos termos do art. 337° do C.P.M.:

“1. O funcionário que, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão contrários aos deveres do cargo, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2. Se o facto não for executado, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

3. A punição não tem lugar se o agente, antes da prática do facto, voluntariamente repudiar o oferecimento ou a promessa que aceitara, ou restituir a vantagem, ou, tratando-se de coisa fungível, o seu valor”.

Nos termos do seguinte art. 338°:

“1. O funcionário que, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão não contrários aos deveres do cargo, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

2. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo anterior”.

E nos termos do art. 339°:

“1. Quem, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial que ao funcionário não seja devida, com o fim indicado no artigo 337.º, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. Se o fim for o indicado no artigo anterior, o agente é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.

3. É correspondentemente aplicável o disposto na alínea b) do artigo 328.°”.

Por sua vez, em conformidade com o art. 347°:

“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

E, sem necessidade de grandes elaborações, há que dizer que não se vê que a matéria de facto dada como provada permita considerar como preenchidos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, previstos nos comandos legais transcritos, e cuja infracção era imputada aos arguidos ora recorridos.

Na verdade tanto para o crime de corrupção para acto ilícito como para o de corrupção para acto lícito, é sempre necessário que se apure uma conexão directa entre a vantagem auferida pelo corrupto e um acto por este cometido no exercício das suas funções.

É, pois, imprescindível a “prática de um acto pelo funcionário” e a “promessa ou recebimento de dinheiro ou vantagem patrimonial”.

E, quanto ao crime de “abuso de poder”, sendo, como é, um “crime de intenção determinada”, o mesmo reclama um “dolo específico”, pois que os seus fins ou motivos (a intenção de o agente obter para si ou terceiro, um benefício ilegítimo ou a de causar prejuízo a outra pessoa), fazem parte integrante do respectivo tipo.

Dest’arte, e provadas não estando tais “circunstâncias”, resta decidir pela improcedência do recurso.

Decisão

4. Em face do que se tentou deixar explicitado, acordam, negar provimento ao recurso.

Sem tributação dada a isenção do Ministério Público.

Honorários ao Exmo. Defensor dos arguidos M e N, no montante de $2.000,00.

Macau, aos 11 de Outubro de 2012



_________________________
José Maria Dias Azedo
(Relator)

_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(com declaração de voto)

_________________________
Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)





Declaração de voto ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 413/2012
Votei vencido no Acórdão hoje emitido por este Tribunal de Segunda Instância nos presentes autos de recurso penal n.o 413/2012, porquanto entendo dever proceder o vício de erro notório na apreciação da prova, nos precisos termos invocados pelo Ministério Público na sua motivação do recurso ordinário da decisão absolutória penal da Primeira Instância.
               O primeiro juiz-adjunto,
                
Chan Kuong Seng

Proc. 413/2012 Pág. 52

Proc. 413/2012 Pág. 1