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Proc. nº 170/2012
(Recurso cível e laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Outubro de 2012
Descritores:
     -Terras
     -Domínio útil
     -Usucapião

SUMÁRIO:

I- De acordo como art. 7º da Lei Básica, após o estabelecimento da RAEM, todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado, exceptuando aqueles que se integraram ou tenham potencialidade jurídica de se virem a integrar na propriedade privada dos cidadãos.

II- Se a alguém, através de escritura pública, foi concessionado determinado terreno para o seu aproveitamento construtivo em propriedade horizontal, a propriedade das fracções construídas pelo concessionário pode ser adquirida por usucapião depois do estabelecimento da RAEM por quem celebrou os contratos de promessa de compra e venda das fracções autónomas construídas, sem que alguma tivesse celebrado o contrato definitivo de compra e venda por morte do promitente vendedor, desde que demonstre os respectivos requisitos aquisitivos.

III- A tanto não obsta a circunstância de a propriedade horizontal não estar registada, nem o facto de a concessão ainda não ter sido renovada.




Proc. nº 170/2012
(Autos de recurso cível e laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I- Relatório
B e outros, todos devidamente identificados nos autos, moveram uma acção declarativa com processo ordinário contra os Herdeiros de K, aliás, K1, com última residência conhecida na Estrada ......, nº..., 2º andar, Coloane.
Considerando estarem na posse útil de determinadas fracções imobiliárias na sequência de contratos de promessa de compra e venda celebrados com K antes do seu falecimento, e invocando a usucapião, pediram que fossem declarados os legítimos titulares do domínio útil das referidas fracções (pedido rectificado a fls. 496).
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Por sentença de 18/10/2011 foram os RR absolvidos dos pedidos.
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Dessa sentença recorreram os AA da acção, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
I - Entende o douto Tribunal a quo que nos presentes autos de Acção Ordinária que a julgou improcedente por considerar ser inviável aos autores adquirirem o domínio útil das fracções autónomas que integram o prédio nº ... da Estrada ......, em Coloane, por usucapião, em virtude de o prédio ter sido construído em terreno do domínio público e essa aquisição ser impedida por força do artigo 7º da Lei Básica.
II - Salvo com o devido respeito por opinião contrária, entendem os autores, ora recorrentes que a Mmª Juíza a quo, da forma como decidiu, fez uma errada aplicação das normas legais aplicáveis ao in casu.
III - Os documentos juntos aos autos “escritura de concessão do terreno por arrendamento” e “escritura da alteração da finalidade da concessão” para nesse terreno ser construído um prédio em regime de propriedade horizontal, compreendendo três piso, sendo o 3º piso apartamento A, actualmente, 2º andar “A”, reservado para uso pessoal do concessionário o Sr. K aliás K1.
IV - O terreno no qual foi construído prédio que integram as fracções autónomas que os recorrentes pretendem adquirir por meio de usucapião, foi concedido por arrendamento por um prazo de 25 anos.
V - O regime da concessão de terreno por arrendamento é o que está previsto no Decreto-Lei nº 51/83/M de 26/12/1983, que veio alterar a Lei nº 6/80 (M de 5 de Julho - Lei de Terras.
VI - O artigo 1º do Decreto-Lei nº 51/83/M prevê que o concessionário após ter finalizado as construções no terreno concedido por arrendamento passe a ser propriedade do concessionário e lhe é conferido o poder para as transmitir a terceiros.
VII - Assim sendo, no terreno concedido por arrendamento passam a coexistir dois direitos: um de propriedade, sobre o solo que é o domínio directo que é pertença do Território e outro sobre a parte edificada que é o domínio útil que passa a ser propriedade do concessionário.
VIII - De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei nº 51/83/M, que na sua redacção formula o seguinte: “enunciou a equiparação do arrendamento ao aforamento como forma de disposição de terrenos urbanos e de interesse urbano”, ora o sentido deste preâmbulo vem equiparar os terrenos concedidos por arrendamento aos terrenos concedidos por aforamento, pelo que vem permitir que a eles também seja aplicado o artigo 5º da Lei de Terras, que consagra a excepção em permitir a aquisição por meio de usucapião.
Por existir um desdobramento da propriedade plena dos terrenos do domínio privado de Macau em domínio directo que incide sobre o solo e pertence ao Território de Macau, e outro sobre a parte edificada que é o domínio útil que passou para a propriedade do concessionário e se transmitiu aos recorrentes por meio de contrato de promessa.
IX - Tanto assim que a presente concessão de terreno para arrendamento foi feita pelo então Governo de Macau, e o despacho de alteração da finalidade desta concessão foi publicado no Boletim Oficial de Macau, nº 31 de 3 de Agosto de 1987 no Despacho nº 118/SAES/87.
X - Desta forma, as fracções autónomas que integram o prédio nº ... da Estrada ......, em Coloane, omisso na Conservatória do Registo Predial, não ficam sujeitas ao impedimento de aquisição por meio de usucapião, previsto no artigo 7º da Lei Básica, por também estar previsto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 51/83/M, que elas passaram a ser propriedade do concessionário e lhe foi conferido o poder de as transmitir a terceiros.
XI - Após o concessionário ter terminado a obras de construção, as fracções autónomas do referido prédio passaram para a esfera privada do concessionário “K aliás K1”, e por ser sua propriedade lhe foi conferido o poder de as transmitir, com a reserva do 3º piso - apartamento “A”, que é o actual 2º andar “A”.
XII - De acordo com a redacção do artigo 7º que de uma forma muito explícita “...salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau...”, o terreno em questão foi concedido por arrendamento e a alteração da sua finalidade foi também autorizada por Despacho nº 118/SAES/87 e publicado no Boletim Oficial nº 31 de 3 de Agosto.
Celebrada por escritura outorgada na Direcção dos Serviços de Finanças, e conforme o disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 51/83/M, as construções nos terrenos concedidos por arrendamento passam a ser propriedade do concessionário com o poder de transmitir a propriedade, logo por isto se verifica que as fracções autónomas que integram o prédio nº ... da Estrada ......, em Coloane, passaram integrar a esfera privada do concessionário, que lhe foi reconhecido pela publicação do Despacho nº 118/SAES/87 e pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 51/83/M.
XIII - Portanto, o concessionário após ter finalizado a obra e ter apresentado a licença de utilização do prédio, a concessão que era provisória converteu-se em definitiva (artigos 132º e 133 da Lei de T erras) e por conseguinte tornou-se proprietário das fracções autónomas e nessa qualidade por contrato promessa vendeu-as aos recorrentes.
XIX - Está provado que os recorrentes adquiram as fracções autónomas por contrato de promessa e desde 1987 e 1990, praticaram actos que provam o “corpus” e o “animus” sobre as referidas fracções autónomas.
XX - Logo, aos recorrentes lhes deve ser permitido o direito de adquirirem as fracções autónomas por meio de usucapião nos termos do Código Civil, conjugado com artigo 5º da Lei de Terras com nova redacção dada pela Lei nº 2/94/M.
XXI - Deverá o Venerando Tribunal de Segunda Instância, revogar a sentença e substituí-la por outra, na qual deve ser reconhecido o direito de os autores, ora recorrentes adquirirem as fracções autónomas do prédio nº ... da Estrada ......, em Coloane, que lhes foram vendidas pelo concessionário do K aliás K1.
Nestes termos, concedendo-se provimento ao presente recurso alterando a Sentença recorrida em conformidade com o supra alegado, farão V. Exas., Venerandos Juízes, inteira e sã JUSTIÇA
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Não houve contra-alegações.
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Foram por iniciativa deste TSI notificadas as partes a respeito da verdadeira pretensão dos recorrentes (cfr. despacho de fls. 489), dúvida já eliminada definitivamente a fls. 496.
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Este TSI diligenciou no sentido da obtenção de determinados elementos informativos (cfr. fls. 501 e sgs.).
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade (vamos conferir aqui uma ordem numérica aos factos):
1 - K aliás K1, obteve do então Governo de Macau, a concessão de um terreno com a área de 283,70 m2, para a construção de uma habitação para uso próprio.
2 - A concessão do terreno acima referido foi feita a K aliás K1, por arrendamento por um prazo de 25 anos, cuja escritura foi outorgada em 9 de Maio de 1985, na Direcção dos Serviços de Finanças.
3 - K aliás K1, posteriormente veio requerer a alteração da finalidade de aproveitamento do terreno que lhe fora concedido, da finalidade de construção de habitação para uso próprio para a construção de um edifício em regime de propriedade horizontal, compreendendo três pisos.
4 - A escritura de contrato de alteração de finalidade foi outorgada em 2 de Outubro de 1987, na Direcção dos Serviços de Finanças.
5 - Do contrato de alteração de finalidade consta que da área global de 772 m2 do referido prédio, 86 m2 situados no 3º piso (apartamento A) se destinam exclusivamente para o uso do próprio K aliás K1.
6 - K aliás K1, na qualidade de titular do direito de concessão por arrendamento do referido terreno, pelo prazo de 25 anos, a partir de 9 de Maio de 1985, mandou construir um edifício para fins habitacionais.
7 - O referido edifício se situa na Estrada ......, nº ..., Coloane e foi vistoriado em 25 de Novembro de 1986 e em 28 de Novembro de 1986 foi considerado em estado de completo acabamento e em condições de ser ocupado e utilizado.
8 - Desde o início da construção do edifício e em datas posteriores, K aliás K1 celebrou contratos-promessa com vista à venda das fracções que integram o referido edifício.
9 - Em 10 de Maio de 1988, o autor B, celebrou com K aliás K1 um contrato-promessa, pelo qual este prometeu vender-lhe e aquela prometeu comprar a fracção designada “A” do rés-do-chão, pelo preço de HKD$270.000,00.
10 - Este preço foi pago integralmente ao K aliás K1.
11 - Em 28 de Julho de 1989, os Autores C, D e F, celebraram com K aliás K1 um contrato de promessa, pelo qual este prometeu vender-lhes e aqueles prometeram comprar a fracção designada por “B”, do rés-do-chão, pelo preço de HKD$270.000,00.
12 - O preço ajustado foi integralmente pago ao K aliás K1.
13 - Em 7 de Junho de 1990, os Autores G e sua mulher H, celebraram com K aliás K1 um contrato de promessa, pelo qual este prometeu vender-lhes e aqueles prometeram comprar a fracção designada por “A” do 10 andar, pelo preço de HKD$230.000,00.
14 - O preço ajustado foi integralmente pago ao K aliás K1.
15 - Em 17 de Outubro de 1990, o Autor I celebrou com K aliás K1 um contrato de promessa, pelo qual este prometeu vender-lhe e aquele prometeu comprar a fracção designada por “B” do 1º andar pelo preço de HKD$170.000,00.
16 - O preço ajustado foi integralmente pago ao falecidos K aliás K1.
17 - Em 16 de Junho de 1987, 路環XXXX會 em português Associação de XXXX de Coloane, celebrou com K aliás K1 um contrato de promessa, pelo qual este prometeu vender-lhe e aquela prometeu comprar a fracção autónoma designada por “C” do 1º andar, pelo preço de HKD$168.300,00.
18 - O preço ajustado foi integralmente pago ao K aliás K1.
19 - Em 16 de Junho de 1987, J celebrou com K aliás K1 um contrato de promessa, pelo qual este prometeu vender-lhe e aquela prometeu comprar a fracção autónoma designada por “C” do 2º andar, pelo preço de HKD$175.100,00.
20 - O preço ajustado foi integralmente pago ao K aliás K1.
21 - K aliás K1 não procedeu ao registo da referida Concessão de Terreno na Conservatória do Registo Predial, pelo que não consta da Conservatória, registo desta concessão.
22 - K aliás K1 veio a falecer em 7 de Abril de 1995.
23 - Os Autores B, C, D, F, G e sua mulher H, I, 路環XXXX會 em português Associação de XXXX de Coloane e J, tentaram contactar os herdeiros do K aliás K1, no intuito de tratarem das formalidades necessárias que os habilitassem, com o fim de registar a referida concessão de terreno e proceder aos demais registos necessários, para estarem habilitados a celebrar as escrituras de compra e venda das fracções.
24 - Essa tentativa dos Autores foi infrutífera.
25 - A ocupação das fracções pelos Autores é pública e do conhecimento de todos os moradores de Coloane.
26 - K aliás K1 entregou as chaves da fracção “A” do rés-do-chão do prédio nº ... da Estrada ...... ao Autor B em 10 de Maio de 1988, passando esta a residir nela e mandando executar as obras de reparação.
27 - K aliás K1 entregou as chaves da fracção “B” do rés-do-chão do prédio nº ... da Estrada ...... aos Autores C, D e F em 28 de Julho de 1989, passando esta a residir nela e mandando executar as obras de reparação.
28 - K aliás K1 entregou as chaves da fracção “A” do 1º andar do prédio nº ... da Estrada ...... aos Autores G e sua mulher H em 7 de Junho de 1990, passando esta a residir nela e mandando executar as obras de reparação.
29 - K aliás K1 entregou as chaves da fracção “B” do 1º andar do prédio nº ... da Estrada ...... ao Autor I em 17 de Outubro de 1990, passando esta a residir nela e mandando executar as obras de reparação. K aliás K1 entregou as chaves da fracção “C” do 1º andar do prédio nº ... da Estrada ...... à Autora 路環XXXX會 em português Associação de XXXX de Coloane em 16 de Junho de 1987, passando esta a residir nela e mandando executar as obras de reparação.
30 - K aliás K1 entregou as chaves da fracção “C” do 2º andar do prédio nº ... da Estrada ...... à Autora J em 16 de Junho de 1987, passando esta a residir nela e mandando executar as obras de reparação.
31 - Os Autores não encontraram qualquer oposição de quem quer que fosse durante esses anos.
Acrescentaremos ainda o seguinte facto resultante das diligências efectuadas:
34 - A concessão por arrendamento do terreno em causa, que terminava em 9/05/2010, não foi objecto ainda de renovação por parte do concessionário já falecido, nem por parte dos seus herdeiros.
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III- O Direito
A questão de facto central, e em torno da qual gira a situação controvertida, é a seguinte:
A K, ou K1, foi concedido, por arrendamento e para construção de habitação própria, um terreno sito em Coloane (fls. 14 a 18 dos autos). A finalidade inicial, porém, viria a ser alterada por contrato celebrado na Direcção dos Serviços de Finanças de modo a ser permitido o seu aproveitamento em regime de propriedade horizontal compreendendo três pisos (fls. 19 a 22 dos autos).
E com isto, assim começa a nossa discordância relativamente à sentença: é que se ela parte do pressuposto exacto de que a concessão visou a construção de uma habitação própria (ver fls. 14, linha 20-21 da sentença), já olvida, por outro lado, a alteração da finalidade permitida posteriormente por escritura pública (fls. 19-22 dos autos). E este é um pormenor de enorme importância para a solução do caso.
Mas, ainda assim, avancemos na análise do caso.
O concessionário nunca registou esta concessão, pelo que há omissão na Conservatória. A verdade é que ele viria a construir várias fracções habitacionais que prometeu vender a diversos interessados, os ora AA.
Pretenderam os impetrantes da acção, por não terem chegado a celebrar a escritura definitiva de compra e venda e porque ocupam as fracções desde a data do contrato prometido, invocar a usucapião de forma a que delas sejam declarados proprietários.
A sentença em apreço entendeu tal não ser possível.
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Vejamos.
O problema contende com vários diplomas e a todos temos que pedir socorro para a solução do caso.
Assim é que, de acordo com o art. 1º da Lei de Terras (Lei nº 6/80/M, de 5/07), os terrenos de Macau podem ser do domínio público (art. 2º; ver também art. 193º, nº3, do Código Civil) do seu domínio privado (art. 6º) e, finalmente, constituir propriedade privada (art. 5º).
No que respeita aos dois primeiros, dispõe o art. 8º da mesma lei que sobre eles não podem ser adquiridos direitos por meio de usucapião ou acessão imobiliária.
E quanto ao terceiro, o art. 5º preceitua que se consideram sujeitos ao regime de propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público (nº1).
É claro que estas disposições têm agora que merecer um outro olhar, na medida em que a partir da data da transferência da soberania de Macau para a República Popular da China, a questão das terras apresenta outra configuração. O art. 7º da Lei Básica, por exemplo, veio, prescrever que “Os solos… na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau…”. Quer dizer, todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado, exceptuando aqueles que se integraram e que tenham potencialidade jurídica de se integrarem na propriedade privada dos cidadãos.
Verdade é que o art. 5º1 citado da Lei de Terras estabelece no seu nº3 que “O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por aquisição nos termos da lei civil”.
E no nº4 estatui que “Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é usucapível por usucapião nos termos da lei civil”.
Donde, parece resultar que a Lei de Terras permite a distinção entre propriedade dos terrenos do domínio privado de Macau e o domínio directo e domínio útil, bem como a aquisição deste último pela via da usucapião. E também se pode concluir, assim, que à proibição absoluta da aquisição de direitos reais sobre terrenos do domínio público e domínio privado de Macau contida na redacção primitiva do art. 8º, se seguiu uma abertura excepcional introduzida no nº4 do art. 5º2.
Mas a partir da reunificação passou a entender-se que a Lei Básica funciona como um tampão temporal à aquisição da propriedade, no sentido de que, não tendo sido possível usucapir antes da entrada em vigor da Lei Básica, não mais será possível adquirir o direito por usucapião a partir desta data3 e que apenas se permite a criação de direitos de propriedade reconhecidos ou passíveis de reconhecimento como propriedade privada antes de 20/12/1999. E até mesmo no que respeita especificamente à aquisição do domínio útil, já se consignou em jurisprudência do TUI que só será passível a aquisição por usucapião após a transferência de soberania desde que esse mesmo domínio útil tenha transitado para o regime de propriedade privada antes da RAEM4
Pois bem, no caso em apreço a sentença considerou que o terreno onde está construído o edifício não está descrito na Conservatória do Registo Predial com inscrição do direito de propriedade ou outro direito real a favor de alguém. E, por assim ser, não o considerou propriedade privada dos herdeiros do falecido K e, em vez disso, considerou-o propriedade do Estado sobre o qual não seria possível adquirir pela força da usucapião nenhum direito real, apesar de considerar provado que os AA sobre o prédio exerceram uma série de actos indicadores de “corpus” e “animus”.
Em nossa opinião, com o devido respeito, a sentença não poderá manter-se. Senão, veja-se:
Se os arestos do TUI emitidos sobre questões de natureza semelhante a esta impedem o reconhecimento do direito de propriedade de prédios na posse de particulares, no caso de à data do estabelecimento da RAEM ainda não ter decorrido o prazo de usucapião5 ou na hipótese de a acção ser intentada após o estabelecimento da Região com vista a constituir nova propriedade privada por não estar ainda reconhecida a ninguém6, sempre assim o decidiu aquele alto tribunal no pressuposto de a propriedade privada (incluindo a titularidade do domínio útil) não estar ainda integrada na esfera de algum particular.
Mas, desde que o domínio útil assentasse nalgum título legalmente válido – como é o caso de escritura pública de concessão por arrendamento do terreno onde legitimamente depois disso se tenha construído um prédio urbano – então a aquisição desse direito real pelas forças da usucapião pode ser declarado em tribunal, ainda que o transcurso do prazo desta forma de aquisição apenas se concretize após o estabelecimento da RAEM. É que se extrai do Ac. do TUI de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007.
Mas as situações da vida não são todas iguais. E assim é que o próprio DL nº 51/83/M, de 26/12 (diploma que estabelece disposições relativas ao domínio do direito resultante da concessão por arrendamento de terrenos urbanos e de interesse urbano) expressamente prevê que as construções efectuadas em terrenos concessionados por arrendamento se mantêm na propriedade do concessionário, podendo a propriedade das construções referidas ser transmitida, designadamente no regime da propriedade horizontal (art. 1º, nºs 1 e 2). Isto é, as construções efectuadas ao abrigo de concessão por arrendamento não estão fora do comércio jurídico e, por assim ser, não se mostra aplicável ao caso o disposto no art. 8º da Lei de Terras.
Ora, os AA celebraram com o concessionário – que dispunha de um título válido de ocupação do terreno - contratos de promessa de compra e venda das fracções identificadas e só não rubricaram o contrato definitivo de compra e venda por o promitente vendedor ter falecido (parece ser essa a causa, tanto quanto se pode depreender dos autos). Em todo o caso, se tais contratos definitivos não foram celebrados, a verdade é que os interessados passaram a exercer actos de posse continuada e permanentemente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, como se fossem titulares do correspondente direito de propriedade de cada fracção.
Não está neste momento em causa qualquer direito real sobre o terreno. Terreno, aliás, sobre o qual foi validamente constituída uma concessão por arrendamento para fins de construção habitacional, por representar a situação prevista no art. 29º, nº3, al. b), da Lei de Terras, em conformidade, de resto, com o regime da concessão previsto nos arts. 49º e sgs e, particularmente, art. 155º, nº1, al. b), desse articulado legal.
O que se discute é a propriedade da construção, em especial, a propriedade das fracções do prédio construído pelo concessionário.
Ora, o art. 1º do DL nº 51/83/M, de 26/12, relativamente ao domínio resultante da concessão, por arrendamento, de terrenos urbanos e de interesse urbano, estabelece que:
«O direito resultante da concessão por arrendamento ou subarrendamento de terrenos urbanos ou de interesse urbano abrange poderes de construção ou transformação, para os fins e com os limites consignados no respectivo título constitutivo, entendendo-se que as construções efectuadas se mantêm na propriedade do concessionário ou subconcessionário até expirar o prazo do arrendamento ou subarrendamento ou enquanto este não for rescindido; expirado o prazo ou operada a rescisão aplica-se o regime de benfeitorias consignado na Lei de Terras» (nº1)
e que:
«A propriedade das construções referidas no número anterior pode ser transmitida, designadamente no regime da propriedade horizontal, observados os condicionalismos da Lei de Terras sobre a transmissão de situações resultantes da concessão ou subconcessão» (nº2:negro nosso).
O que se passa, portanto, é que estamos perante um direito complexo: porque é constituído por um direito sobre coisa alheia (o direito de concessão propriamente dito) e pelo direito sobre a coisa construída, que é um direito de propriedade (direito de propriedade da construção)7.
Ora, do que não há dúvida é que o art. 155º, nº1, al. b) da Lei de Terras confere a autorização para a transmissão de situações decorrentes do arrendamento de terrenos urbanos ou de interesse urbano no respectivo contrato se o arrendamento se destinar “à construção de edifícios que se componham de unidades independentes que possam pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”, tal como decorre do presente contrato. Ou seja, é a própria lei de terras a reconhecer que a finalidade construtiva na sequência de arrendamento pode conduzir à criação de situações reais de tráfico imobiliário, isto é, da alienação da coisa construída, nomeadamente em regime de propriedade horizontal8. É, aliás, a situação comum em Macau, como se sabe.
Se assim é, concatenando estes dois principais argumentos, somos a concluir que, por eles, nenhum obstáculo parecerá impedir a aquisição do peticionado direito.
Na verdade, por um lado, o objecto do aproveitamento da concessão (arts. 49º e 103º a 107º da Lei de Terras), isto é, a coisa construída passou a ser propriedade do concessionário antes do estabelecimento da RAEM.
Por outro lado, a posse de cada um dos AA da acção sobre as fracções do prédio decorre desde o momento em que ao concessionário as prometeram comprar – entre 1987 até 1990, consoante a factualidade dada por assente – até à data da propositura da acção - em Janeiro de 2008 -, e porque as habitam desde então, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e executando as obras de reparação que se mostrem necessárias, estão, quanto a nós, reunidos os requisitos necessários à aquisição do pretendido direito. Está ali a necessária reunião de corpus (actos materiais) e animus (intenção de agir como titular do direito) necessárias à conformação da posse, que é pacífica e pública (arts. 1261º e 1262º do C.C. de 1966; arts. 1182º a 1186º do actual C.C.).
E porque esses actos de posse e intenção subjacente perduram há mais de 15 anos, sendo ela de boa fé, nada pode obstar à usucapião (art. 1221º, do C.C.).
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Usucapião, sem dúvida, relativa à propriedade do edificado, da construção, portanto, das fracções, e não propriamente do seu domínio útil. Com efeito, muito embora os autores/recorrentes se tivessem expressado pela 2ª das formas na formulação do pedido, o certo é que a sua verdadeira intenção, segundo bem a interpretamos, seria a usucapião da propriedade, face aos termos que sempre utilizou nesse sentido (ver, entre outros, arts. 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 31º e 34º, todos da petição inicial, bem assim como arts. 16º, 21º, 22º, 23º, 26º, 27º, 30º, 33º, 35º, 37º, 43º. 46º, 51º das alegações do recurso). E que essa foi a intenção resulta até do facto de pretenderem obter uma sentença que lhes reconheça o direito a fim de que, posteriormente, possam registar a “propriedade horizontal”. Ou seja, a causa de pedir sempre foi devidamente representada nos autos no sentido que agora interpretamos. Assim sendo, e porque o tribunal não está sujeito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 567º do CPC), também não poderia sentir-se impedido de aplicar uma solução jurídica ao caso diferente da propugnada pela parte, desde que não alterasse a causa de pedir9. Por conseguinte, a solução jurídica aplicável ao caso sempre seria aquela que acima expusemos. Contudo a fls. 496 dos autos os recorrentes vieram clarificar a sua intenção pretensiva, precisamente no sentido do reconhecimento da propriedade das fracções. Portanto, nenhum obstáculo agora existe quanto a esse ponto.
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A sentença também não acolheu a pretensão dos AA em virtude de as fracções não constituírem fracções autónomas (presumimos que devido ao facto de o concessionário nunca ter registado a propriedade horizontal).
Ora, mesmo que a propriedade (horizontal) nunca tenha sido registada, isso não quer dizer que de facto a propriedade de cada adquirente sobre cada fracção não exista (cfr. Lei nº 25/96/M, e 9/09, que revoga o anterior DL nº 31/85/M, de 13/04), já que a função do registo se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios (art. 1º do DL nº 46/99/M, de 20/09), sem que seja posta em causa a situação factual subjacente. Aliás, no caso em apreço, a presente acção até visa, precisamente, obter uma sentença favorável com a qual os AA pretendem também vir a registar a concessão do terreno e a constituição da propriedade horizontal (mas esse é, de resto um problema alheio a esta acção).
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Uma palavra final a propósito do art. 55º da Lei de Terras.
É verdade que a concessão não foi ainda renovada no caso concreto. Isso, porém, não pode obstar ao deferimento do pedido, por não estar em causa nenhum problema de legitimação substantiva. Na verdade, a renovação pode ser feita pelo concessionário ou pelo co-titular do direito à concessão (nº1, do cit. art. 55º), como pode ser pedida mediante declaração nesse sentido por parte dos “titulares de direitos que possam ser afectados pelo termo do prazo da concessão”(nº2, cit. art.)10. Ora, os pretensamente proprietários estão, precisamente, entre titulares de direitos afectados pelo termo do prazo da concessão.
Como a própria Direcção dos Serviços de Solos e Obras Públicas e Transportes afirma “Os titulares das fracções autónomas do edifício devem regularizar a situação apresentando o pedido de renovação da concessão (…) nada obsta ao deferimento do pedido” (fls. 514).
Por tudo isto, e sem mais delongas, é tempo de concluir pela procedência do recurso.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional e, em consequência:
- Revogam a sentença recorrida e, julgando procedente a acção,
- Declaram que os AA, por usucapião, são proprietários das fracções autónomas A e B do rés-do-chão, A, B e C do 1º andar e C do 2º andar, tal como descrito na matéria de facto acima descrita, do prédio construído no prédio sito na Estrada ......, nº..., em Coloane, ainda não inscrito na Conservatória do Registo Predial de Macau.
Custas pelos recorridos em ambas as instâncias.
TSI, 11 / 10 / 2012
(Relator) José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto) Choi Mou Pan

(Primeiro Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong (com declaração de voto)
Processo nº 170/2012
Declaração de voto


Subscrevo o Acórdão antecedente à excepção da parte que declara que os Autores, por usucapião, são proprietários das fracções autónomas tal como descrito na matéria de facto, do prédio construído no prédio sito na Estrada ......, nº ..., Coloane, pois entendo que, não tendo sido ainda o prédio constituído em propriedade horizontal, a decisão deve limitar-se a declarar os Autores proprietários das fracções autónomas a constituir em sede da execução da sentença onde se procederá à constituição judicial da propriedade horizontal nos termos do CC.


RAEM, 11OUT2012

O juiz adjunto,


Lai Kin Hong

1 Preceitos introduzidos na Lei de terras pela Lei nº 2/94/M.
2 Neste sentido, v.g., Ac. do TSI de 24/11/2011, Proc. nº 209/2010.
3 Ac. TUI nº 17/2010, Proc. nº 20/05/2010; TSI, de 17/02/2005, Proc. nº 316/2004; 14/07/2005, Proc. nº 245/2005; 23/02/2006, Proc. nº 323/2005; 15/09/2011, Proc. nº 340/2009; 15/12/2011, Proc. nº 971/2010.
4 Ac. TUI de 16/01/2006, Proc. nº 41/2007.
5 Ac. de 20/05/2010, Proc. nº17/2010.
6 Ac. de 05/07/2006, Proc. nº 32/2005 e 16/02/2011, Proc. nº 71/2010.
7 José Gonçalves Marques, in Direitos Reais, da Universidade de Macau, Lições ao 4º ano jurídico de 1997-98, pag. 41.
8 Autor citado, pag. 41 e 42.
9 Neste sentido, Acs. RL, de 12/02/2006, Proc. Nº 7365/2006; tb. Ac. STJ de 15/11/1995, in BMJ nº 451/440.
10 Ver ainda art. 1º, nº2, do DL nº 51/83/M, de 26/12 acima transcrito.
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