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Processo nº 461/2012 Data: 11.10.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de emissão de cheque sem provisão.
Contradição insanável.
Reenvio.



SUMÁRIO

Se na decisão da matéria de facto dá o Tribunal como provado e não provado o mesmo facto, está a decisão inquinada com o vício de contradição insanável, que leva ao reenvio do processo para novo julgamento.

O relator,

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José Maria Dias Azedo
Processo nº 461/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. proferido nos autos aí registados com a referência CR4-11-0230-PCC, decidiu-se absolver o arguido A (XXX) da imputada prática do crime de “emissão de cheque sem provisão” p. e p. pelo art. 214°, n.° 2, al. a) do C.P.M.; (cfr., fls. 81 a 84-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, com o assim decidido, a assistente – “VENETIAN MACAU, S.A.” – recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:

“A. De acordo com a Sentença Recorrida, o Tribunal a quo entendeu não condenar o Arguido pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 214.° do Código Penal, por ter entendido não ter sido feita prova de que o Arguido sabia, no momento da entrega do cheque à ora Recorrente, que a conta sacada iria ser encerrada para que o cheque não fosse pago.
Isto apesar de ter decidido condenar o Arguido no pagamento ora Recorrente de HKD$500,000.00 (acrescidos de juros de mora calculados à taxa anual de 18%), isto é, nos exactos termos acordados entre Assistente e Arguido no negócio subjacente à emissão do cheque em causa.
B. A factualidade relevante nos presentes autos encontra-se descrita na queixa-crime e acusações apresentadas, tendo sido integralmente confirmada na Sentença Recorrida.
C. O Tribunal a quo entendeu que não teria sido produzida prova bastante no sentido de que o Arguido tinha conhecimento da insuficiência de fundos na conta sacada para pagamento do cheque por este entregue à Assistente.
D. O cheque em branco, tal como o respectivo pacto de preenchimento, encontram-se expressamente previstos pelos legislador no artigo 1224.° do Código Comercial, sendo plenamente aceites pela Doutrina e pela Jurisprudência no desempenho de funções no comércio jurídico, designadamente a função do “cheque garantia”.
Nenhuma limitação existe, pois, quanto ao preenchimento dos elementos deixados em branco no título de crédito (designadamente o montante e a data do saque), entregue pelo sacador ao tomador, para além do que conste do pacto de preenchimento celebrado entre os intervenientes.
E. No caso dos autos, de acordo com a cláusula 14.a do contrato de mútuo (i.e., o pacto de preenchimento), o mutuário (ora Arguido) acordou entregar à mutuante (a Venetian) um cheque pessoal no montante correspondente às fichas para jogo entregues pela mutuante ao mutuário e em dívida, que a mutuante poderia apresentar a pagamento para amortização do montante (em fichas) mutuado. Ainda de acordo com esta cláusula, o mutuário autorizou a mutuante a preencher qualquer dos elementos do cheque em falta ou deixados em branco, incluindo (i) o montante do crédito mutuado por pagar e (ii) a data do saque.
A Assistente limitou-se a preencher os elementos deixados em branco no cheque quando excutiu as tentativas de obter o pagamento do mútuo – ou seja, em 10.01.2011 –, em execução da garantia prestada e no estrito cumprimento do acordado no pacto de preenchimento.
F. E, face à factualidade demonstrada, não seria possível ao Arguido desconhecer a insuficiência de fundos na conta sacada para integral pagamento do cheque entregue à Assistente.
Com efeito, decorre dos factos demonstrados nestes autos que o cheque apresentado a pagamento pela Assistente foi devolvido sem que houvesse sido pago, com o fundamento de que a conta do sacador, ora Arguido, se encontrava encerrada (cfr. docs. 5 e 6 juntos à queixa-crime).
Desde logo e como é bom de ver, o encerramento da conta bancária titulada pelo Arguido não poderia ter ocorrido sem que este tivesse manifestado, por qualquer via (legalmente admissível), ser essa a sua intenção, junto do banco sacado, o The Hong Kong and Shangai Banking Corporation Limited, em Hong Kong.
G. O Código Penal de Macau, apenas faz depender a consumação do crime de emissão de cheque sem provisão:
(i) da emissão de um cheque;
(ii) apresentado a pagamento nos termos e prazo fixados legalmente e/ou por convenção para o efeito;
(iii) que não seja integralmente pago por falta de provisão.
H. Assim, in casu, verifica-se que:
(i) o Arguido foi responsável pela emissão de um cheque (ainda que tal emissão apenas se tenha tornado eficaz com o preenchimento pela Assistente da data e valor do saque);
(ii) o cheque foi regularmente apresentado a pagamento; e
(iii) o cheque não foi pago por inexistência de fundos suficientes depositados em nome do Arguido junto do banco sacado, uma vez que tal conta havia sido encerrada pelo Arguido.
I. A devolução de cheque em virtude do cancelamento da conta bancária sacada equivale à verificação de não pagamento por falta de provisão, conduta que é merecedora de sanção penal, nos termos do artigo 214.° do Código Penal.
J. Resulta claro de todo o exposto e ao contrário do concluído pelo Tribunal a quo, que o Arguido agiu livre e conscientemente, bem sabemos que a sua conduta não lhe era permitida, devendo a Sentença Recorrida ser revogada e substituída por uma decisão que decida pela condenação do Arguido pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 214.° do Código Penal, sob pena de violação do mesmo”; (cfr., fls. 87 a 96).

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Em resposta diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público:

“1. São elementos essenciais do crime de emissão em provisão: a emissão de um cheque; a falta ou insuficiência de provisão e o dolo genérico.
2. São condições de punibilidade do mesmo crime: a apresentação a pagamento do cheque no prazo legal de oito dias, contados da data da sua emissão, e a verificação do não pagamento por falta ou insuficiência de provisão no mesmo prazo de apresentação a pagamento.
3. Tendo jurisprudência unânima que estas duas condições objectivas de punibilidade, de verificação simultânea, são insusceptíveis de suprimento por qualquer meio de prova, ou seja, só a prova decorrente da própria declaração de recusa de pagamento vale como meio de prova.
4. Faltando assim na declaração bancária do não pagamento do cheque por falta ou insuficiência de fundos, não fica preenchida essa indispensável condição de punibilidade pelo que não pode o arguido ser censurado criminalmente pela prática do crime.
5. O cancelamento da conta bancária sacada não equivale à verificação de não pagamento por falta de provisão.
6. Os factos integrar-se-iam o crime de burla quando verificar o dolo específico.
7. Nos presentes autos não foi verificada quando e como foi encerrada a conta bancária nem se sabe se o arguido sabia e quando sabia do tal encerramento.
8. Pelo que não se reuniam os elementos constitutivos tanto do crime de emissão de cheque sem provisão nem do crime de burla.
9. Pelo que deve negar provimento ao recurso”; (cfr., fls. 100 a 103).

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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer :

“Anuímos e subscrevemos as doutas considerações expendidas pela Exma Colega junto do tribunal “a quo”.
Na verdade, a verificação de não pagamento do cheque por falta ou insuficiência de provisão no prazo legal de 8 dias a contar da data de emissão é condição de punibilidade do crime de emissão de cheque sem cobertura, insusceptível de suprimento por qualquer outro meio de prova que não seja o decorrente da própria declaração de recusa de pagamento por aquele motivo, sendo que a declaração de encerramento da conta bancária não pode equivaler à verificação de não pagamento por falta de provisão.
Por outra banda, não se tendo esclarecido a data e o motivo desse encerramento da conta, nem se tendo comprovado que, aquando da entrega do cheque em questão, o arguido tivesse conhecimento ou devesse conhecer tal facto (já que, pelos vistos, não se terá tornado possível a sua notificação para o efeito), também se não tornaria possível a sua condenação pela prática de eventual crime de burla, já que, ao contrário do pretendido pela recorrente, o encerramento da conta poderá ocorrer por motivos nem sempre resultantes ou dependentes de expressa manifestação de vontade do titular nesse sentido.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer censura o decidido”; (cfr., fls. 130 a 131).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Está provada a seguinte matéria de facto:

“1.
Em 13/11/2009, o arguido A (XXX) assinou um contrato de crédito com a Venitian Macau S.A.. (vide o documento constante na fls. 6 dos autos)
2.
Em 06/01/2010, o arguido assinou com a ofendida companhia um acordo de alteração do montante do empréstimo e contrato de crédito, alterando o limite de crédito ao montante de HKD 500,000. (vide o documento constante na fls. 7 dos autos)
3.
Em 07/01/2010, o arguido pediu, à ofendida companhia, emprestadas as fichas no valor de HKD 500,000, entregou um cheque de The Hongkong and Shanghai Banking Corporation Limited n.º 943202 à ofendida companhia como garantia nos termos do art. 14º do contrato acima referido, e consentiu que a ofendida companhia preenchesse a data de saque e o montante de HKD 500,000.
4.
Em 10/01/2011, a ofendida companhia deu o cheque acima referido ao Banco Nacional Ultramarino para trocar em dinheiro. Em 13/01/2011, após o exame, o Banco Industrial e Comercial da China (Ásia) descobriu que a conta bancária do arguido já era liquidada e, por isso, recusou a trocar o cheque em dinheiro e emitiu uma notificação da devolução do cheque. (vide o cheque constante na fls. 9 e a cópia da notificação da devolução do cheque constante na fls.10)
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Além disso, também foram provados os factos seguintes constantes na acusação, junta à acusação do MP, deduzida pela assistente Venitian Macau S.A.:
1. Além da exploração de jogos de fortuna ou azar, a assistente também exerce a concessão de crédito para jogos de fortuna ou azar em casino nos termos da Lei n.º 5/2004.
2. O contrato de crédito para jogos assinado em 13/11/2009 entre a assistente e o arguido A (XXX), tem um limite de HKD 30,000.00 (trinta mil Hong Kong dólares).
3. Em 07/01/2010, depois de receber o empréstimo de fichas no montante de HKD 500,000.00 (quinhentos mil Hong Kong dólares), o arguido assinou e devolveu um documento de cobrança com data de 07/01/2010 designado por “Marker”, admitindo a quantia emprestada constante no contrato e prometendo restituí-la dentro de sete dias a contar desde a data da assinatura e pagar os juros anuais à taxa de 18% se excedesse a data limite.
4. Para o efeito de liquidar a dívida relativa, a assistente preencheu no cheque passado pelo arguido a data de 10/01/2011.
Ao mesmo tempo, mais se provou:
De acordo com o C.R.C., o arguido é delinquente primário”.

Deu também o Tribunal a quo como não provada a matéria de facto seguinte:

“1. O arguido consentiu que a ofendida companhia preenchesse no cheque a data de saque de 10/01/2011.
2. Agindo livre, voluntária e conscientemente, o arguido passou um cheque à ofendida companhia, sabendo que a conta bancária já era liquidada e o cheque não seria trocado, o que fez com que a ofendida companhia não conseguiu trocar o cheque em dinheiro.
3. Bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida pela lei”.

Do direito

3. Vem a assistente “VENETIAN MACAU, S.A.” recorrer da decisão de absolvição do arguido, pugnando no sentido de se revogar e substituir a decisão recorrida “por uma decisão que decida pela condenação do Arguido pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 214.° do Código Penal, sob pena de violação do mesmo”; (cfr., concl. J).

Cremos porém que o pedido assim deduzido não pode proceder.

Passa-se a expor este nosso ponto de vista.

Pois bem, está visto que da factualidade provada resulta que o cheque pelo arguido emitido à assistente não foi pago por a conta estar encerrada no momento em que foi apresentado.

E, sobre tal aspecto, já decidiu este T.S.I. que “a “falta de provisão” é um conceito normativo e pode ser integrado por quaisquer expressões com o mesmo significado, designadamente “falta ou insuficiência de fundos”, “falta de quantia disponível”, “falta de depósito disponível”, “falta de cobertura”, “conta encerrada, saldada, liquidada ou cancelada”.”; (cfr., v.g., o Ac. de 27.04.2012, Proc. n.° 825/2011, do ora relator).

Porém, uma outra questão se coloca.

É que, o Tribunal a quo deu como “provado” que:

–– “Em 07/01/2010, o arguido pediu, à ofendida companhia, emprestadas as fichas no valor de HKD 500,000, entregou um cheque de The Hongkong and Shanghai Banking Corporation Limited n.º 943202 à ofendida companhia como garantia nos termos do art. 14º do contrato acima referido, e consentiu que a ofendida companhia preenchesse a data de saque e o montante de HKD 500,000”; (cfr., “facto provado” referenciado com o n.° 3), dando, contudo, simultaneamente como “não provado” que:

–– “O arguido consentiu que a ofendida companhia preenchesse no cheque a data de saque de 10/01/2011”; (“facto não provado”, n.° 1).

Ora, se “provado” ficou que o arguido “consentiu que a ofendida preenchesse a data de saque e o montante de HKD$500.000,00”, (sem se dizer mais nada), evidente é que não se podia dar também como “não provado” que o mesmo arguido “consentiu que a ofendida companhia preenchesse no cheque a data de saque de 10.01.2011”.

Há, assim, em nossa opinião, “contradição insanável” que, ainda que não suscitada, e porque de conhecimento oficioso – neste sentido, cfr., v.g., a declaração de voto anexa ao Ac. de 29.07.2010, Proc. n.° 464/2008 – deve ser declarada.

Com efeito, somos pois de opinião “que o Tribunal de recurso tem o “poder dever” de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, ou seja, numa decisão que não padeça de “insuficiências”, “contradições insanáveis da fundamentação” ou “erros notórios na apreciação da prova”, que a suceder e sendo insanáveis, impedem aquela, originando o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artº 418º do C.P.P.M.”.

Dest’arte, motivos não havendo para se adoptar outro entendimento, (até pela ausência de qualquer explicitação adicional na decisão recorrida), constatando-se o assinalado vício da matéria de facto, (que se mostra fundamental para a boa decisão da causa, pois que pode acarretar uma decisão diversa quanto ao “dolo” do arguido), não sendo o mesmo sanável por este T.S.I., e observado que foi também o contraditório, há que dar observância ao art. 418° do C.P.P.M., ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto à assinalada matéria.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam reenviar o processo para novo julgamento no T.J.B. nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Sem tributação.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.000,00.

Macau, aos 11 de Outubro de 2012
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng (com declaração de voto)
Tam Hio Wa




Declaração de voto ao Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 461/2012
Votei vencido no Acórdão hoje emitido por este Tribunal de Segunda Instância nos presentes autos de recurso penal n.o 461/2012, porquanto tenho andado a defender em recursos penais anteriormente julgados que o vício de contradição insanável da fundamentação a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea b), do Código de Processo Penal não é de conhecimento oficioso.
               O primeiro juiz-adjunto,
                
Chan Kuong Seng

Proc. 461/2012 Pág. 18

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