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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 22 de Março de 2013, o arguido C foi condenado, pela prática de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência p.p. pelos art.ºs 142.º n.º 3 e 138.º al. c) do Código Penal de Macau e art.º 93.º n.º 1 da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
E a A foi condenada a pagar ao demandante civil B o montante de MOP$612,311.00, como indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescido de juros legais desde a data da decisão até ao efectivo e integral pagamento, para além das despesas clínicas para o transplante de pele no futuro, a liquidar na execução da decisão.
Inconformada com a decisão, recorreu a A para o Tribunal de Segunda Instância, em face do qual o demandante civil B interpôs recurso subordinado, tendo o Tribunal de Segunda Instância negado provimento ao recurso da demandada seguradora e julgado parcialmente procedente o recurso subordinado do demandante, acrescentando a quantia de MOP$500,000.00 ao montante indemnizatório arbitrado pelo Tribunal Judicial de Base.
Ambos os tribunais consideram o arguido como único culpado no acidente de viação.
Vem agora a A recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. A acção do ofendido, enquanto peão, nos termos da lei tem deveres de cuidado a cumprir, estando vedado determinados comportamentos que possam causar perigo à circulação de trânsito rodoviário.
2. Ficou provado que o “ofendido caiu no chão quando passava na entrada e saída do parque de estacionamento ...”.
3. Na verdade, o ofendido ficou deitado na faixa de rodagem, junto ao portão de acesso ao parque de estacionamento que é um local destinado à circulação de veículos.
4. Não ficou provado que o arguido não tivesse tomado o cuidado necessário para evitar o atropelamento, as imagens demonstram que agiu em total conformidade com as medidas de precaução quando vira à esquerda para o acesso à entrada do parque de estacionamento, não consegue ver o ofendido por causa do plano inclinado da rampa, circulava na faixa de rodagem do lado correcto no sentido do acesso ao parque de estacionamento, parou o veículo na inclinação da entrada e saída do parque de estacionamento aguardando que o portão abrisse, não tinha distância suficiente, nem visibilidade, que permitisse verificar a presença do ofendido, e este vestia roupas escuras o que contribuiu para dissimular a sua presença.
5. Se é verdade que “quem conduz cabe certificar-se que o faz em condições de não pôr em perigo a vida ou a integridade física de terceiros”, também é verdade que o condutor não é obrigado a prever ou contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via – veículos, peões ou transeuntes – antes devendo razoavelmente partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem.
6. O ofendido ficou deitado em local não permitido e em plena via de circulação automóvel, criando condições de perigosidade para si e para quem circula na estrada, procedimento que implica uma censura porque revela falta de cuidado e desprezo pela circulação automóvel.
7. A conduta do ofendido, enquanto peão, contribuiu para a ocorrência do acidente e é transgressora das normas da Lei do Trânsito Rodoviário, impondo o artigo 6º, nº 2, que “Os utentes da via pública devem abster-se de quaisquer actos que possam impedir ou embaraçar o trânsito ou comprometer a segurança ou comodidade dos outros utentes.”
8. A determinação da culpa e a respectiva graduação constituem matéria de direito quando essa forma de imputação subjectiva se funda na violação ou inobservância de deveres jurídicos prescritos em lei.
9. Há motivos, e provas, para subsumir a conduta do ofendido aos pressupostos contidos nas regras de trânsito para peões, tendo em consideração o disposto no nº 1 do artigo 564º do Código Civil, o disposto no artigo 68º, nº 1, nº 2, e artigo 70º, nº 1, da Lei do Trânsito Rodoviário, bem como os demais aplicáveis, pensamos que a conduta do ofendido é igualmente merecedora de censura.
A final, requeira que seja revogada a decisão recorrida na parte em que decidiu atribuir a total responsabilidade de culpa ao arguido e que atribua uma igual percentagem de culpas a este e ao ofendido.

Respondeu o demandante civil, terminando a sua resposta à motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1. A recorrente referiu nos n.ºs 5, 8 e 13 das alegações que o «esboço do acidente» constante dos autos não mostrava precisamente a localização concreta do ofendido aquando da ocorrência do acidente, considerando que apenas o vídeo do local do acidente tinha valor probatório.
2. A questão sobre o local onde o ofendido estava deitado aquando da ocorrência do acidente – será na faixa de rodagem – deve integrar-se no âmbito do julgamento da matéria de facto pelo Tribunal a quo.
3. Como se envolve a matéria de facto, é necessário ponderar se o Tribunal de Última Instância tem competência para conhecer das questões suscitadas pela recorrente/companhia de seguros.
4. À luz do art.º 400.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o recurso tem como fundamento questões de direito.
5. De acordo com o art.º 639.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o art.º 4.º do Código de Processo Penal, o recurso para o Tribunal de Última Instância pode ter “por fundamento a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo”; além disso,
6. O n.º 2 do art.º 649.º do mesmo diploma legal mais dispõe: “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, ...”
7. Por outras palavras, o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova.
8. Salvo no caso excepcional – quando o tribunal recorrido tenha violado normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto, o Tribunal de Última Instância pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado.
9. Por isso, o Tribunal de Última Instância só pode, com base nos factos dados como provados pelo tribunal recorrido, apreciar de novo se existe vício na aplicação da lei.
10. In casu, o Tribunal recorrido, em conformidade com os supracitados «factos provados», fez análises respectivamente sobre as condutas do arguido e as do ofendido nas páginas 12 a 14 do seu acórdão, e concluiu daí que o Tribunal a quo não cometeu erro notório na apreciação da prova, tendo, com base nisso, confirmado a decisão do Tribunal a quo segundo a qual o arguido assume a totalidade da culpa pelo acidente.
11. A razão pela qual a recorrente está inconformada com o acórdão recorrido somente consiste em que não concorda com a avaliação feita pelo Tribunal a quo acerca dos «factos provados».
12. Aliás, a recorrente não pode dizer que a respectiva decisão judicial enferma de vício só porque, pessoalmente, tem opiniões diferentes quanto aos factos dados por provados pelo Tribunal a quo.
13. O Tribunal recorrido proferiu a decisão com base nos factos provados e de acordo com a sua livre convicção, não padece de vício na apreciação da prova ou no julgamento, daí que não exista nenhum erro na convicção do acórdão recorrido sobre os factos.
14. Dado que o Tribunal recorrido, depois da reapreciação dos dados constantes dos autos, confirmou, no seu acórdão, o reconhecimento pelo Tribunal a quo dos factos acima mencionados, no recurso para o Tribunal de Última Instância, a respectiva matéria de facto não pode ser alterada.
15. Por outro lado, nos n.ºs 7, 11 e 27 das alegações, a recorrente afirmou que o ofendido se encontrava deitado na faixa de rodagem na altura do acidente.
16. Na realidade, tanto o «esboço do acidente» como o vídeo do local do acidente demonstram claramente que o local concreto onde o ofendido foi atropelado é a entrada e saída do parque de estacionamento.
17. A propósito do local concreto onde ocorreu o embate, tanto o Tribunal a quo como o Tribunal recorrido deram expressamente por provado que foi junto à “entrada e saída do parque de estacionamento”, e não na “faixa de rodagem” como alegou a recorrente.
18. No art.º 2.º, al. 8) da Lei n.º 3/2007 (Lei do Trânsito Rodoviário), a “faixa de rodagem” é definida como parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos.
19. Enquanto a “entrada e saída do parque de estacionamento” se integra no domínio privado do parque de estacionamento, e é um via particular de comunicação terrestre aberta ao trânsito público prevista no art.º 2.º, al. 2) da referida Lei.
20. Em sintonia com o art.º 30.º, n.º 1 da Lei do Trânsito Rodoviário, o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis.
21. No caso sub judice, o local onde o ofendido foi atropelado é uma via aberta ao trânsito de veículos e peões.
22. Não existe uma relação necessária entre o motivo por que o ofendido estava deitado num local desesperado e a obrigação de conduzir com cautela imposta ao arguido.
23. São factos relevantes e necessários à boa decisão da causa que não foi na faixa de rodagem onde ocorreu o acidente, e que o ofendido deitado no chão era um obstáculo previsível para o condutor.
24. Assim sendo, antes de retomar a marcha e entrar no parque de estacionamento, o arguido tinha o dever de cautela necessária, devendo certificar com antecedência se havia qualquer obstáculo à sua frente.
25. Ainda por cima, importa reiterar que, na causa vertente, o ofendido não violou o art.º 6.º, n.º 2 da Lei do Trânsito Rodoviário que se refere ao dever dos utentes da via de não embaraçar o trânsito, uma vez que o ofendido caiu no chão por estar embriagado, não se tratando de uma conduta intencional merecedora de censura, nem se verificando a intenção concreta de impedir o trânsito.
26. O art.º 68.º, n.ºs 1 e 2 da Lei do Trânsito Rodoviário não é aplicável ao caso vertente, já que tal disposição se limita a regular o trânsito de peões (transitar).
27. Conforme a recorrente mencionou várias vezes nas alegações, e também consta explicitamente dos «factos provados» do acórdão recorrido – quando ocorreu o acidente, o ofendido estava deitado no chão – existe diferença manifesta entre este estado estático e o acto de transitar.
28. Do mesmo modo, também não é aplicável ao presente processo o art.º 70.º, n.º 1 da Lei do Trânsito Rodoviário atinente ao dever de cuidado dos peões no atravessamento da faixa de rodagem.
29. Como já se referiu acima, “a entrada e saída do parque de estacionamento” onde ocorreu o acidente é uma via aberta ao trânsito de veículos e peões. Acresce que, o ofendido não estava a atravessar a rua quando foi atropelado pelo veículo interveniente no acidente.
30. Dest´arte, a conduta do ofendido não violou qualquer disposição legal, em particular, as supracitadas normas reguladoras do trânsito de peões invocadas pela recorrente.
31. Tendo em conta os dados constantes dos autos, especialmente o vídeo do local do acidente que, na opinião da recorrente, tem um valor probatório elevado, constata-se que antes de entrar no parque de estacionamento, o arguido imobilizou o veículo pelo simples motivo de aguardar a abertura do portão, e não para certificar se havia obstáculo à sua frente.
32. O arguido incumpriu o dever de cautela (especial) a que estava sujeito, pelo facto de ter retomado a marcha sem atender às características e estado especial da via;
33. E no processo de entrada no parque de estacionamento, ainda violou completamente o dever de prudência a que estava sujeito, visto que, tendo atropelado o ofendido, o arguido continuou em marcha e não parou o veículo até que o ofendido foi empurrado para o portão sito à distância de 4 metros do local do embate.
34. Segundo os «factos provados» e o vídeo do local do acidente junto aos autos, na altura da ocorrência do acidente, a iluminação da rua estava acesa, assim também as luzes do veículo interveniente no acidente.
35. Por isso, a ocorrência do acidente em causa resultou completamente do facto de que o arguido retomou a marcha sem assinalar com a necessária antecedência a sua intenção e sem adoptar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.
36. O ofendido concorda totalmente com o entendimento do Venerando Tribunal a quo constante da página 16 do acórdão recorrido: O acto do ofendido de, em estado de embriaguez, ficar deitado no chão em frente do portão do parque de estacionamento não constitui infracção à lei ou regulamento de trânsito, sendo que os actos que provocaram risco não equivalem à conduta culposa violadora de lei ou regulamento. Deste modo, não pode ser imputada ao ofendido a culpa pela produção do acidente no caso sub judice.
37. Ademais, atendendo ao teor das páginas 12 a 14 do acórdão recorrido, o Venerando Tribunal de Segunda Instância entendeu:
“... Constatando-se que o que resulta da factualidade provada é que o ofendido já se encontrava caído no local, (pelo que, embriagado ou não, e independentemente de ser na faixa de rodagem), ao arguido competia certificar se tinha o caminho livre para por ele prosseguir.
Aliás, não se pode olvidar que o ofendido já se encontrava caído no chão em frente do portão do parque de estacionamento quando o arguido chega ao local, onde imobiliza a viatura a poucos metros do ofendido e acciona o comando para a abertura do dito portão, e, (só) de seguida, sem cuidar de ver se tinha o caminho livre, arranca com o veículo, vindo a colher o ofendido...”.
38. Sintetizados todos os factos acima expostos, pode concluir-se que, por um lado, o ofendido não violou qualquer regulamento de trânsito ou preceito legal;
39. Por outro lado, após a abertura do portão do parque de estacionamento, o arguido, sem cumprir o dever de cautela a que estava sujeito, arrancou imediatamente com o veículo para entrar no parque de estacionamento. E depois de ter atropelado o ofendido que já se encontrava caído no chão, ainda empurrou o mesmo para o portão do parque de estacionamento.
40. Pelo exposto, o arguido C deve assumir a totalidade da culpa pelo acidente nos presentes autos.
41. Nesta conformidade, no entender do ofendido B (o recorrido), a decisão proferida pelo Tribunal recorrido não enferma de vício previsto na lei, devendo, assim, manter-se o acórdão recorrido.

Foram corridos os vistos.

2. Factos
Nos autos ficaram provados os seguintes factos constantes da acusação:
- Em 14 de Março de 2011, pelas 5h10 da madrugada, o arguido C conduzia o automóvel ligeiro de matrícula n.º MK-XX-XX, circulando na Travessa de Inácio Sarmento de Carvalho em direcção à Travessa do Comandante Mata e Oliveira.
- Nessa altura, depois da ceia, o ofendido B e alguns amigos, incluindo D, andavam pelo passeio na Travessa de Inácio Sarmento de Carvalho, no sentido da Avenida de D. João IV para a Travessa do Comandante Mata e Oliveira.
- Ao passar pela entrada e saída do parque de estacionamento do [Endereço], o ofendido, muito embriagado, caiu no chão. Naquele momento, o arguido chegou ao local e imobilizou o seu veículo na rampa na entrada e saída do parque de estacionamento, aguardando para entrar. Depois da abertura do portão, o arguido arrancou imediatamente com o veículo, pretendendo entrar no parque de estacionamento, quando, inadvertidamente, atropelou o ofendido que já se encontrava caído no chão e empurrou-o para o portão do parque de estacionamento, fazendo com que o ofendido ficasse ferido no rosto, pescoço, peito, abdómen, clavícula esquerda e costelas esquerdas e direitas.
- O referido embate causou ao ofendido as lesões descritas e examinadas no parecer clínico de medicina legal a fls. 48 dos presentes autos, as quais provocaram doença permanente ao ofendido, tendo constituído uma ofensa grave prevista no art.º 138.º, al. c) do Código Penal. Aqui, dão-se por integralmente reproduzidas as respectivas lesões.
- Na altura da ocorrência do acidente, o estado de tempo era bom, o pavimento estava seco, a iluminação da rua estava acesa e o trânsito não era denso.
- Apesar de saber perfeitamente que o condutor não pode iniciar ou retomar a marcha sem assinalar com a necessária antecedência a sua intenção e sem adoptar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente, o arguido não observou o disposto.
- O arguido não conduzia com cautela, nem tomou as devidas precauções para evitar o acidente de viação.
- O arguido sabia bem que a aludida conduta era proibida e punida por lei.
 
Foram ainda provados os seguintes factos relevantes para a decisão e constantes do pedido cível e da contestação:
- Na altura do acidente, o dono do veículo interveniente no acidente (o automóvel ligeiro de matrícula n.º MK-XX-XX) era o 3º demandado E, e o veículo encontrava-se segurado na 1ª demandada, A, através da apólice de seguro n.º CS/2010/XXXXXX, sendo de MOP$1.000.000,00 o limite de indemnização por acidente.
- No dia 14 de Março de 2011, pelas 5h10 da madrugada, logo depois do acidente, o demandante no pedido de indemnização cível foi transportado de ambulância para Hospital(1) para se submeter a tratamento de urgência.
- O relatório de exame directo médico revela que, após o tratamento de urgência, o demandante cível foi diagnosticado com:
․ um total de 20 contusões no pescoço, rosto, peito, cintura, mãos, e parte inferior das pernas, etc., espalhadas por uma área de 1cm x 2cm a 3cm x 4cm;
․ hemorragia nasal, deformidade da clavícula esquerda com dores à pressão;
․ queimaduras em mais de 30% da superfície na zona do pescoço, peito e abdómen;
․ traumas graves: fractura do osso nasal, fractura da clavícula esquerda e fracturas múltiplas de costelas.
- E no certificado médico emitido pela Direcção dos Serviços de Saúde em 16 de Abril de 2011, também foi indicado que o demandante cível sofreu queimaduras em 6% da superfície do corpo, as quais são queimaduras de 2º a 3º grau.
- Como as fracturas e queimaduras na pele sofridas pelo demandante cível eram bastante graves, tinha que ficar internado no hospital para se submeter a tratamento até 21 de Abril de 2011. Esteve internado no hospital durante 39 dias.
- Em consequência do acidente em causa, o demandante cível sofreu fractura da clavícula esquerda, fracturas das 4ª a 9ª costelas do lado esquerdo, fracturas das 6ª e 7ª costelas do lado direito, necessitando, pois, de ser sujeito à redução da clavícula e à fixação com atadura.
- Além disso, o demandante cível sofreu queimaduras de 2º a 3º grau na pele de várias partes corporais, ou seja, danificou-se a camada dérmica de pele, com a superfície cutânea gravemente queimada, tratando-se de lesões graves que atingiram a camada profunda da pele.
- Por isso, em 30 de Março de 2011, sob anestesia geral, realizaram-se ao demandante cível o desbridamento das feridas na zona do pescoço e peito e a cirurgia de reconstrução com retalho de avanço (transplante de pele).
- Durante o período de internamento hospitalar, o demandante cível tinha que ficar descansado na cama por causa das fracturas da clavícula e costelas, além disso, as diversas partes queimadas do seu corpo estavam inflamadas, de onde não parava de sair pus. Em termos de vida, o demandante cível não era capaz de se auto-cuidar, sendo necessário os familiares acompanharem-no e tomarem conta da sua vida quotidiana.
- Apesar de ter tido alta do hospital em 21 de Abril de 2011, o demandante cível, até então, ainda não estava curado, precisando de continuar a receber tratamento médico.
- Dado que o demandante cível é cidadão chinês e reside habitualmente na cidade de Shanghai da China, após ter alta do hospital, regressou ao Interior da China no dia 23 de Abril de 2011 para continuar a receber tratamento médico.
- Em 24 de Abril de 2011, o demandante cível foi internado no Hospital(2), para o tratamento cirúrgico das “queimaduras no corpo causadas por calor, em 2% do total da área de superfície corporal (TBSA), de 3º grau, acompanhadas de fracturas em várias partes corporais”.
- Em 26 de Abril de 2011, o demandante cível voltou a ser sujeito, sob anestesia geral, à cirurgia de excisão tangencial em tronco seguida do transplante autólogo de pele.
- Depois da referida intervenção cirúrgica, o demandante cível teve alta do hospital no dia 3 de Maio de 2011, tendo ficado internado no hospital durante 10 dias.
- Tendo tido alta do hospital, o demandante cível ainda necessitava de ficar descansado na cama e de se sujeitar ao tratamento ortopédico conservador em relação às fracturas.
- Só em Junho de 2011, tornou-se possível o demandante cível descer de cama e movimentar-se ligeiramente, mas ainda estava restrita a capacidade de movimento das diferentes partes corporais.
- No dito período de descanso em casa, o demandante cível necessitava de ir periodicamente ao hospital para a substituição de medicamentos e consultas seguintes, não podendo trabalhar até 13 de Janeiro de 2012.
- Em 14 de Janeiro de 2012, o demandante cível voltou ao trabalho. No entanto, as lesões corporais sofridas pelo mesmo ainda não estavam completamente curadas, sendo-lhe necessárias a continuação do tratamento e a substituição periódica de medicamentos.
- As lesões trouxeram muitos inconvenientes à vida quotidiana do demandante cível, sendo preciso que os seus familiares cuidassem dele por turno.
- Mesmo que tocassem levemente nas feridas do seu corpo, o demandante cível sentia dores intoleráveis, levando a que o mesmo tivesse dificuldades em adormecer e que, mais frequentemente, acordasse do sonho.
- O acidente de viação deixou ao demandante cível uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, uma cicatriz na parte esquerda do pescoço com uma área de 13cm x 2cm, e uma cicatriz na parte dianteira do sovaco direito com uma área de 10cm x 1,5cm.
- As supracitadas partes corporais com cicatrizes são todas expostas, sobretudo a cicatriz no lado esquerdo do rosto. Quer no Verão quer no Outono, as cicatrizes do demandante cível estão expostas aos olhares das pessoas, provocando-lhe um sentimento de inferioridade e certa pressão psicológica.
- O demandante cível tinha 40 anos quando ocorreu o acidente de viação. Era um jovem saudável e optimista antes do acidente.
- Durante os 39 dias em que o demandante cível esteve internado no Hospital(1), as despesas médicas e de internamento hospitalar custaram-lhe um total de MOP$14.387,00.
- Entre 24 de Abril e 3 de Maio de 2011, ou seja, nos 10 dias em que ficou internado no hospital para se sujeitar à cirurgia de excisão tangencial em tronco seguida do transplante autólogo de pele, o demandante cível despendeu RMB$7.173,00 em despesas médicas e de internamento hospitalar, equivalente a MOP$8.966,00 (calcula-se à taxa de câmbio de 1,25).
- Durante o referido período de internamento hospitalar, como o demandante cível não era capaz de se auto-cuidar, era necessário empregar auxiliar de enfermagem do hospital para cuidar da sua vida quotidiana, tendo pago RMB$225,00, equivalente a MOP$281,00, pelos serviços prestados pelo auxiliar de enfermagem.
- Desde 6 de Maio de 2011 até 12 de Abril de 2012 (dedução do pedido de indemnização cível), o demandante cível despendeu, no total, RMB$363,00 em despesas médicas, equivalente a MOP$454,00.
- Ao mesmo tempo, o demandante cível ainda despendeu RMB$33.990,00 em despesas medicamentosas, equivalente a MOP$42.488,00.
- Desde a ocorrência do acidente (14 de Março de 2011) até 13 de Janeiro de 2012, o demandante cível esteve incapacitado para o trabalho pelo período de 306 dias.
- Antes do acidente, o demandante cível exercia as funções de gerente de vendas da Companhia, auferindo anualmente RMB$198.000,00, equivalente a MOP$247.500,00.
- No aludido período de doença, o demandante cível só recebia, mensalmente, o abono de vida prestado pela sua entidade empregadora, no montante de RMB$1.240,00, equivalente a MOP$1.550,00.
- Nestes termos, a perda de salários durante os 306 dias sofrida pelo demandante cível em consequência do presente acidente de viação totaliza o montante de MOP$191.993,00 [ (MOP$247.500,00 ÷ 365 dias × 306 dias) - MOP$15.500,00 = MOP$191.993,00 ].
- Na altura do acidente em causa, devido ao embate do veículo interveniente no acidente, foi completamente danificado um telemóvel (de modelo Apple - iPhone 4) levado pelo demandante cível, cujo valor era de RMB$5.000,00, equivalente a MOP$6.250,00.
- Ademais, devido ao referido embate, o relógio de pulso (de marca PANARAI) usado pelo demandante cível aquando da ocorrência do acidente também foi danificado, tendo a reparação do relógio custado RMB$1.585,00, equivalente a MOP$1.981,00.
- O acidente de viação em causa ocorreu em 14 de Março de 2011, tendo causado ao demandante cível várias fracturas e queimaduras. No período em que esteve internado no hospital de Macau para receber tratamento médico, o demandante cível precisava que dois familiares ficassem em Macau para o acompanhar e cuidar, os quais, depois de ele ter alta do hospital, o acompanharam a regressar a Shanghai. Por esse motivo, o demandante cível despendeu um total de RMB$5.417,00, equivalente a MOP$6.771,00.
- Desde a data da dedução do presente pedido de indemnização cível (13 de Abril de 2012) até este momento, as despesas médicas e medicamentosas já pagas pelo demandante cível somam RMB$30.992,00, equivalente a MOP$38.740,00 (calcula-se à taxa de câmbio de 1,25).
- Segundo o parecer clínico de medicina legal, a taxa de deficiência do demandante cível foi avaliado em 12,5%.
- Foi indicado no parecer clínico de medicina legal que, actualmente, o ofendido se considera como curado em termos médicos.
- Conforme o médico responsável e o parecer clínico de medicina legal, se o demandante cível sofrer complicações nos próximos dois anos, necessitará de se submeter, mais uma vez, ao transplante de pele.
- O demandante cível tinha 41 anos quando voltou ao trabalho (14 de Janeiro de 2012), ainda podendo trabalhar 19 anos antes de atingir os 60 anos de idade (a idade de aposentação no Interior da China).
 
Mais se provou:
- Consoante o Certificado de Registo Criminal, o arguido não tem antecedente criminal.
- Sem informação sobre a situação pessoal, familiar e económica do arguido.
 
Factos não provados:
- Não foram provados os restantes factos relevantes constantes da acusação, do pedido cível e da contestação que não estejam em conformidade com a factualidade acima assente, nomeadamente:
- Não provado: A aparência física do demandante cível tem certa importância para a sua profissão.
- Não provado: Todas as vezes que o demandante cível se lembra do momento do acidente em que foi atropelado, tem medo e está descontente.
- Não provado: Do acidente de viação resultaram directamente as seguintes despesas pagas pelo demandante cível:
․as despesas ocorridas com os dois familiares do demandante cível enquanto estes ficavam em Macau para acompanhar e cuidar do demandante cível durante o seu internamento no hospital de Macau;
․as despesas de transporte decorrentes da volta à terra natal do demandante cível;
․ as despesas de transporte na quantia de RMB$2.652,00 e as despesas de alojamento na quantia de MOP$780,00, ocorridas quando, em 31 de Maio de 2011, o demandante cível, em companhia da sua irmã mais nova F, veio a Macau para se submeter ao exame clínico de medicina legal, sendo o total destas equivalente a MOP$4.095,00;
․ enquanto o demandante cível estava internado no hospital de Macau e os seus familiares aqui permaneciam para cuidar dele, precisavam de comprar cartões telefónicos pré-pagos para se contactarem, sendo de MOP$450,00 o valor total das despesas assim efectuadas.

3. Direito
Tal como se pode ler na motivação do recurso apresentada pela recorrente, vem apenas suscitada a questão da culpa na produção do acidente de viação, não estando em causa os montantes indemnizatórios atribuídos pelo Tribunal de Segunda Instância.
Pretende a recorrente a repartição da culpa entre o arguido e o ofendido, com atribuição de uma igual percentagem a ambos, em vez da culpa exclusiva ao arguido, que tem necessariamente reflexão na quantia indemnizatória a pagar ao demandante civil.

Antes de mais, é de salientar que o arguido teve, sem dúvida, culpa na produção do acidente, já que, tal como se constata na matéria de facto provada, ao chegar à entrada e saída do parque de estacionamento do [Endereço] para entrar no parque, o arguido imobilizou o seu veículo e, depois da abertura do portão, arrancou imediatamente o veículo, sem que no entanto tenha reparado a presença do ofendido, que se encontrava caído no chão, nem tomado as devidas precauções para evitar o acidente, fazendo com que atropelou o ofendido e empurrou-o para o portão do parque de estacionamento.
Será que a ocorrência do acidente se deveu à culpa exclusiva do arguido, sem nenhuma contribuição por parte do ofendido?
Afigura-se-nos que não, atento ao circunstancialismo do acidente.
Resulta dos autos que tanto o Tribunal Judicial de Base como o Tribunal de Segunda Instância considera o arguido como único culpado na produção do acidente, excluindo a culpa do ofendido, uma vez que o ofendido não violou quaisquer regras de trânsito impostas por lei, não obstante ter caído, muito embriagado, no chão em frente do portão do parque de estacionamento onde ocorreu o acidente, e competia ao arguido certificar se tinha o caminho livre para por ele prosseguir.
Ora, o acidente foi em frente do portão do parque de estacionamento, cerca das 5h10m da madrugada, quando o ofendido, já muito embriagado, andava pelo passeio na Travessa de Inácio Sarmento de Carvalho, no sentido da Avenida de D. João IV para a Travessa do Comandante Mata e Oliveira e pretendia passar pela entrada e saída do parque de estacionamento e caiu no chão, altura em que o arguido chegou ao local, parou o seu veículo, aguardando pela abertura do portão para entrar no parque, após a qual arrancou imediatamente o veículo, atropelando o ofendido.
E existe uma rampa na entrada e saída do parque de estacionamento.
Tal como se refere no Acórdão ora recorrido, não se trata duma situação muito vulgar.
É verdade que rigorosamente o acidente não ocorreu na faixa de rodagem, que é “parte da via pública especialmente destinada ao trânsito de veículos” (art.º 2.º, al. 8 da Lei do Trânsito Rodoviário), uma vez que, conforme o mapa constante de fls. 16 dos autos, o local de acidente se encontra no passeio (ou ao lado do passeio) em que o ofendido andava, pretendendo passar pela entrada e saída do parque de estacionamento.
Mas não pode deixar de ser via pública ou, pelo menos, via equiparada a via pública tal como reconhecido pelo próprio ofendido, ambas abertas ao trânsito público (art.º 2.º, al.s 1 e 2 da Lei do Trânsito Rodoviário), em que podem passar tanto peões como veículos.
Nos termos do art.º 6.º nº 2 da Lei do Trânsito Rodoviário, “os utentes da via pública devem abster-se de quaisquer actos que possam impedir ou embaraçar o trânsito ou comprometer a segurança ou comodidade dos outros utentes”.
Mesmo estando em causa via equiparada a via pública, aplica-se a norma acima transcrita.
E os “utentes da via pública” referem-se não só aos condutores mas também aos peões, que devem cumprir a obrigação de não praticar actos que possam impedir ou embaraçar o trânsito ou comprometer a segurança ou comodidade dos outros utentes.
No caso vertente, a posição do ofendido, já caído no chão em frente do portão do parque de estacionamento por se encontrar na altura muito embriagado, impediu sem dúvida a passagem do veículo conduzido pelo arguido que pretendia entrar no parque.
E não ajuda em nada a alegação do ofendido no sentido de ele cair no chão por estar embriagado, não se tratando de uma conduta intencional merecedora de censura nem se verificando a intenção de impedir o trânsito.
Na realidade, estando em causa normas preventivas estradais, como se sabe, não se exige a intenção ou dolo na violação dessas normas para a sua punição.
Apesar de não se encontrar nenhuma norma punitiva para a violação do nº 2 do art.º 6.º da Lei do Trânsito Rodoviário, certo é que nem por isso deixou de ser censurável, para o efeito de aferição da culpa na produção do acidente, a conduta do ofendido de cair muito embriagado em frente do portão do parque de estacionamento, cerca das 5h10m da madrugada.
E não se deve ignorar que existe no local de acidente uma rampa, que podia afectar a visão do arguido, diminuindo-a.
Ora, não obstante não constar da matéria de facto, provada ou não provada, qualquer referência à falta ou não de visibilidade do arguido, parece nada obstar a que, partindo-se daquele facto provado (de existir uma rampa no local de acidente), que assuma embora um papel secundário, se tire ilação sobre a possibilidade de diminuição da visibilidade.
Concluindo, afigura-se-nos existir concorrência de culpas para a produção do acidente em causa.

Há que determinar agora a respectiva percentagem da culpa que o arguido e o ofendido tiveram na produção do acidente, sendo que a questão da repartição da culpa deve ser apreciada caso a caso, consoante a contribuição de cada um dos intervenientes no acidente de viação em concreto.
Atento o circunstancialismo apurado nos autos, entende-se ajustada uma repartição da culpa de 30% para o ofendido e 70% para o arguido.

Quanto à quantia indemnizatória, é de reparar que não foram impugnados os montantes arbitrados pelo Tribunal de Segunda Instância que, para além de manter o valor de MOP$612,311.00 fixado pelo Tribunal Judicial de Base, atribuiu ao demandante civil mais MOP$500,000.00.
A quantia indemnizatória totaliza-se no montante de MOP$1,112,311.00.
Nos termos do art.º 564.º n.º 1 do Código Civil de Macau, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravação dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
No caso vertente, os montantes indemnizatórios devem ser reduzidos na medida da culpa da vítima.
Atendendo a que o arguido condutor do veículo foi responsável pelo acidente de viação em 70%, a sua seguradora A deve suportar MOP$778,617.70.
A mesma percentagem de 70% é também válida para a indemnização pelas despesas clínicas para o transplante de pele no futuro, a liquidar na execução da decisão, já atribuída pelo Tribunal de 1.ª instância e não impugnada no recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância.
Há que ter ainda em consideração o limite de indemnização por acidente indicado na respectiva apólice de seguro, que é de MOP$1.000.000,00.

4. Decisão
Face ao expendido, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A, revogando o Acórdão recorrido na parte respeitante à atribuição da culpa exclusiva ao arguido, que passa a assumir 70% da culpa, condenando aquela companhia a pagar ao demandante civil o montante de MOP$778,617.70 (setecentas e setenta e oito mil seiscentas e dezassete patacas e setenta avos), bem como juros legais, nos termos do Acórdão deste Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, no Processo n.º 69/2010.
Deverá ainda a A responsabilizar pelas despesas clínicas para o transplante de pele no futuro, a liquidar na execução da decisão, na medida de 70%, tudo dentro do limite de indemnização por acidente indicado na respectiva apólice de seguro, que é de MOP$1.000.000,00.
No caso de a indemnização total, i.é., incluindo as despesas clínicas para o transplante de pele no futuro, ultrapassar MOP$1.000.000,00, a parte que excede será suportada pelo arguido C, na proporção da sua culpa na produção do acidente de viacção.
Custas pela recorrente e pelo recorrido, na proporção do seu decaimento.

Macau, 27 de Novembro de 2013

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima




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Processo n.º 55/2013