打印全文
Proc. nº 625/2012
(Recurso civil e laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 27 de Setembro de 2012
Descritores:
-Anulação oficiosa da decisão da 1ª instância


SUMÁRIO:

Nos termos do art. 629º, nº4, do CPC, a decisão da 1ª instância pode ser oficiosamente anulada quando as respostas sobre determinados pontos da matéria de facto sofrerem de insuficiência, obscuridade e contradição.













Proc. nº 625/2012
(Recurso civil e laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
“A Limitada”, com os demais sinais dos autos, intentou acção com processo ordinário contra “B, Limitada” e “C Limitada”, uma e outra com os demais sinais identificativos nos autos, pedindo a condenação destas, entre o mais, no pagamento da quantia de Mop$ 2.393.732,17 e juros respectivos.
*
Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, julgou resolvido o contrato celebrado entre a A e a 1ª ré e condenou esta a pagar àquela o montante do pedido, acrescido dos juros, dele absolvendo, porém, a 2ª ré.
*
É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional pela A., em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
A. Foram efectuadas pela A. as seguintes entregas de betão:
Em Setembro de 2006, entregou-lhe betão no valor global de HKD$2.505,37;
Em Outubro de 2006, entregou-lhe betão no valor global de HKD$869.400,00, e emitiu e enviou a factura no dia 31 de Outubro de 2006.
Em Novembro de 2006, entregou-lhe betão no valor global de HKD$954.570,00, e emitiu e enviou a factura no dia 30 de Novembro de 2006.
Em Dezembro de 2006, entregou-lhe betão no valor global de HKD$405.110,00, e emitiu e enviou a factura no dia 31 de Dezembro de 2006.
Em Janeiro de 2007, entregou-lhe betão no valor global de HKD$73.040,00, e emitiu e enviou a factura no 31 de Janeiro de 2007.
Em Fevereiro de 2007, entregou-lhe betão no valor global de HKD$39.170,00, e emitiu e enviou a factura no 28 de Fevereiro de 2007.
Em Março de 2007, entregou-lhe betão no valor global de HKD$1.770,00 e HKD$9.690,00 respectivamente, emitiu e enviou duas facturas no 31 de Março de 2007.
Em Abril de 2007, entregou-lhe betão no valor global de HKD$13.850,00, e emitiu e enviou a factura no 30 de Abril de 2007.
B. A 2.ª Ré foi a empreiteira das fundações de urna obra de construção civil, i.e, dum prédio sito no Bairro XXX (XXX地段), denominado XXX, e que deu de subempreitada de tal obra à 1.ª Ré.
C. Estas entregas foram efectuada no prédio sito no Bairro XXX (XXX地段), denominado XXX (XXX),
D. Estas entregas foram recebidas pela 2. ª Ré, bem como as facturas a elas respeitantes;
E. A 2.ª Ré pagou à A. a quantia de MOP$50.000,00, correspondente a HKD$48.473,10.
F. Ainda não foi paga à A. a quantia de HKD$2.320.432,27, correspondente a MOP$2.393.732,17.
G. A A., em 10/09/2008, interpelou a 2.ª R., através de carta, enviada pelo seu mandatário, conforme teor do doc. 18 junto com a P.I.
H. A carta de 28 de Agosto de 2008 constante junto com a P.I foi assinada por D, também chamado por E, vice gerente geral da 2.ª Ré, que embora não obrigue a sociedade, este confessa a dívida à A.
L O Art. 581.º do C. Comercial prescreve que “O contrato de fornecimento é aquele pelo qual uma das partes se obriga a fornecer coisas à outra, periódica ou continuadamente, contra o pagamento de um preço.”
J. Este contrato não tem que ter a forma escrita.
K. A 2.ª Ré recebeu o betão, as facturas e pagou parte do preço;
L. Pelo que não pagando a quantia de MOP$2.393.732,19, a 2.ª Ré deixou de cumprir a sua obrigação com a A.
M. Provada a falta de cumprimento da prestação pela 2.ª Ré a que ficou obrigada, toma-se responsável pelo prejuízo causado à A., nos termos do disposto no Art. 787.º do CC;
N. Devendo, por isso, ser condenada a pagar à. A. a quantia de MOP$2.393.732,19;
O. O Tribunal “a quo” violou os Arts. 581.º e 569.º do Código Comercial, Arts. 399.º, 787.º, 794.º n.º 1 e n.º 2 e 795.º n.º 1 e n.º 2 todos do Código Civil.
Termos em que, V.ªs Ex.ªs devem julgar procedente por provado o recurso interposto, substituindo o Acórdão proferido por outro que acolha as conclusões apresentadas, concluindo pela condenação da 2.ª Ré em todos os pedidos.
*
A 2ª ré contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
I. As alegações de recurso apresentadas pela Recorrente não cumprem o ónus de especificação dos pontos concretos da matéria de facto que a mesma considera incorrectamente julgados, nem tão pouco indicam expressa e concretamente qual os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, pelo que, ao abrigo do n.º 1 do artigo 599.º do CPC, deverá o recurso ser desde já rejeitado.
II. Não obstante, e por mera cautela de patrocínio, refira-se que o pedido formulado pela Recorrente não tem razão de ser, tendo andado bem o Tribunal a quo na decisão de não imputar qualquer responsabilidade à ora Recorrente pelo não cumprimento da obrigação a que a outra R. nos autos se encontrava adstrita e, assim, considerar o pedido improcedente em relação a ela, absolvendo-a do mesmo.
III. Dois factos (provados) de primordial importância para o caso sub Judice devem ser referidos: a Recorrente não é - nem nunca foi - parte no contrato de fornecimento celebrado entre a Recorrente e o outro R. nos autos e o Sr. D não tem - nem nunca teve - poderes para representar e obrigar a Recorrente,
IV. Pelo que, pretender imputar-se à ora Recorrida qualquer responsabilidade pelo não cumprimento de uma obrigação assumida por um terceiro no âmbito de um contrato de fornecimento do qual a mesma não faz - nem nunca fez - parte, atenta frontalmente contra um dos mais elementares princípios do Direito das Obrigações.
V. Um contrato (obrigacional) não pode produzir efeitos para terceiros, como resulta claro do n.º 2 do artigo 400.º do Código Civil.
VI. O direito de crédito é, estruturalmente, um direito relativo, ao contrário dos direitos reais, de autor, da propriedade industrial e de personalidade, que são direitos absolutos.
VII. A inoponibilidade da obrigação a terceiros é um traço essencial que distingue o direito de crédito dos direitos reais: a obrigação só vincula o devedor, só o devedor deve cumprir ao passo que os direitos reais são oponíveis erga omnes, como se vê pelo regime da reivindicação, que pode ser exercida contra qualquer detentor do bem.
VIII. Numa obrigação, o devedor, no caso de não cumprir (culposamente), é responsável pelos danos causados ao credor, e se o devedor não tem bens, não tem um património suficiente para indemnizar plenamente o credor, a perda que este assim sofre deverá ficar com esse mesmo credor, e não ser transferida para um terceiro, já que foi o credor que escolheu, contratualmente, o seu devedor e tinha o ónus de escolher um devedor com património suficiente para uma eventual indemnização.
IX. Em suma, o n.º 2 do artigo 400.º do Código Civil exprime uma regra básica, indiscutível e universal, a regra da relatividade dos contratos: não tem qualquer valor um contrato ou uma cláusula num contrato em que se estipule um efeito negativo para um terceiro porquanto as estipulações num contrato só produzem o efeito estipulado nas esferas jurídicas das próprias partes, e não na de terceiros.
X. Assim sendo, é indiferente que as entregas de betão tenham sido efectuadas a um terceiro, mesmo que por hipótese esse terceiro fosse a 2.a R., ora Recorrida.
Termos em que o recurso sub judice deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos, só assim se fazendo JUSTIÇA!
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
A A. é uma sociedade comercial por quotas inscrita na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 2171(S0), cujo objecto é a produção industrial de betão pronto, importação e exportação, conforme resulta da certidão do Registo Comercial. (A)
A 1ª R. é uma sociedade comercial por quotas constituída em Macau que se dedica à actividade de construção civil e de infra-estruturas, conforme resulta da certidão do Registo Comercial. (B)
A 2a R. é uma sociedade comercial por quotas constituída em Macau que se dedica à actividade de construção de prédios e rodovias, conforme resulta da certidão do Registo Comercial. (C)
A A. celebrou com a 1ª R. um contrato pela forma escrita através do qual a A. se comprometeu a entregar à 1ª R. betão para construção, enquanto esta se comprometeu pagar à A. o preço dos materiais fornecidos dentro de 45 dias seguintes depois de receber a factura mensal, sob pena de ser acrescidos juros à taxa mensal de 2,5%. (1º e 2º)
Foram efectuadas pela A. as seguintes entregas de betão:
a) Em Setembro de 2006, foi entregue betão no valor global de HKD$2.505,37;
b) Em Outubro de 2006, foi entregue betão no valor global de HKD$869.400,00, e emitida a factura no dia 31 de Outubro de 2006;
c) Em Novembro de 2006, foi entregue betão no valor global de HKD$954.570,00, e emitida a factura no dia 30 de Novembro de 2006;
d) Em Dezembro de 2006, foi entregue betão no valor global de HKD$405.110,00, e emitida a factura no dia 31 de Dezembro de 2006;
e) Em Janeiro de 2007, foi entregue betão no valor global de HKD$73.040,00, e emitida a factura no dia 31 de Janeiro de 2007;
f) Em Fevereiro de 2007, foi entregue betão no valor global de HKD$39.170,00, e emitida a factura no dia 28 de Fevereiro de 2007;
g) Em Março de 2007, foi entregue betão no valor global de HKD$1.770,00 e HKD$9.690,00 respectivamente, e emitida duas facturas no dia 31 de Março de 2007;
h) Em Abril de 2007, foi entregue betão no valor global de HKD$13.850,00, e emitida a factura no dia 30 de Abril de 2007. (5º)
Provado apenas que a 2a R. pagou à A. a quantia de MOP$50.000,00, correspondente a HKD$48.473,10. (6º)
Ainda não foi paga à A. a quantia de HKD$2.320.632,27, correspondente a MOP$2.393.732,17. (7º)
A A. em 10 de Setembro de 2008, interpelou a R., através de carta, enviada pelo seu mandatário, conforme o teor do doc. 18 junto com a p.i. (11º)
A 2a R. não foi parte do contrato que a A. assinou com a 1ª R. (13º)
A 2 a R. foi a emprei teira das fundações de uma obra de construção civil, i.e., dum prédio sito no “Bairro XXX” (XXX地段), denominado “XXX”, e que deu de subempreitada de tal obra à 1ª R. (15º)
A carta de 28 de Agosto de 2008 constante de doc. 17 junto com a p.i. foi assinada por D, também chamado por E. (20º)
***
III- O Direito
O presente recurso circunscreve-se a um só assunto: Não compreende a recorrente a decisão do tribunal “a quo” de julgar irresponsável a 2ª ré pelo betão que recebeu. Em seu entender, havia razão para condenar essa ré, face aos elementos de prova nos autos, os quais, segundo as suas próprias palavras, o tribunal se teria esquecido de relevar.
O problema é, portanto, de prova e de alegado erro no julgamento da matéria de facto.
Ora bem. Comecemos pelo que está provado.
Demonstrado está que a 2ª ré foi empreiteira das fundações de uma obra de construção civil no Bairro XXX (resposta ao quesito 15º, 1ª parte) e que, nessa qualidade, a deu de subempreitada à 1ª ré (resposta ao quesito 15º, 2ª parte).
Provado ainda que a Autora forneceu betão à 1ª ré para construção, tendo sido acordado o prazo de pagamento do preço de cada fornecimento (45 dias após o recebimento de cada factura) e a taxa de juros de mora seria de 2,5% ao mês (resposta aos quesitos 1º e 2º).
Perante estes factos fulcrais, somos imediatamente confrontados com algumas dúvidas.
A primeira é a seguinte:
Se o fornecimento do betão, cujo pagamento é reclamado nos autos, foi para aplicar na referida obra, então não divisamos por que motivo se deu por não provado que “A mão-de-obra e o material envolvido na obra foram adquiridos pela 1ª ré, sob sua inteira responsabilidade” (resposta negativa ao quesito 16º).
É que nesse caso, o mais lógico é que fosse da sua (1ª ré) responsabilidade a aquisição dos materiais a aplicar na obra, pois só dessa maneira se compreenderia que tivesse sido provada a matéria dos arts. 1º e 2º da Base Instrutória (que o contrato foi feito entre A e 1ª ré) e que, por isso, ela tivesse sido condenada (como foi) a pagar o valor do betão. Quer dizer, se o fornecimento do betão foi destinado àquela obra e se o contrato foi celebrado entre A e 1ª ré (subempreiteira) e se foi logo acordado o preço e o modo de pagamento, então a resposta ao quesito16º é contraditória. Pelo menos mereceria uma resposta mais esclarecedora, de forma a salvaguardar o fornecimento de betão aludido na resposta aos quesitos 1º e 2º.
*
Uma segunda dúvida é a seguinte:
A quem foi feita a entrega do betão? No quesito 5º perguntava-se se a A. tinha entregado o betão à 2ª ré, mas a resposta foi no sentido apenas de que a A. fez a entrega de betão, sem se mencionar a quem. Quer dizer, não se provou a quem foi feita a entrega. Mas, sendo assim, não se chega a perceber por que razão o tribunal não pôde conciliar a resposta a esse quesito com a resposta aos quesitos 1º e 2º (onde ficou provado que a A. se comprometeu a entregar à 1ª ré o betão). Portanto, se estava provado que a entrega seria à 1ª ré, por que não se provou na resposta ao quesito 5º que a entrega efectiva foi à 1ª ré?
Esta dúvida avoluma-se se tivermos em conta o que o tribunal consignou na fundamentação das respostas: “Embora algumas testemunhas tenham dito que as mercadorias foram entregues pela A. à 2ª R., no entanto, ninguém conseguiu dizer com precisão que tipo de relações foram estabelecidas entre os Réus, nem as que estabeleciam entre A. e 2ª R” (fls. 151).
Ora, a incerteza que o tribunal “a quo” não parece ter conseguido ultrapassar foi sobre qual o tipo de relação teria sido estabelecida entre A. e 2ª ré. Mas já a mesma dúvida não parece ter tido quanto à pessoa a quem as “mercadorias” foram entregues, já que o colectivo julgador aceitou que “…algumas testemunhas tenham dito que as mercadorias foram entregues pela A. à 2ª R…” (fls. 151 dos autos). Se testemunhas o afirmaram e se aquilo que se não sabia era apenas qual o tipo de relação estabelecida entre A. e 2ª R., parece que, ao menos, o essencial dessa prova adquirida (entrega) deveria ter sido vazada para as respostas. Ou seja, ou houve entrega do betão à 2ª ré ou não. Se houve, então a resposta ao quesito 5º deveria ter sido esclarecedora quanto à pessoa beneficiária da entrega. Se não houve entrega à 2ª Ré, então parece que a entrega deveria ter sido feita à 1ª ré, aliás, em conformidade aparente com a resposta aos artigos 1º e 2º da Base Instrutória (BI).
*
Por fim, uma terceira dúvida:
Perguntava-se no art. 4º da BI se ambas as RR se teriam obrigado a pagar o preço estipulado no contrato celebrado entre a A. e a 1ª ré. A resposta foi negativa.
Sem embargo, havia um outro quesito, o 6º, onde se perguntava se “Pela entrega das mercadorias mencionadas, a 2ª Ré apenas pagou MOP$ 50.000,00…”. E o que se provou? “Apenas que a 2ª Ré pagou à A. a quantia de Mop$ 50.000,00…”.
Então por que pagou a 2ª ré esse valor? A que título o fez, se a mercadoria não lhe foi entregue (ou teria sido?), se o contrato não foi feito consigo (ou também foi?), se o material fornecido não era da sua responsabilidade (ou também seria, face ao teor da resposta aos quesitos 12º, 16º e 20º?)?
*
Face às respostas insuficientes, obscuras e aparentemente contraditórias, salvo o devido respeito, que é muito, este TSI nem sequer pode, em consciência, analisar o recurso jurisdicional, já que carece da clarificação acerca dos supra indicados pontos da matéria de facto.
***
IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em anular oficiosamente a sentença, de acordo com o permitido no art. 629º, nº4, do CPC, devendo os autos voltar à 1ª instância para repetir o julgamento da matéria de facto nos sobreditos termos.
Custas a cargo da parte vencida a final, fixando-se, desde já, nos termos do nº 3, da tabela anexa à Portaria nº 265/96/M, de 28/10, honorários ao patrono oficioso no âmbito do presente processo, no valor de Mop$2.000,00.
TSI, 27 / 09 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan