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Processo nº 663/2012 Data: 25.10.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “emissão de cheque sem provisão”.
Contradição insanável.
Vícios da matéria de facto.
Conhecimento oficioso.
Reenvio.



SUMÁRIO

1. Ocorre “contradição insanável” quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

2. O Tribunal de recurso tem o “poder dever” de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, ou seja, numa decisão que não padeça de “insuficiências”, “contradições insanáveis da fundamentação” ou “erros notórios na apreciação da prova”, que a suceder e sendo insanáveis, impedem aquela, originando o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art° 418° do C.P.P.M..

Os vícios do art. 410°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M., são de “conhecimento oficioso”.

3. Constatando-se o vício de “contradição” em questão, sendo o mesmo insanável, e observado que foi o contraditório, (cfr., “acta de julgamento”) impõe-se o reenvio dos autos para novo julgamento.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo


Processo nº 663/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, assistente, vem recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. que condenou a arguida B, como autora de 1 crime de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 20 dias de multa, à taxa diária de MOP$100.00, perfazendo a multa global de MOP$9.000,00, convertível em 60 dias de prisão subsidiária.

*

Nas suas conclusões, afirma o seguinte:

“(1) No acórdão recorrido, a arguida B foi condenada, pela prática, em autoria material e na forma consumada, dum crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punido pelo artigo 214, n.º 1 do CPM, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de MOP$ 100,00, perfazendo MOP$ 9.000,00, convertível em 60 dias de prisão se a mesma não a pagar. O acórdão também rejeitou o pedido da indemnização e os correspondentes juros.
(2) No acórdão recorrido, foram pormenorizadamente escritos nas fls. 3 a 5 os “factos provados”, “factos provados em relação à indemnização civil” e “factos não provados”, que se dão aqui por integralmente reproduzidos para o efeito jurídico.
(3) Mantemos o costumeiro respeito pela decisão do tribunal. No entanto, o recorrente interpôs este recurso por ser inconformado com o acórdão recorrido.
(4) Em primeiro lugar, o pedido da indemnização civil encontra-se entre fls. 35 a 41 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido.
(5) O teor principal deste pedido é que o recorrente perdeu, por causa do delito descrito nos autos, HKD$70.000,00, valor esse equivalente a MOP$72.205,00; O recorrente também pediu ao Tribunal que condenasse a ré no pagamento da indemnização por dano não patrimonial no valor de MOP$50.001,00, valores esses perfazem em total MOP$122.796,00. Além disso, encontra-se nexo de causalidade adequado entre o dano do recorrente e o delito da arguida, e a arguida é a única parte culposa.
(6) Encontra-se em fls. 5 dos autos um cheque de HKD$70.000,00, cujo recebedor é o recorrente. Pelo que o recorrente pode adquirir incondicionalmente a respectiva quantia. Dos factos provados resulta que o referido cheque foi emitido pela arguida ao recorrente. Pelo que se o recorrente não pudesse adquirir a quantia escrita no cheque, aquele sofreria dano.
(7) Este dano é necessário e directo. Encontra-se o nexo de causalidade entre o dano e o cheque e a conduta da sua emissão.
(8) No entanto, das alíneas 4 a 6 dos factos provados resulta que a conduta da emissão do cheque sem provisão trata-se da conduta pessoal da arguida.
(9) Segundo a alínea 2 de “factos provados em relação à indemnização civil”, o autor contactava a ré (arguida) mais de três vezes, exigindo-lhe que devolvesse o montante antes das 13h00 de 17 de Fevereiro de 2011, caso contrário, efectivaria a responsabilidade jurídica. Pelo que antes da realização da denúncia pelo recorrente, a arguida tinha conhecido as respectivas responsabilidades jurídicas, quer criminais quer civis.
(10) De facto, a responsabilidade pelo risco prevista no Código Civil não exclui a responsabilidade civil do condutor ou comissário (gerente) acima referidos, mas regula a responsabilidade pelo risco do dono do veículo e comitente.
(11) Por isso, não pode ser extinguida a responsabilidade civil da arguida por ela ser gerente da companhia, nem pode aquela ser transferida à sua companhia.
(12) Por outro lado, o recorrente constitui-se assistente na qualidade do ofendido nos termos do artigo 57, n.º 1, al. a) do CPP.
(13) Nos termos do artigo 214 e artigo 220 do CP e os dispostos relacionados com cheque no Código Comercial, o recorrente, como portador legítimo e legal do cheque, deve ser indemnizado por causa do nexo de causalidade necessário e directo entre o delito e o dano.
(14) Na verdade, o regime jurídico prevê o nexo de causalidade adequado, mas não necessário e directo.
(15) Pelo que o acórdão recorrido viola as regras da experiência comum por não ter reconhecido que os factos compreendidos nas alíneas 17 a 19, 23 a 24 e 25 a 37 no pedido da indemnização civil são “factos provados”, e padece do vício de “erro notório a apreciação da prova” previsto no artigo 400, n.º 2, al. c) do CPP. Pelo que o acórdão em causa deve ser declarado anulado.
(16) O recorrente entende que segundo as provas constantes dos autos e as regras da experiência comum, deve declarar provados os factos compreendidos nas alíneas 17 a 19, 23 a 24 e 25 a 37 no pedido da indemnização civil.
(17) Em segundo lugar, o acórdão em causa rejeitou o pedido da indemnização civil, quer dizer que o acórdão entende que a conduta da emissão do cheque sem provisão do arguido não tem relação directa nem necessária com o dano sofrido pelo recorrente. Como se refere anteriormente, a emissão do cheque sem provisão tem relação directa e necessária com o dano do recorrente.
(18) Caso contrário, não podemos esclarecer as relações jurídicas entre o dono do veículo, o condutor e o lesado acima referidos; nem as relações jurídicas entre o comitente, o comissário e o ofendido;
(19) É mais difícil entender porque o recorrente constituiu-se assistente na qualidade do ofendido mas foi considerado não danificado nos autos, e a arguida foi condenada à pena.
(20) Quer dizer que o acórdão recorrido viola, quando rejeitou o pedido da indemnização civil, os dispostos nos artigos 477, 557 e 489 do Código Civil, e o artigo 57, n.º 1, al. a) do CPP, e os dispostos e pensamento legislativo dos artigos 214 e 220 do CP.
(21) O mesmo padece do vício da aplicação errada da lei previsto no artigo 400, n.º 1 do CPP, pelo que o mesmo deve ser anulado.
(22) O recorrente entende que deve declarar procedentes os pedidos do recorrente nas alíneas (3) a (6) da indemnização civil.
(23) Além disso, segundo fls. 19 dos autos, o recorrente foi declarado como assistente pelo Tribunal, pelo que tem legitimidade para recorrer.
(24) No acórdão, a arguida B foi condenada, pela prática, em autoria material e na forma consumada, dum crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punido pelo artigo 214, n.º 1 do CPM, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de MOP$ 100,00, perfazendo MOP$ 9.000,00, convertível em 60 dias de prisão se a mesma não a pagar.
(25) Segundo os artigos 214, n.º 1 e 41, n.º 1 do CP, o crime referido nos autos é punível com pena de prisão entre 1 mês e 3 anos.
(26) Segundo os artigos 214, n.º 2 e 41, n.º 1 do CP, no caso da circunstância agravante, o crime é punível com pena de prisão de 1 mês a 5 anos.
(27) Comparados o artigo 214, n.º 1, n.º 2, al. a) e o artigo 196, al. b) do CP, e o artigo 214, n.º 3, artigo 198, n.º 4, artigo 196, al. c), pode-se formar o entendimento a seguir exposto:
(28) No crime de emissão de cheque sem provisão, quando o valor de cheque encontra-se entre MOP$ 500,00 a 150.000,00, a moldura penal é entre 1 mês e 3 anos de prisão anteriormente referido.
(29) Da alínea 4 dos factos provados resulta que o valor do cheque constante dos autos é MOP$ 70.000,00. Assim sendo, mesmo o cidadão comum pode formar uma conclusão tendo em conta o valor e a moldura penal supracitadas, isto é, (150.000,00 – 501,00)/(36 meses – 1 mês) = 4271,4 patacas/mês; Quer dizer que cada 4271,4 patacas merece 1 mês de prisão.
(30) Considera-se a partir do ponto de vista favorável à arguida, tomamos cada 4300,00 patacas como uma unidade. Assim, pode-se formar a conclusão de que o crime de emissão de cheque sem provisão no valor de MOP$70.000,00 deve ser punido na pena não inferior a 16 meses de prisão.
(31) Em relação à medida da pena, o Tribunal deve considerar os dispostos nos artigos 64 a 68 do CP, para verificar se existe circunstância atenuante.
(32) Dos factos provados resulta que a arguida é delinquente primária, mediadora imobiliária, com rendimento mensal de MOP$15.000,00, não tem encargo familiar, e que o recorrente contactava com a ré pelo menos 3 vezes após ter sido notificado da provisão do cheque. A arguida nunca confessou-se, nem mostrou arrependimento. A arguida não praticou nenhum acto de reparação, quer indemnização patrimonial, quer desculpa.
(33) Tendo em conta o declarado rendimento mensal no valor de MOP$15.000,00, o montante de 9.000,00 patacas só se trata do rendimento de 18 dias.
(34) É provável que a arguida praticou o delito não de forma dolosa nem pelo interesse directo e necessário, no entanto, os factos provados mostram que o assistente notificava pelo menos 3 vezes a arguida da não provisão do cheque.
(35) A arguida tem tempo suficiente para o tratamento do cheque, incluindo divulgar à companhia e procurar auxílio para a resolução, ou negociar com o assistente. A mesma até não notificou o banco para cancelar o cheque constante de fls. 5 dos autos. A arguida não praticou qualquer acto para tratamento do incidente.
(36) Por outra palavra, a arguida não praticou qualquer acto, anterior ao facto ou posterior a este, para atenuar a pena.
(37) No entanto, mesmo que seja diminuído um terço do prazo de 16 meses de prisão supracitado, deve condenar a arguida na pena de 320 dias de prisão. Considerando o princípio mais favorável à arguida, deve condenar a mesma na pena de 10 meses (300 dias) de prisão.
(38) Dado que a arguida não tem antecedente criminal, a pena deve suspender-se na sua execução pelo prazo de 2 anos, com condição de pagamento no prazo de 6 meses da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais requeridos pelo assistente.
(39) Mesmo que o Tribunal entenda que não seja precisa a suspensa da execução da pena de prisão, deveria aplicar uma pena de multa à taxa diária de MOP$ 500,00, perfazendo MOP$ 150.000,00, convertível em 200 dias de prisão se a mesma não a pagar.
(40) No entanto, o acórdão não se entende assim. Pelo que o acórdão recorrido viola, em relação à medida da pena, os artigos 214, n.º 1, n.º 2, al.a) e artigo 196, b) do CP, e o artigo 65 e o princípio da culpa, bem como o pensamento legislativo dos dispostos. O mesmo também padece do vício da aplicação errada da lei previsto no artigo 400. n.º 1 do CPP, pelo que o mesmo deve ser declarado anulado.
(41) O recorrente entende que, segundo os factos provados, deve condenar a arguida numa pena de prisão não inferior a 10 meses (300 dias), suspensa na sua execução pelo prazo de 2 anos, com condição de pagamento no prazo de 6 meses da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais requeridos pelo assistente.
(42) Caso assim não se entendam, aplica-lhe uma pena de multa à taxa diária de MOP$ 500,00, perfazendo MOP$ 150.000,00, convertível em 200 dias de prisão se a mesma não a pagar.
Ultimamente, o recorrente requer ao Tribunal que aprecie todos os vícios nos autos dos quais tem competência para conhecer, e faça a costumeira justiça”; (cfr., fls. 111 a 115 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Respondendo, diz a arguida o que segue:

“I. O Recorrente vem insurgir-se contra o Douto acórdão que condenou a arguida "na autoria material, na forma consumada de um crime de Emissão de cheque sem provisão p.p. no art.° 214 n° 1 do CPM, na multa de 90 dias no valor diário de MOP$100,00, num total de MOP 9.000,00, convertível numa pena de prisão de 60 dias em caso de não pagamento e que,
II. Indeferiu o pedido apresentado pelo demandante civil relativamente ao pagamento de indemnização patrimonial no valor de MOP72.795,00 e de não patrimonial no valor de MOP 50.001,00 juntamente com os juros legais."
III. Argumentando para tanto que o acórdão recorrido " (...) não reconheceu os factos n°s 17 a 19, 23 a 25, 25 a 37 do pedido de indemnização civil, o que consiste, por isso, numa violação ao princípio de experiência comum e que existe o vício de erro notório na apreciação da prova definido no art. 400° n.° 2 alínea c) do CPPM";
IV. Que o indeferimento do pedido de indemnização civil pelo Recorrente, violou os arts. 477°, 557° e 489° do CCM, bem como o art. 57° n.° 1 alínea a) do CPPM e que no que diz respeito à medida da pena, o acórdão recorrido violou o art. 214° n.° 1, n.° 2 alínea a) e o art.. 196° alínea b) todos do CPM; bem como o arf. 65° e o preceituado "princípio da culpa", o espírito legislador do citado, existe o vício proveniente da aplicação da lei errada definido no art. 400° n. ° 1 do CPP .
V. No entendimento da Recorrida, é evidente que o Recorrente não tem razão quando se insurge contra o Douto acórdão com base nos argumentos acima referidos, na medida em que o Tribunal a quo, como lhe competia, fundamentou bem a sua decisão proferida de fls. 126 a 132 dos autos, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
VI. Embora o Tribunal a quo tenha dado por verificado um crime de emissão de cheque sem provisão, o mesmo Ente Julgador fundamentou a sua decisão de não procedência do pedido de indemnização cível deduzido nos autos pelo Assistente,
VII. Quando o Recorrente alega que "O acórdão recorrido "(...) não reconheceu os factos n°s 17 a 19, 23 a 25, 25 a 37 do pedido de indemnização civil", mais não faz do que discordar da decisão proferida.
VIII. Trata-se, no fundo, de um entendimento que Recorrente pode naturalmente ter sobre os factos.
IX. No caso dos presentes autos, evidente é que o Colectivo a quo emitiu pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, elencando a que resultou provada, identificando a que não se provou e, justificando, adequadamente, esta sua decisão.
X. Na verdade, salvo melhor entendimento em contrário, não houve qualquer conclusão logicamente inaceitável que se retirou de um facto tido como provado tal como referido na douta motivação de recurso ora interposto pelo Recorrente, mas sim, a constatação da ausência de prova no que se refere à existência do nexo de causalidade entre a emissão do cheque e os alegados danos sofridos pelo assistente, ora Recorrente.
XI. O Recorrente limita-se a pôr em causa, o princípio da livre apreciação da prova por parte do Tribunal a quo e que se encontra regulado no artigo 114° do Código do Processo Penal.
XII. A decisão proferida foi devidamente fundamentada nos termos da Lei, sendo que o Douto Tribunal a quo, concluiu pela não existência do nexo de causalidade entre a prática dos factos e os prejuízos alegados, pelo que, efectivamente, o Tribunal a quo andou bem, ao decidir pela sobredita improcedência.
XIII. Razão pela qual, por não existir qualquer erro notório na apreciação da prova ou contradição na fundamentação da decisão que encaminhe para a nulidade da mesma, deverá o presente recurso ser manifestamente improcedente, porquanto o fundamento do recurso pretende apenas vir a manifestar a sua mera discordância com a decisão de facto que foi feita ao abrigo do princípio de livre convicção do Tribunal nos termos de artigo 114° do Código de Processo Penal."
XIV. No que concerne à pena aplicada à Arguida, veio o Recorrente insurgir-se alegando para tanto um raciocínio que mais não é do que uma interpretação livre que o Recorrente faz da norma legal vertida nos ns. 1 e 2 do art. 214° do CPM.
XV. Porque salvo o devido respeito por opinião contrária, se fosse esta a ratio legis da referida norma, o legislador teria deixado expressamente consagrado, o que não tendo acontecido, deverão ser aplicadas as regras gerais quanto aos fins e medidas das penas.
XVI. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.° 65.°, a "Teoria da margem da liberdade", segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
XVII. Segundo os artigos 40.° e 65.° do CPM, a determinação da medida da pena deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal, atente a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, e foi segundo este critério da medida da pena, e considerando as circunstâncias concretas neste processo, que o douto tribunal a quo decidiu.
XVIII. Mostrando-se por isso integralmente respeitadoras dos critérios estabelecidos nos arts. 65° e 71° do mesmo Código, nenhuma censura merecendo a pena aplicada à arguida, ora Recorrida”; (cfr., fls. 131 a 139-v).

*

Neste T.S.I. juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Insurge-se o recorrente/assistente, no essencial, contra o indeferimento do pedido cível apresentado, relativamente ao pagamento de indemnizações patrimoniais e não patrimoniais, mostrando-se ainda inconformado com a medida concreta da pena alcançada.
Mas, sem qualquer razão, pelo menos no que diz respeito à matéria eminentemente penal, isto é, na parte em que, fazendo alusão ao não reconhecimento dos factos constantes do pedido de indemnização civil, tal matéria contende, no fundo, com pretendida falta de pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, ou com a manifestação da discordância com a matéria de facto assente pelo tribunal, melhor dizendo, da interpretação que este faz nessa matéria, relativamente à responsabilidade do arguido, limitando-se, em boa verdade, tão síó a expressar a sua opinião “pessoalíssima” acerca da apreciação da prova, por forma a configurar a possibilidade da indemnização pretendida, quando, manifestamente, não se vê que do teor do texto da decisão em crise, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, ao concluir pela falta de existência de nexo de causalidade entre a prática dos factos e os prejuízos alegados, resulte patente, evidente, ostensivo que o julgador errou ao apreciar como apreciou não passando a invocação do recorrente de uma mera manifestação de discordância no quadro do julgamento da matéria de facto, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame de direito.
Finalmente, atenta a moldura penal abstracta do ilícito imputado, todo o circunstancialismo envolvente dos factos consubstanciadores do mesmo e a devida ponderação do disposto nos art° 40° e 65°, C.P., afigura-se-nos que a pena concretamente apurada se apresenta como justa e adequada, a não merecer reparo.
Tudo razões por que se entende não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 199 a 200).

*

Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Vem dados como provados os factos seguintes:

“1.
A arguida B é a gerente de XX Limitada (XX地產).
2.
XX Limitada (XX) foi incumbida de realizar operações de compra e venda de bens imóveis pelo ofendido A, que pagou à esta companhia HKD 70.000,00 como depósito para compra dum bem imóvel.
3.
Entretanto, dado que a operação de compra não foi feita, a arguida comprometeu, na qualidade da gerente de XX Limitada (XX地產), ao ofendido que devolver-lhe-ia a importância do depósito supracitado.
4.
Em 12 de Fevereiro de 2011, a arguida emitiu ao ofendido um cheque bancário para o reembolso da quantia do depósito (cheque do Banco da China, sucursal de Macau, n.º 978201, no valor de HKD 70.000,00, data de levantamento: 15 de Fevereiro de 2011) (ora apreendido nos autos, vd. fls. 5).
5.
Em 15 de Fevereiro de 2011, o ofendido dirigiu-se, com o cheque supracitado, ao sucursal de Macau do Banco da XX para levantar o dinheiro, mas foi notificado de que o saldo da conta da arguida não era suficiente. (vd. fls. 5)
6.
A arguida emitiu dolosamente cheque a outrem, bem sabendo que o saldo da sua conta bancária não era suficiente para cobrir o valor daquele.
7.
A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente ao praticar a conduta supracitada, bem sabendo que esta é legalmente proibida.
Segundo o registo criminal, a arguida é delinquente primária.
A arguida é mediadora imobiliária, recebe mensalmente MOP$15.000,00, não tem cargo familiar.
*
(Factos provados em relação à indemnização civil)
Realizada a audiência de julgamento, também se provou:
1. O respectivo cheque foi recusado pelo Banco, que procedeu a selagem no seu verso e assinou, como seguinte (vd. fls. 5 dos autos, o teor do cheque):
“CHEQUE NO. HE978201
AMOUNT: HKD70000
RETURNED UNPAID REASON:
INSUFFICIENT FUNDS
FOR BANK OF XX MACAU BRANCH
(ASS.) 318
AUTHORIZED SIGNATURE(S)
DATE:2011/2/15
2. A seguir, o autor contactou com a ré pelo menos três vezes, exigindo-lhe que devolvesse o montante antes das 13h00 de 17 de Fevereiro de 2011, caso contrário, efectivaria a responsabilidade jurídica.
3. O autor realizou na tarde de 18 de Fevereiro de 2011 ao MP uma denúncia (vd. fls. 1).
4. A ré recusou-se a pagar o montante em causa ao autor.
5. Por causa da constituição de assistente, o autor efectuou o pagamento das taxas processuais no valor de MOP$590,00.
6. O autor preocupou-se em não poder recuperar aquele HKD$ 70.000,00.
7. O autor sofreu mentalmente pressão e dores”.

Por sua vez, e no que toca aos factos não provados, consignou-se o que segue:

“Realizada a audiência de julgamento, este Tribunal entende não provados os factos a seguir expostos:
Com a finalidade dilatória e evasiva do pagamento das dívidas, a arguida emitiu dolosamente cheque a outrem, bem sabendo que o saldo da sua conta bancária não era suficiente para cobrir o valor daquele.
Consideram-se não provados os restantes factos que não estão em conformidade com os provados”; (cfr., fls. 90 a 91 e 156 a 159).

Do direito

3. Vem o assistente dos autos recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B., colocando como questões, a do “erro notório na apreciação da prova” (quanto aos danos pelo mesmo sofridos e oportunamente reclamados), e “erro de direito”, tanto no que toca na pena como em relação ao pedido de indemnização civil que deduziu.

Cremos, porém, que o acórdão padece de “contradição insanável”.

Com efeito, o vício em questão tem sido por este T.S.I. entendido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g. no Acórdão deste T.S.I. de 24.05.2012, Proc. n° 179/2012).

E, no caso, em simultâneo, e sem qualquer explicitação adicional, deu o Colectivo a quo “como provado” que:

“A arguida emitiu dolosamente cheque a outrem, bem sabendo que o saldo da sua conta bancária não era suficiente para cobrir o valor daquele”; e que,
“A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente ao praticar a conduta supracitada, bem sabendo que esta é legalmente proibida”; e, como “não provado” que:
“Com a finalidade dilatória e evasiva do pagamento das dívidas, a arguida emitiu dolosamente cheque a outrem, bem sabendo que o saldo da sua conta bancária não era suficiente para cobrir o valor daquele”.

Perante isto, e atento o estatuído no art. 418° do C.P.P.M., impõe-se o reenvio dos autos.

Com efeito, e como em recente Acórdão deste T.S.I. se consignou: “o Tribunal de recurso tem o “poder dever” de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, ou seja, numa decisão que não padeça de “insuficiências”, “contradições insanáveis da fundamentação” ou “erros notórios na apreciação da prova”, que a suceder e sendo insanáveis, impedem aquela, originando o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art° 418° do C.P.P.M.”; (cfr., fls. Ac. 11.10.2012, Proc. n.° 461/2012).

Assim, somos pois de opinião que os vícios do art. 410°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M., são de “conhecimento oficioso”.

Nesta conformidade, constatando-se o vício em questão, sendo o mesmo insanável, e observado que foi o contraditório, (cfr., “acta de julgamento”) impõe-se reconhecer que não se pode manter a decisão recorrida, (não sendo também de acolher a alegação da arguida ora recorrida, porque, para além do demais, desacompanhada de qualquer elemento comprovativo).

Por sua vez, sendo que a “matéria” em questão é também essencial para se poder emitir pronúncia sobre as questões pelo recorrente colocadas no seu recurso, há que dar as mesmas por prejudicadas.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam ordenar o reenvio dos autos para novo julgamento no T.J.B..

Custas pelo vencido a final.

Macau, aos 25 de Outubro de 2012
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (com declaração de voto)









Declaração de voto ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 663/2012
Votei vencido no Acórdão hoje emitido por este Tribunal de Segunda Instância nos presentes autos de recurso penal n.o 663/2012, porquanto tenho andado a defender em recursos penais anteriormente julgados que o vício de contradição insanável da fundamentação a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea b), do Código de Processo Penal não é de conhecimento oficioso.
               O primeiro juiz-adjunto,
                
Chan Kuong Seng

Proc. 663/2012 Pág. 26

Proc. 663/2012 Pág. 1