打印全文
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
B instaurou contra a C procedimento cautelar especificado de suspensão de deliberações sociais, pretendendo que fosse decretada a suspensão de todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral extraordinária desta sociedade, ocorrida em 5 de Novembro de 2009.
Por sentença proferida em 8 de Junho de 2012, foi julgado parcialmente procedente o procedimento cautelar e, em consequência, determinada apenas a suspensão das deliberações tomadas na assembleia geral da requerida, em 5 de Novembro de 2009, de ratificar o processado em processos judiciais ou outros em que a requerida fosse parte e de nomear representante especial da requerida para executar tal deliberação.
Inconformada com esta decisão, recorreu a Requerente B para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu, por sua vez, conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida na parte que indeferiu a suspensão das deliberações e, em consequência, ordenando a suspensão das mesmas.
Deste Acórdão vem agora a assistente da Requerida, A, recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a decisão do Tribunal de Segunda Instância proferida nos autos acima identificados, a qual revogou a decisão do Tribunal Judicial de Base que havia indeferido o pedido de suspensão de duas deliberações sociais.
2. As deliberações em causa são uma deliberação sobre “acção de responsabilidade a intentar pela Sociedade contra os administradores do Conselho de Administração, Srs. D e E, com as legais consequências”; e uma deliberação sobre “nomeação de representante especial da Sociedade para o exercício do direito à indemnização contra os administradores referidos no ponto anterior”, ambas aprovadas por uma maioria de 68% do capital social da Sociedade, participação da ora Recorrente, e com os votos contra da ora Recorrida, detentora de 311,727% do capital social da referida Sociedade
3. O acórdão em crise foi proferido na sequência de um recurso interposto pela ora Recorrida com base em três argumentos, dos quais apenas dois se discutem no presente recurso, a saber, que as deliberações foram tomadas sem a maioria de votos exigível nos termos estatutários, e ainda, a título subsidiário, que foram tomadas à fraude da lei.
4. O acórdão em crise concluiu que a decisão sobre esta matéria passava pela análise de duas questões essenciais, as quais resumiu da seguinte forma:
a) o nº. 1 do art. 247º do C.Com é ou não uma norma imperativa?
b) na hipótese negativa quanto à primeira questão, a deliberação de propor a acção de responsabilidade contra os administradores visados está sujeita à maioria qualificada prevista no nº. 2 do art. 18º dos Estatutos? Ou, pelo contrário, os Estatutos são omissos desta matéria, pelo que deve aplicar-se supletivamente o nº. 1 do art. 247 do C.Com.?
5. O Tribunal de 1.ª instância entendeu, e bem, que “O elemento literal não exclui o carácter imperativo da norma e não atribui expressamente carácter supletivo, como seria o caso de referir “na ausência de disposição estatutária em contrário ...”, como ocorre no art. 344º, nº. 1, ou “sem prejuízo de disposição diversa dos estatutos”, como ocorre nos arts. 352, nº. 2, 381º, nº. 1 e 453º do Código Comercial. Assim, o elemento literal da interpretação aponta para o carácter imperativo, uma vez que as normas jurídicas são comandos, são critérios de decisão e, por isso, nada dizendo, são, em princípio insusceptíveis de ser afastadas por vontade dos destinatários. As normas supletivas surgem em matérias que as partes podem regular e como forma de, caso não o façam, estabelecer o regime mais adequado ou mais usualmente estabelecido quando as partes optam por o regular expressamente. Por isso tais normas ressalvam o caso de as partes disporem de modo diferente, ressalva que o art. 247º não comporta, assim apontando para o carácter imperativo.”
6. O Tribunal a quo, porém, concluiu que do elemento literal não resulta que a norma constante do nº. 1 do art. 247º seja imperativa, citando como exemplo o art. 467º, nº. 4, do C.Com., o qual, não obstante a sua letra não indicar a possibilidade de os estatutos exigirem maioria diferente, o próprio Tribunal a quo tem entendido que admite disposição estatutária em sentido diverso. Porém, esta analogia não é de todo aceitável.
7. Bem notou o Tribunal de 1.ª instância que as diversas normas sobre quóruns deliberativos a este respeito que podemos encontrar no C.Com apontam para a imperatividade da norma em crise (por exemplo, os art. 344º, n º. 1, 352º, nº. 2, 381º, 382º e 453º, nº. 1 do C.Com.).
8. O argumento do Tribunal a quo no sentido da supletividade assente no facto de, no art. 248º, o mesmo tipo de acção poder ser intentado por um sócio que detém uma participação no capital não inferior a 10% não colhe desde logo porque, nesta disposição, o legislador facilitou a possibilidade de impulso no sentido da responsabilização de administradores, quando a questão que se coloca é se é permitido aos estatutos dificultar, ou seja, elevar a maioria exigida por lei para responsabilizar administradores.
9. Isto decorre, nomeadamente, do facto da secção em que a disposição em análise se insere conter normas que, para além de interesses particulares da sociedade e dos sócios, protegem também interesses de terceiros, pelo que são normas de interesse público porquanto prevêem-se diversas formas de impulsos destinados a evitar a diminuição do património da sociedade ao ponto de pôr em causa a garantia dos credores e a satisfação dos seus créditos, logo, tratando-se de normas de interesse público, enfermam de carácter imperativo.
10. Isto explica a razão por que o nº. 1 do art. 246º estatui que “É nula a cláusula que exclua ou limite a responsabilidade dos administradores”.
11. O Tribunal de 1.ª instância concluíu e a doutrina portuguesa aponta indubitavelmente no sentido da imperatividade do nº 1 do art. 24º do C.Com.
12. A doutrina que propugna pela supletividade do quórum deliberativo previsto no nº 4 do art. 467º, justifica-o sobretudo porque estão em causa exclusivamente interesses privados dos sócios, pelo que cai por terra o argumento do Tribunal a quo.
13. Deste modo, deve a norma plasmada no art. 247º, nº. 1, ser considerada de natureza imperativa.
14. Se assim não se entender – o que em hipótese alguma se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se admite –, nem assim se deverá considerar que acção de responsabilidade contra os administradores visados está sujeita à maioria qualificada prevista nos estatutos da Sociedade. Vejamos.
15. Da aprovação de tal deliberação resultou a destituição ope legis dos administradores visados na mesma por efeito do art. 247º, nº. 2, do C.Com.
16. Entendeu o Tribunal a quo que a deliberação de intentar acções de responsabilidade contra administradores tem de ser aprovada por uma maioria qualificada de votos correspondentes a 75% do capital social da Sociedade, conforme alega decorrer do disposto no art. 18º, nº. 2, porquanto, em sua opinião, o art. 247º, nº. 1, do C.Com. não constitui uma norma imperativa.
17. A jurisprudência seguida pelo Tribunal a quo no sentido de que, apesar da destituição dos administradores decorrer automaticamente de uma deliberação de propor acções de responsabilidade civil contra esses administradores, por se tratar de uma deliberação que implica a destituição de administradores, não pode deixar de se atender à maioria exigida no nº. 2 do art. 18º dos estatutos da Sociedade sob pena da própria decisão escapar à sujeição da vontade societária.
18. Porém, não se podem comparar as alterações orgânicas normais da vida de uma sociedade com a situação, anormal, de os sócios estarem a exigir responsabilidades civis ou criminais dos seus administradores.
19. E não se pode presumir que os sócios, ao elaborarem os seus estatutos, desconheciam a norma do art. 247º do C.Com. e que, conhecendo a norma, ainda que supletiva, não se conformariam com ela; De resto, mesmo ignorando a norma, essa ignorância não os aproveitaria, nos termos do disposto no art. 5º do CC.
20. Não se encontra previsto nos estatutos da Requerida, nem resulta do seu espírito, que as partes pretenderam estabelecer uma maioria para as deliberações de intentar acções contra os seus administradores.
21. O art. 18º, nº 2, dos estatutos da Sociedade não pode ter a virtualidade de impor, de forma indirecta, uma maioria qualificada de 75% dos votos para validamente ser possível deliberar intentar esse tipo de acções de responsabilidade, apenas pelo facto de, com a sua aprovação, por força do art. 247º, nº. 2, do C.Com., tal implicar a destituição dos administradores visados nessa deliberação.
22. Quanto à possibilidade aventada pelo Tribunal a quo de os sócios poderem, eles próprios, propor a acção de responsabilidade, tal nem sempre é praticável na medida em que a sociedade tem de ser sempre chamada ao processo, pelo que, sendo a sociedade chamada representada pelos seus administradores (precisamente os visados), estes, obviamente, privilegiariam em primeiro lugar os seus interesses, comprometendo o resultado dessa acção.
23. O último argumento da Recorrida, formulado subsidiariamente, no sentido de que existiria fraude à lei na aprovação da deliberação em crise, na medida em que o fim único e último visado com a sua aprovação era a destituição dos administradores objecto da deliberação em questão, não colhe.
24. Neste sentido foi clara a sentença do Tribunal de 1.ª instância, concluindo pela sua inexistência, referindo que fraude à lei consiste na prossecução de um fim (resultado) proibido (ilícito) através de um meio permitido mas estabelecido para alcançar fins imediatos diferentes, operando, portanto, este instituto, apenas em face de fins ou resultados e não em face de simples proibição de meios determinados.
25. Resulta claramente da matéria de facto assente que a ora Recorrente tinha razões mais do que suficientes para votar favoravelmente que a Sociedade demandasse judicialmente os administradores em questão, tanto que a Sociedade intentou a acção de responsabilidade resultante da deliberação aprovada, como os mesmos dois administradores foram já judicialmente destituídos dos seus cargos por decisão proferida noutra acção (embora sem transito em julgado, além de contra ambos estar em curso um procedimento criminal onde ambos foram acusados e pronunciados).
26. Por outro lado, sendo a destituição uma consequência ipso iure da lei, a destituição desses administradores não pode consubstanciar fraude à mesma lei se o resultado é aquele que a própria lei impõe, de forma imperativa.
27. A sentença do Tribunal de l.ª instância acrescentou ainda que, visando a fraude à lei o objecto do negócio e não o fim mediato do mesmo ou a sua motivação remota, ocorre fraude à lei, apenas e só, em face do fim imediato proibido.
28. No caso dos autos, o objecto da deliberação em análise – intentar acções de deliberação contra dois administradores, a qual provoca, com a sua aprovação, a destituição dos mesmos, por força da lei – não é um resultado proibido, nem o meio escolhido – voto favorável de uma sócia no sentido de demandar dois dos administradores da Sociedade – revela qualquer ilicitude.
29. Quanto à segunda deliberação em crise, sustentou a ora Recorrida que a deliberação de designar um representante especial da Sociedade para intentar a acção de responsabilidade aprovada contra os dois administradores é inexistente ou, caso assim não se entenda, nula, violando assim o disposto no art. 225º, nº. 1, do C.Com, porque, no seu entender, na medida em que o representante especial eleito irá desempenhar funções de administração, a deliberação que o nomeou violou a regra estatutária do artigo 18º, nº. 2, dos estatutos da Recorrida que impõe uma maioria de votos favoráveis de 75% do capital social.
30. Todavia, o art. 247º, nº 2 do C.Com. não exige qualquer maioria qualificada para esta a nomeação de representante.
31. Por outro lado, os actos a praticar pelo representante especial são actos isolados e determinados não podendo a sua prática ser equiparada ao exercício da função de administrador
32. Por tudo o exposto, sendo válidas todas as deliberações em análise neste recurso, não está preenchido o primeiro requisito essencial para a decretação de uma providência que é a probabilidade séria da existência do direito – fummus boni iuris.
33. Quanto ao perículum in mora, entendeu o Tribunal a quo que a execução da primeira das deliberações em crise pode causar dano à Requerente, ora Recorrida, porquanto implica a destituição imediata dos administradores visados, os quais são pessoas da sua confiança, quebrando, no seu entender, o equilíbrio de forças [alegadamente] estabelecido de início entre as ora Recorrente e Recorrida.
34. Sucede apenas ficou dado como provado na matéria de facto assente que a composição do Conselho de Administração foi criteriosamente ponderada e decidida;
35. Acresce que a composição do Conselho de Administração não foi decidida para vigorar por tempo indeterminado enquanto se mantivesse a estrutura societária em causa, pois ta; nunca um sócio maioritário criterioso e ponderado aceitaria!
36. A explicação para esta suposta divisão de poderes explica-se por factos também dados como provados mas ignorados pelo acórdão em crise, no sentido de que a designação dos actuais membros da administração foi feita na sequência de um contrato mediante o qual a Recorrida se tinham obrigado a adquirir 99,727 do capital social da Sociedade, razão pela qual apontou dois administradores e as deliberações mais relevantes da vida da sociedade tinham que merecer a sua concordância; mas a aquisição das acções pela Recorrida não se concretizou, tendo esta ficado apenas com 31,727% do capital social.
37. Por outro lado, como referiu e bem a sentença do Tribunal de 1.ª instância, o outro propósito mas aplicável a este respeito, “(…) o direito comercial não visa uma iniciativa privada amorfa, angélica e sem agressividade, (…) onde o facto de os sócios das sociedades comerciais pretenderem o controle destas e a supremacia em relação aos outros sócio é “da vida diária” e nada tem de inaceitável em termos jurídicos(…).”.
38. A decorrer algum prejuízo desta destituição ipso iure, tal prejuízo verificar-se-ia exclusivamente na esfera jurídica particular da pessoa dos administradores em questão.
39. Mas decorre da lei a possibilidade de uma sociedade poder destituir administradores a todo o tempo sem necessidade de alegar justa causa, caso em que os administradores teriam direito a indemnização.
40. Acresce que existe um intenso conflito judicial entre as Recorrente e Recorrida, tendo ambas intentado várias acções que se encontram presentemente em curso que causaram a paralisação da sociedade, donde a destituição dos administradores da confiança da ora Recorrida não tem qualquer efeito prático na vida societária.
41. Assim, pela ausência de periculum in mora, não se justifica a suspensão das deliberações em crise.
42. Deste modo, conclui-se que inexiste perigo de quaisquer danos resultantes da execução das deliberações in quesito que justifiquem a sua suspensão cautelar, razão pela qual deverá improceder o pedido da Recorrente, devendo, consequentemente, ser dado provimento ao presente recurso, decidindo-se, a final, pela não suspensão das deliberações em questão.

A requerente B apresentou contra-alegações, que terminam com as seguintes conclusões:
A. Resulta da interpretação dos estatutos da Requerida, particularmente do artigo 18º, que a maioria necessária para aprovar deliberação de accionar os administradores, com a consequente destituição, é de 75% do capital social.
B. Assim não se entendendo, resulta dos Estatutos da Requerida que o efeito “destituição de administradores” – resultante da deliberação que aprova instauração de acção de responsabilidade contra administradores – só se produz se tiver sido aprovada com a maioria qualificada prevista no artigo 18º, nº 2.
C. O art. 247º, nº 1, do CCom não constitui uma norma imperativa.
D. O art. 247º tem de ser interpretado em vista dos arts. 225º, nº 1, e 453º, nº 1, do CCom, devendo aquele ceder perante estes, bem como do art. 467º, nº 4.
E. A paridade de consequências jurídicas entre duas normas (arts. 225º, nº 1, e 453º, nº 1, por um lado, e art. 247º, nº 1, por outro) impõe paridade das maiorias exigidas para aprovação de deliberações.
F. O regime jurídico aplicável às deliberações que tenham como consequência necessária (e conhecida) a destituição dos administradores deve ser o mesmo que o que regula as deliberações que a tenham como consequência directa a sua destituição. Não existe diferença normativa ou valorativa de relevo entre uma e outra.
G. A deliberação a que o art. 247º (nºs 1 e 2) se refere tem dois efeitos jurídicos devendo ser interpretada valorando ambos os efeitos (e não só um deles), tendo, designadamente, em atenção o disposto no art. 248º.
H. O art. 248º confirma a interpretação do TSI do art. 247º; na visão da Recorrente, a lei atribuiria à sócia não o direito de acção (como é o caso), mas um mero direito de impulso processual, pela sócia, de uma acção que passaria então a ser da sociedade, e não da sócia, o que não faz sentido e não resulta da lei.
I. A ratio legis é a de que do art. 247º, nº 2, resulta que uma deliberação aprovada por mera maioria simples não pode implicar a destituição de administradores que os mesmos sócios não poderiam destituir nos termos contratualmente estabelecidos nos Estatutos da sociedade (arts. 225º e 453º).
J. Permitir este este absurdo jurídico: (1) desrespeitaria a finalidade da lei, (2) desrespeitaria a coerência valorativa e normativa da lei, (3) constituiria causa de falta credibilidade do sistema jurídico e (4) violaria a vontadeexpressamente protegida por lei (arts. 225º, nº 1, e 453º, nº 1), das partes contratantes manifestada nos Estatutos.
K. A deliberação de accionar os administradores, com a consequente destituição dos mesmos, aprovada por maioria inferior a 75% do capital social, é inexistente, por violação do art. 225º, nº 1, do CCom., ou, assim não se entendendo, é nula nos termos do art. 228º do CCom..
L. De qualquer modo, seria inexistente ou nula a decisão do presidente da Assembleia Geral que declarou os administradores destituídos em consequência de deliberação aprovada sem a maioria qualificada prevista nos Estatutos.
M. A não se entender que a deliberação em causa viola a maioria estatutária, a mesma padeceria de qualquer modo de fraude à lei, pois o fim único e último visado com a aprovação da deliberação foi efectivamente a destituição dos administradores.
N. Ainda que a intenção da sócia que aprovou a deliberação em causa pode ter genuinamente visado os dois efeitos jurídicos de intentar acção de responsabilidade e de destituir os administradores, e não visar somente a sua destituição (o que só por cuidado de patrocínio se admite), haveria, ainda assim, fraude à lei relativamente à finalidade “destituir administradores” (mesmo que não houvesse fraude à lei relativamente à finalidade “accionar administradores”).
O. A deliberação que designou um representante especial da sociedade nos termos constantes do ponto b) da ordem de trabalhos, para efeitos da acção de responsabilidade a intentar contra os administradores da Requerida é inexistente ou, assim não se entendendo, nula, por violar a maioria estatutária de 75% do capital social, violando o disposto no art. 225º/1 do CCom..
P. Ficou provado o dano, o qual resulta da própria violação estatutária não necessitando, pois, de ser provado (de acordo com a jurisprudência dominante).

Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.

2. Factos Provados
Ficou assente a seguinte factualidade:
1. A Requerida é uma sociedade comercial sob a forma de sociedade anónima sediada em Macau.
2. No dia 05 de Novembro de 2009 realizou-se na respectiva sede social uma assembleia geral da Requerida.
3. Nessa assembleia foram tomadas deliberações.
4. A Requerente é uma sociedade comercial sob a forma de sociedade por quotas, também sediada em Macau, e é accionista da Requerida, na qual detém 174,500 acções no valor nominal de MOP$17,450,000.00, correspondente a 31,727% do capital social.
5. Em 14 de Outubro de 2009 foi publicado nos jornais Ou Mun e Jornal Tribuna de Macau a convocatória para a referida assembleia geral extraordinária da Requerida, com a seguinte ordem de trabalhos.
“a) Acção de responsabilidade a intentar pela Sociedade contra os administradores do Conselho de Administração, Srs. D e E, com as legais consequências;
b) Nomeação de representante especial da Sociedade para o exercício do direito à indemnização contra os Administradores referidos no ponto anterior;
c) Ratificação do processado em processos judiciais ou outros em que a Sociedade seja parte;
d) Nomeação de representante especial da Sociedade para a execução das deliberações tomadas ao abrigo do ponto anterior;
e) Outros assuntos do interesse da Sociedade.”
6. A assembleia geral deliberou instaurar a acção de responsabilidade contra os dois administradores mencionados na convocatória, deliberou ratificar todos os actos praticados por determinados advogados, que identifica, em todos os processos judiciais em que a Requerida seja parte e se encontre representada por aqueles advogados e deliberou constituir os procuradores a que alude a convocatória.
7. O ponto a) da ordem de trabalhos não contém “menção de quais os actos, nomeadamente deliberações do Conselho de Administração, que fundamentam a proposta de acção de responsabilidade.
8. O ponto c) da ordem de trabalhos não contém menção de quais os “processos judiciais ou outros” em causa, nem de quais as intervenções a ratificar.
9. Há cerca de uma dezena de acções em que a Requerida é parte
10. A ordem de trabalhos da assembleia não contém a indicação dos documentos que se encontravam na sede social para consulta dos sócios.
11. É também accionista da Requerida a sociedade A, com 68% do capital social, a qual esteve presente na assembleia.
12. E são ainda accionistas da Requerida os Srs. F e G, titulares, respectivamente, de 0,145% e 0,127% do capital social, os quais, porém, têm desde há anos paradeiro desconhecido.
13. Na assembleia da Requerida foi deliberada a instauração pela Sociedade de uma acção de responsabilidade contra os administradores do Conselho de Administração, Srs. D e E.
14. Nos termos do art. 18º/2, dos Estatutos da Requerida, a destituição de membros do conselho de administração tem de ser aprovada por uma maioria qualificada de três quartos do capital social.
15. A deliberação de instaurar acção de responsabilidade contra os administradores foi aprovada apenas com os votos da sócia Hotel.
16. A Requerida tem três administradores, que são os Srs. D, E e H.
17. Administradores que constituem dois grupos, pois os dois primeiros foram indicados pela Requerente e o último foi indicado pela sócia Hotel.
18. Esta composição do Conselho de Administração foi criteriosamente ponderada e decidida, ficando a Hotel, como accionista maioritária, com dois terços dos votos na Assembleia Geral, e a Requerente, como accionista minoritária, com dois terços dos votos do Conselho de Administração.
19. Já havia sido convocada uma assembleia Geral da Requerida que se realizou em 01/09/2008, tendo também como ponto da ordem de trabalhos a instauração de uma acção de responsabilidade civil contra os administradores.
20. Sendo que os titulares do Conselho de Administração eram então os mesmos três que são hoje, entre os quais os Srs. D e E.
21. A proposta recebeu então votos favoráveis da Hotel e votos contra da Requerente.
22. Na falta de Presidente da Mesa, foi declarada aprovada a deliberação.
23. A Sentença de 17 de Dezembro de 2008 do Tribunal Judicial de Base, no âmbito do Proc. Cautelar nº CV3-08-006l-CAO-A, suspendeu a deliberação.
24. A Requerida instaurou a acção de indemnização contra os administradores.
25. O fundamento da acção é os administradores terem autorizado a constituição de uma hipoteca em 04-Março-2008 para garantia de um mútuo destinado a financiar a construção de um empreendimento no terreno concessionado da titularidade da Requerida.
26. Da vez anterior deliberou accionar os três administradores da Requerida.
27. Desta vez, decidiu-se accionar apenas os administradores que são afectos à Requerente e, deixar em exercício o único afecto à sócia Hotel.
28. Na deliberação de l-Setembro-2008 o fundamento foi a constituição de uma hipoteca que já havia sido distratada e cancelada no registo e na deliberação de 05/11/2009 foi alegado como fundamento:
i. ilegalidade de convocatória de uma reunião do Conselho de Administração,
ii. a deliberação ali tomada de revogação do mandato dos advogados que têm escritório onde o Sr. I, sócio administrador da Hotel, presta serviço.
iii. a manifestação de não ratificação de actos praticados, por aqueles advogados.
iv. o facto de entenderem que a actuação destes advogados não é benéfica para os interesses da sociedade e,
v. o facto de um membro do Conselho de Administração ter revelado que a negação de factos provados documentalmente dificulta uma eventual resolução amigável do litígio.
29. A Requerida deliberou ratificar intervenções processuais feitas por mandatários judiciais constituídos pelo Conselho de Administração que o Tribunal suspendeu em l7-Dezembro-2008.
30. As deliberações sociais em apreço não identificam todas as acções nas quais serão praticados os actos de ratificação, nem enuncia os interesses a proteger.
31. E quando as identifica não diz quais são os actos que devem ser ratificados.
32. Nem na assembleia geral foram discutidas razões a favor ou contra a ratificação.
33. Foi deliberado ratificar o anterior processado, entre outros, na acção que corre termos no 2º Juízo Cível deste Tribunal Judicial de Base, com o nº CV2-08-0067-CAO.
34. Nessa acção é autora a Hotel e é ré a Requerida.
35. Nessa acção a Requerida apresentou uma contestação onde confessou expressamente parte dos factos alegados.
36. A deliberação de ratificação do processado naquela acção foi tomada exclusivamente com os votos favoráveis da Hotel.
37. A votação foi aprovada com 3740 votos a favor da sócia Hotel e 1745 votos contra da Requerente.
38. Na sequência das deliberações relativas aos pontos a) e c) da ordem de trabalhos, foi aprovado designar representante especial da sociedade o Sr. J, nos termos constantes dos pontos b) e d) da ordem de trabalhos.
39. A eleição de administradores da sociedade está sujeita à regra estatutária de 75% dos votos favoráveis, prevista no artigo 18º/2.
40. A Requerente e a Hotel tomaram-se sócias da Requerida em 06-Junho-2006.
41. E foi nesse mesmo dia que foram designados para o Conselho de Administração composto pelos três actuais administradores, Srs. D, E e H, os dois primeiros pela primeira vez e o terceiro reconduzido.
42. A Hotel detém dois terços dos votos na Assembleia Geral, e a Requerente dois terços dos votos do Conselho de Administração.
43. Foi estipulado no artigo 18º dos Estatutos da Requerida que as deliberações “nas Assembleias Gerais que tenham por objecto deliberar sobre a nomeação, destituição, exoneração ou alteração dos membros dos órgãos sociais (…) só se consideram aprovadas se reunirem os votos favoráveis correspondentes a pelo menos três quartas partes do capital social”.
44. A Assistente pretende tornar administrador único o administrador H, a si afecto seu sócio e administrador.
45. A Assistente pretende também afastar a Requerente das decisões relativas ao destino da Requerida.
46. Encontram-se em curso diversas acções judiciais pendentes em que a Requerida é parte, seja autora seja ré.
47. Acções, algumas das quais foram instauradas depois da referida Assembleia Geral de 01-Setembro-2008 que tomou as deliberações suspensas judicialmente.
48. Nessas acções foi suscitada a questão ou foi mesmo já decidido que os membros do Conselho de Administração então eleitos apenas com os votos da Hotel não representam a Requerida, pelo que se verifica nas mesmas quanto a esta o vício de irregularidade de representação, no âmbito dos pressupostos da capacidade judiciária e do patrocínio judiciários.
49. Numa dessas acções, a nº CV2-08-0067-CAO, é peticionada a declaração de nulidade de uma deliberação social de 06-Junho-2006, portanto dois anos antes, com o mesmo propósito de procurar afastar o Conselho de Administração da Requerida actualmente em exercício e fazer repristinar um anterior afecto a si.
50. E verifica-se em tal acção, por um lado, que a Hotel é representada pelo Sr. K, que presidiu à Assembleia Geral de 01-Setembro-2008 da Requerida e que exerce funções no escritório de advogados que tem representado esta última.
51. E que a Requerida, representada por advogados do mesmo escritório onde exerce funções o Sr. K, apresentou uma contestação onde confessou expressamente parte dos factos alegados.
52. A Hotel intentou uma acção contra a Requerida na qual esta, representada pelos advogados do escritório onde o Sr. K exerce funções, confessou parte das alegações de facto contra si feitas.
53. O Sr. H, sempre representou interesses coincidentes com os do Sr. K.
54. A nomeação de procurador especial da sociedade para executar as deliberações terão entre muitos outros efeitos, o de este ratificar intervenções processuais da Requerida confessando factos que lhe são desfavoráveis.
55. E esta actuação seria concretizada a muito breve prazo, seguramente antes de a Requerente poder recorrer com êxito a uma acção comum que componha definitivamente os interesses em conflito.
56. A acta da assembleia geral onde foram tomadas as deliberações aqui impugnadas foi enviada, logo no dia 6 de Novembro, por correio, à requerente, ao Sr. D e ao Sr. E administrador da requerida.
57. A acta foi inclusivamente enviada pela Ilustre Advogada L – que assistiu o presidente e a secretária na sua elaboração – ao Ilustre advogado signatário do requerimento inicial, enquanto mandatário da requente, por protocolo, também logo no dia 6 de Novembro.
58. A Requerente sabe quais os processos em que a Requerida é parte.
59. Só quando começou a reunião é que a Requerente solicitou os processos judiciais, textos de propostas e currículo de pessoas propostas ou a propor para representante especial da sociedade.
60. Jamais foi dirigido qualquer pedido de informação ou de elementos à sociedade, verbal ou por escrito, com uma antecedência mínima.
61. No momento da reunião e a pedido da requerente e do seu mandatário, foram-lhe disponibilizados os processos nos quais a Requerida é parte.
62. Também a deliberação do Conselho de Administração, com base na qual foi proposta a deliberação da assembleia geral de intentar acções judicias, foi entregue à Requerente.
63. A Requerente estava na posse dessa deliberação pois a mesma foi tomada pelo Sr. D, numa alegada reunião que apenas ele esteve presente, mas alegadamente também representava o Sr. E.
64. Que é administrador da Requerente,
65. D foi administrador da Requerente e, continua a ser o representante dos seus interesses na administração da Requerida.
66. Antes da reunião não foi solicitado verbalmente ou por escrito qualquer elemento e aqueles que foram solicitados na reunião e que estavam disponíveis foram fornecidos.
67. Os estatutos nada dispõe quanto à deliberação de intentar acções contra os seus administradores.
68. A designação dos actuais membros da administração foi feita na sequência de um contrato mediante o qual a Requerente, seus sócios ou entidades com ela relacionadas se tinham obrigado a adquirir 99,727% do capital social da Requerida.
69. Razão pela qual, apontou dois administradores e as deliberações mais relevantes da vida da sociedade tinham que merecer a sua concordância.
70. A aquisição das acções pela Requerente não se veio a concretizar.
71. Ficando apenas com 31,727% das acções da Requerida.
72. Foram apresentadas queixas crime e acções cíveis contra os membros do conselho de administração da Requerida.
73. Através de um procedimento cautelar, a requerente logrou, em primeira instância, conseguir a suspensão da deliberação de interpor acções judiciais contra os mesmos, levando assim à sua recondução.
74. Havia um contrato mediante o qual o grupo a que pertence a requerente e, inicialmente, também a sócia A, adquiriria 99,727% das acções da Requerida.
75. As adquirentes destas acções seriam a requerida B e a A (Hotel), ambas representadas pelo Sr. M.
76. Na sequência desse negócio de aquisição das acções, no dia 6 de Junho de 2006, os Srs. D e E passaram a fazer parte da administração da Requerida, conjuntamente com o Sr. H.
77. Os promitentes vendedores continuaram a ter um representante na administração, através da pessoa do Sr. H.
78. Porém, o negócio da aquisição de 99,727% das acções da Requerida não se concretizou.
79. Na sequência, a Hotel, detentora de 68% das acções da Requerida passou para as mãos dos vendedores,
80. Tendo a Requerente, detentora de 31,727% do capital social da Requerida, ficado nas mãos dos compradores.
81. Em reunião do conselho de administração da requerida, alegadamente realizada em 4 de Maio de 2009, o então administrador da Requerida D, por si e em representação de E deliberou:
- Designar-se a si próprio presidente do Conselho de Administração afastando o anterior;
- Designar uma nova secretária para a Sociedade afastando a anterior;
- Permitir futuras reuniões do Conselho de Administração através de vídeo conferência ou meio análogo;
- Não ratificar procurações forenses conferidas a advogados designados pelos administradores da sociedade eleitos na assembleia geral de 1 de Setembro de 2008;
- Revogar procurações forenses conferidas a advogados designados pelos administradores da sociedade eleitos na assembleia geral de 1 de Setembro de 2008;
- Atribuir-se a si próprio poderes forenses para representar a sociedade em juízo em acções pendentes ou futuras, incluindo o poder de constituir mandatário judicial;
- Autorizar-se a si próprio para representar a Sociedade na execução de qualquer das deliberações aprovadas na alegada reunião do Conselho.
82. Essa revogação das procurações anteriormente constituídas e a auto nomeação do Sr. D, para sozinho representar a Requerida em juízo acontecem num momento em que correm várias acções judiciais entre a Requerente e a requerida, entre a Requerida e os administradores D e E, entre a requerida e a N.
83. A Requerida é presentemente parte nos seguintes processos, entre outros, que directamente ou indirectamente, envolvem também os administradores em causa e a referida sociedade N:
- CV1-08-0081-CAO, intentada pela Requerida contra os seus então administradores, D e E;
- CV3-08-0079-CAO, intentada pela Requerida contra a já referida N, para anulação de um alegado empréstimo;
- CV3-08-0061-CAO, intentada pela Requerente para a suspensão da anterior deliberação social da requerida tomada em 1 de Setembro de 2008, de intentar acções cíveis e criminais contra os administradores em causa;
- CV3-08-0055-CEO com os respectivos apensos, acção executiva intentada pela N mediante a qual esta sociedade pretende cobrar da Requerida um alegado empréstimo feito à mesma.
84. Na acção nº CV3-08-0061-CAO e procedimento cautelar a ela apensa nº CV3-08-0061-CAO-A, está em causa a validade da deliberação de intentar acções contra os administradores – entre os quais D.
85. A Requerida não mantém actividade relativamente aos seus objectivos principais que é o desenvolvimento de um terreno.
86. Não há unanimidade entre os administradores quanto à representação da Requerida em juízo.
87. Segundo os estatutos, a sociedade tem de ter três administradores e não se vincula só com a assinatura de um administrador.
88. Quanto às acções pendentes, o que a Requerente pretende, é que sejam os seus dois administradores ou colaboradores a defender a sociedade aqui Requerida nos processos que interpôs contra esta, situação com que não concorda H.
89. Os dois administradores não merecem a confiança do sócio com mais de dois terços do capital social e existe um patente e insanável conflito entre eles e a Requerida.
90. A actuação dos administradores já provocou processos crimes contra os mesmos e que presentemente correm os seus trâmites normais.

3. O Direito
Está em causa a suspensão, ou não, de duas deliberações tomadas na assembleia geral da requerida C, ocorrida em 5 de Novembro de 2009, que são:
- Deliberação no sentido de intentar a acção de responsabilidade contra os administradores do Conselho de Administração, Srs. D e E, com as consequências legais; e
- Deliberação no sentido de nomear representante especial da Sociedade para o exercício do direito à indemnização contra os dois administradores acima referidos.
Nos termos do art.º 341.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a suspensão de deliberações sociais pressupõe que a deliberação em causa seja contrária à lei, aos estatutos ou ao pacto social, para além dos outros requisitos.
As questões suscitadas no recurso prendem-se precisamente com a verificação, ou não, deste pressuposto, residindo em saber se o preceito legal do n.º 1 do art.º 247.º do Código Comercial de Macau, que prevê o quórum deliberativo para aprovação da deliberação de propor acção de responsabilidade contra administradores, tem ou não carácter imperativo e, no caso positivo, se verifica a fraude à lei na tomada das deliberações em causa.

3.1. Imperatividade ou não do n.º 1 do art.º 247.º do Código Comercial
As deliberações em causa foram tomadas na assembleia geral da Requerida C, tendo como objecto intentar a acção de responsabilidade contra os dois administradores do Conselho de Administração, a propor pela Requerida, bem como nomear representante especial da Sociedade para o exercício do direito à indemnização.
Nos termos do art.º 220.º n.º 2 do Código Comercial, a assembleia geral ordinária pode deliberar sobre a propositura de acções de responsabilidade contra administradores e sobre a destituição daqueles que a assembleia geral considere responsáveis, mesmo quando esta matéria não conste da ordem de trabalhos.
Quanto à propositura da acção de responsabilidade contra os titulares dos órgãos sociais, os art.ºs 247.º e 248.º do Código Comercial dispõem o seguinte:
Artigo 247.º
(Acção de responsabilidade proposta pela sociedade)
1. A acção de responsabilidade a propor pela sociedade depende de deliberação dos sócios tomada por maioria simples, e deve ser proposta no prazo de três meses a contar da data em que a deliberação tiver sido tomada.
2. A deliberação de propor a acção de responsabilidade implica a destituição dos administradores visados, devendo os sócios designar, de imediato e se necessário, representantes especiais da sociedade para o exercício do direito à indemnização.

Artigo 248.º
(Acção de responsabilidade proposta por sócios)
1. A acção de responsabilidade a favor da sociedade pode ser proposta por sócio ou sócios de responsabilidade ilimitada ou que detenham uma participação no capital não inferior a 10%, se a sociedade não tiver já intentado a respectiva acção.
2. No caso previsto no número anterior, deve ser provocada a intervenção da sociedade na acção, nos termos da lei de processo.

Decorre destes preceitos que a acção de responsabilidade pode ser proposta pela sociedade, com a deliberação dos sócios tomada por maioria simples, ou por sócio ou sócios de responsabilidade ilimitada ou que detenham uma participação no capital não inferior a 10%, se a sociedade não tiver intentado antes a respectiva acção.
Repare-se que, no caso de a sociedade intentar a acção de responsabilidade, a deliberação de propor a acção, tomada por maioria simples, implica a destituição dos administradores visados.
Trata-se duma destituição imposta por lei, consequência directa e necessária da aprovação da deliberação com os votos dos sócios que representem uma maioria simples do capital social, que se distingue da destituição por deliberação da assembleia geral, que pode exigir a aprovação por uma maioria diversa conforme a disposição legal ou a determinação no Estatuto da sociedade (cfr. art.ºs 345.º n.º s 3 a 5, 353.º n.º 3, 389.º n.º 2 e 463.º n.º 1 do Código Comercial).
Ora, no caso da sociedade anónima, como é a Requerida, a matéria de destituição dos administradores está expressamente regulada no art.º 463.º do Código Comercial, que prevê duas formas de destituição: revogação do mandato por deliberação dos accionistas, em qualquer momento e independentemente de haver justa causa; acção judicial intentada por um ou mais accionistas, titulares de acções correspondentes a 10% do capital, a qualquer momento e com fundamento em justa causa.
Quanto à destituição dos administradores por deliberação dos accionistas, há que obedecer ao quórum deliberativo estipulado no Estatuto da sociedade, uma vez que a lei é omissa sobre ele.
No caso vertente e conforme a matéria de facto considerada assente, a deliberação de instaurar acção de responsabilidade contra os administradores foi aprovada com os votos da sócia A, ora recorrente, que detém 68% do capital social.
E o artigo 18.º dos Estatutos da sociedade Requerida estabelece que as deliberações nas Assembleias Gerais que tenham por objecto deliberar sobre a nomeação, destituição, exoneração ou alteração dos membros dos órgãos sociais (…) só se consideram aprovadas se reunirem os votos favoráveis correspondentes a pelo menos três quartas partes do capital social.
Daí que a destituição de membros do conselho de administração, por deliberação social, tem de ser aprovada por uma maioria qualificada de três quartos do capital social.

Na tese do douto Acórdão ora recorrido, o art.º 247.º n.º 1 do Código Comercial não tem o carácter imperativo, podendo ser afastado pelos estatutos da sociedade. E uma vez que a deliberação de propor a acção de responsabilidade conduz, como consequência ex lege imediata, à destituição dos administradores visados, para a qual é exigida a aprovação de uma maioria qualificada de três quartos do capital social, não se pode deixar de atender a tal maioria estipulada no n.º 2 do art.º 18.º dos estatutos da sociedade.
Defende a recorrente o contrário.
Está em discussão a questão respeitante ao quorum deliberativo da assembleia geral, que é, como se sabe, percentagem mínima do capital social que corresponde às participações de sócios presentes ou representados legalmente exigível para que possa formar-se uma deliberação válida1.

Ora, a questão colocada prende-se com a interpretação da lei comercial, que deve seguir as regras previstas no art.º 8.º do Código Civil, aplicável subsidiariamente ao direito comercial.
Sobre esta disposição, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela no seu Código Civil Anotado2:
“O facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos, não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para o efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis).
Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode-se dizer que o sentido definitivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.”
Voltando ao nosso caso concreto e no que concerne ao elemento literal da interpretação, a redacção do n.º 1 do art.º 247.º do Código Comercial deixa claramente margem para a possibilidade de lhe atribuir a natureza imperativa, já que a norma não prevê excepções, com expressão tal como “salvo disposição diversa da lei ou dos estatutos” (como por exemplo no n.º 1 do art.º 453.º do Código Comercial, para além de muitos outros artigos).
Quanto a deliberações dos sócios, o Código Comercial estabelece muitas vezes, expressamente, a possibilidade de os estatutos da sociedade disporem em sentido contrário.
Não é, porém, este o único critério para distinguir as normas supletivas das imperativas, pois muitas vezes o legislador nada diz e o intérprete pode concluir que a norma é supletiva.
E só a análise e a valoração do preceito pode levar a concluir que o preceito é injuntivo, segundo a terminologia de José Oliveira Ascensão3 (imperativo, na expressão mais usada), ou perceptivo na linguagem de Baptista Machado4.
Só caso a caso é possível saber se o preceito é essencial à fisionomia do instituto e se admite que os interessados o possam afastar.
Quanto ao elemento sistemático, que tem em conta a unidade do sistema jurídico, é de reparar o seguinte:
Em relação a deliberações da assembleia geral, o art.º 225.º do Código Comercial, inserida na parte geral do Título I (Das sociedades comerciais) do código e titulado de “Maiorias”, prevê que em nenhum caso se considera tomada uma deliberação que não tenha sido aprovada pelo número de votos exigidos na lei ou nos estatutos, sendo que a atribuição dos votos, o quorum de reunião das assembleias gerais e a formação das maiorias necessárias às deliberações obedecem às regras fixadas na lei para cada tipo societário (n.ºs 1 e 3 do art.º 225.º).
E encontramos em todos os tipos societários as normas próprias que estabelecem quórum deliberativo para a aprovação de deliberações da assembleia geral, sendo que a maioria referida em todas estas normas pode ser afastada pela disposição estatutária no sentido diverso (art.ºs 344.º n.º 1, 352.º n.º 2, 382.º e 453.º n.º 1).
No caso da sociedade anónima, como é a Requerida dos presentes autos, a assembleia geral delibera por maioria absoluta dos votos correspondentes ao capital social presente ou representado, salvo disposição diversa da lei ou dos estatutos (n.º 1 do art.º 453.º).
No entanto, não se encontra nenhuma norma especial destinada a regular a matéria de propositura da acção de responsabilidade contra administradores, com excepção do art.º 247.º do Código Comercial, que está inserida também na parte geral das sociedades comerciais, daí que no presente caso há que chamar à colação a disposição legal contida no n.º 1 deste artigo, que exige apenas um quórum de maioria simples para o caso de propor a acção de responsabilidade civil.
A sistematização da matéria em causa aponta assim para a imperatividade da norma em causa.
Acrescentando, há que tomar ainda em atenção a protecção do interesse da sociedade subjacente, o que é também revelada pela norma do art.º 248.º do mesmo diploma, seguramente uma norma imperativa, que permite a propositura da acção de responsabilidade por um sócio minoritário, se a sociedade não tiver já intentado a respectiva acção, caso em que deve ser provocada a intervenção da sociedade na acção, que pode intervir ou não na acção, nos termos dos art.ºs 269.º e 270.º do Código de Processo Civil. A intervenção provocada de sociedade não obsta a que o sócio prossiga a acção por si, porque a sociedade pode decidir não intervir.
Ora, se o legislador deixar a hipótese de um sócio minoritário propor a acção de responsabilidade contra administradores, que pode prosseguir ainda que sem intervenção da sociedade, no caso de esta decidir não intervir, dificilmente se pode admitir a exigência de uma maioria, estabelecida no estatuto da sociedade, superior à fixada no n.º 1 do art.º 247.º para que a acção de responsabilidade possa ser intentada pela sociedade.
E a protecção desse interesse social também se mostra com a disposição legal do art.º 246.º do Código Comercial, de carácter imperativo, que comina com a nulidade da cláusula que exclua ou limite a responsabilidade dos administradores e restringe a renúncia ao direito à indemnização ou transacção sobre ele, determinando ainda que o prazo de prescrição da responsabilidade só começa a correr a partir do conhecimento do facto pela maioria dos sócios (n.º s 1, 3 e 4 do artigo).
É de concluir pelo carácter imperativo do n.º 1 do art.º 247.º do Código Comercial, que não pode ser afastado por estatuição social.

3.2. Fraude à lei
A questão foi suscitada pela Requerente, a título subsidiário, que não chegou a ser apreciada pelo Tribunal de Segunda Instância uma vez que este Tribunal julgou procedente o argumento principal deduzido pela Requerente (referente ao quórum deliberativo), o que torna desnecessária a apreciação da questão.
Alega a Requerente que o fim único e último visado com a aprovação da deliberação era a destituição dos administradores, pelo que padece do vício da fraude à lei, sem que no entanto tenha indicado qual a consequência jurídica da eventual procedência deste argumento. E existe de igual modo fraude à lei mesmo que a aprovação das deliberações em causa vise ao mesmo tempo a propositura da acção de responsabilidade e a destituição dos administradores.
Ora, tal como se refere na sentença de 1.ª instância, a fraude à lei consiste na prossecução de um fim (resultado) proibido através de um meio permitido mas estabelecido para alcançar fins imediatos diferentes. Usando um meio ou uma combinação de meios que a lei disponibiliza para determinada finalidade de forma a alcançar uma outra finalidade diferente e proibida, defrauda-se a lei.
E há fraude à lei quando, usando a permissão conferida por uma norma, se praticam actos que visam um resultado proibido por outra norma.
A fraude à lei pode ser vista de modo subjectivo ou objectivo.
No modo subjectivo, o juízo de fraude não prescinde da imputação ao agente de uma intenção pessoal de iludir o mecanismo criado com a providência legislativa de modo a defraudar a lei
No modo objectivo, não é exigida a imputação subjectiva nem a prova da intenção, de tal modo que, para o juízo de fraude, é suficiente que a actuação do agente produza o resultado que a lei quer evitar ou evite o resultado que a lei quer produzir.5
É no modo subjectivo que a fraude à lei está prevista no art.º 19.º do Código Civil de Macau, que exige expressamente o “intuito fraudulento”.
E “na fraude à lei, o conteúdo negocial não agride directamente a lei defraudada, mas antes colide com a intencionalidade subjectiva que lhe está subjacente e que justifica a sua imperatividade. Esta intencionalidade normativa subjacente à imperatividade da lei é a Ordem Pública, como portadora dos critérios ordenantes do sistema. O juízo de fraude à lei coloca-se, assim, no domínio da Ordem Pública. O negócio jurídico fraudulento é ilícito”.6

No caso em apreciação, verificar-se-ia o vício imputado pela Requerente se a aprovação da deliberação com vista à propositura da acção tivesse sido usada para fins diferentes dos assinalados.
Ora, é verdade que resulta da factualidade provada que a ora recorrente pretende tornar administrador único o administrador H, a si afecto seu sócio e administrador bem como afastar a Requerente das decisões relativas ao destino da Requerida, sendo os dois administradores em causa indicados pela Requerente para integrarem no conselho de administração.
Não se pode, no entanto, retirar deste facto a conclusão de que a aprovação da deliberação de intentar a acção de responsabilidade contra os administradores visa única e ultimamente a destituição dos mesmos administradores.
De facto, constata-se na matéria de facto assente que correm várias acções judiciais entre a Requerente e a requerida e entre a Requerida e os administradores D e E, incluindo uma acção intentada pela sociedade Requerida contra os administradores em causa (CV1-08-0081-CAO).
Para além disso, foram também apresentadas queixas crimes contra os membros do conselho de administração da Requerida, tendo a actuação dos administradores já provocado processos crimes contra os mesmos e que presentemente correm os seus trâmites normais.
Face à factualidade descrita, não se pode afirmar, tal como afirmou a Requerente, que a finalidade que presidiu à aprovação da deliberação era unicamente a destituição dos administradores em causa.
Como foi atrás referido, a destituição dos administradores por deliberação dos accionistas tem que obedecer ao estipulado no n.º 2 do artigo 18.º dos Estatutos da sociedade Requerida, que exige um quórum deliberativo de maioria qualificada, enquanto a deliberação de propor acção de responsabilidade contra administradores, aprovada com a maioria simples, implica a destituição dos mesmos.
No presente caso, a deliberação tomada na assembleia geral de 5 de Novembro de 2009, cuja suspensão pretende a Requerente, não tem como objecto imediato a destituição dos administradores, mas sim a propositura da acção de responsabilidade contra os mesmos.
A destituição dos administradores visados não se opera pela deliberação da assembleia geral, cuja aprovação exige uma percentagem de 75% dos votos favoráveis, mas sim decorre ipso iure da disposição legal contida no n.º 2 do art.º 247.º do Código Comercial, como consequência directa e automática da deliberação tomada na assembleia geral, com vista a propor acção de responsabilidade contra administradores, aprovada com uma maioria simples nos termos do n.º 1 do mesmo artigo.
Ora, se ao lado de estabelecer a possibilidade de os accionistas tomarem deliberação sobre a destituição dos administradores, deixando ao critério da sociedade fixar nos seus estatutos o quórum deliberativo necessário para aprovação dessa deliberação, o próprio legislador prevê ao mesmo tempo e de forma expressa e imperativa que a deliberação de propor acção de responsabilidade implica a destituição dos administradores visados, sendo esta destituição consequência ipso iure da lei, como é que se pode dizer que há fraude à lei, uma vez que os factos provados não permitem concluir que a deliberação não foi tomada para propor a acção de responsabilidade contra os administradores, mas sim com intenção de destituir os mesmos?
Não está em causa nenhum fim proibido por lei.
Mesmo admitindo que a aprovação da deliberação visa também a destituição dos administradores, certo é que se trata do fim mediato da deliberação tomada para intentar a acção, já que a destituição dos administradores resulta directamente da imposição legal.
Improcede o argumento deduzido pela Requerente.

Resumindo, tendo concluído pelo carácter imperativo do n.º 1 do art.º 247.º do Código Comercial, cuja aplicação não é de afastar por qualquer estatuição social, e pela não ocorrência da figura de fraude à lei, não se mostra verificado um dos pressupostos necessários previstos no n.º 1 do art.º 341.º do Código de Processo Civil, que é, no presente caso, precisamente a contrariedade das deliberações aos estatutos da sociedade, pelo que não se deve determinar a suspensão das deliberações em causa.
É de revogar o Acórdão ora recorrido, com manutenção da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.
E torna-se desnecessária a análise sobre a deliberação respeitante à nomeação de representante especial da Sociedade para o exercício do direito à indemnização contra os dois administradores em causa, que está intrinsecamente ligada à deliberação de propor a acção de responsabilidade e foi tomada nos termos do n.º 2 do art.º 247.º do Código Comercial, bem como a apreciação sobre existência ou não de perigo de dano a causar pela execução de deliberação, outro requisito necessário previsto para que seja decretada a providência cautelar.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o Acórdão recorrido, ficando a valer a sentença de 1.ª instância.
Custas pela recorrida, em duas instâncias.

   Macau, 16 de Outubro de 2013
  
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, 2.ª edição, p. 516v.
2 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1987, 4.ª edição, V. I, p. 58.
3 José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13.ª edição, p. 522.
4 J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 8.ª Reimpressão, p. 93.
5 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª edição, pág. 505 e 506.
6 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª edição, pág. 506.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




1
Processo n.º 35/2013