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Processo nº 303/2012
(Revisão de Sentença do Exterior)

Data: 29/Novembro/2012

   
   Assuntos:
   
- Revisão de Sentença do exterior

    
    SUMÁRIO :
    
    É de confirmar uma sentença proferida pelos Tribunais de Hong Kong, relativa a um divórcio por mútuo consentimento, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, desde que transitada, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna.
    
    
O Relator,

(João Gil de Oliveira)



Processo n.º 303/2012
(Revisão de Sentença do Exterior)
Data: 29/Novembro/2012

Requerente: A

Requerida: B ou B1

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A (XXXX XXXX XXXX), natural de Macau, de nacionalidade chinesa, com domicílio na Rua do XX, n.º XX, XX, em Macau, vem instaurar Acção da Revisão de Decisões proferidas por Tribunais ou Árbitros do exterior de Macau
    Contra
    B, com o nome de solteira B1 e com residência conhecida em “Flat XX, XX House, XX Court – XX – XX – Hong Kong, (香港XX苑XX閣XX室)”,
    Nos termos e com os seguintes fundamentos :

    Por sentença transitada em julgado em 04 de Outubro de 1996, proferida pelo Tribunal Distrital de Hong Kong na acção de divórcio nº 919 de 1966, foi decretada a dissolução do casamento entre o Autor e a Ré (doc. n.º 1 que com a respectiva tradução se junta e se dá por reproduzida).

    Com consta daquela sentença, o casamento foi celebrado em 20 de Dezembro de 1974, na Conservatória de Registo de Kowloon em Hong Kong.

    O divórcio foi requerido pela ora Ré.

    O Autor foi devidamente citado e o divórcio foi por mútuo acordo.

    A referida sentença não ofendeu disposições do direito privado da RAEM e o divórcio produziu os mesmos efeitos da lei de Macau.

    Assim, de acordo com o disposto no artigo 1199º e sgs. Do Código de Processo Civil de Macau, a mesma sentença está em condições de ser confirmada por esse Venerando Tribunal.

    Nestes termos, a referida decisão pode pois ser confirmada por esse Venerando Tribunal para produzir efeitos em Macau.
    Requer-se a V. Exa. a confirmação da sentença em causa, dignando-se, para tanto, mandar citar a parte contrária na indicada morada, para, querendo, deduzir oposição, seguindo-se os respectivos trâmites previstos na lei, até final.
    
    Foi oportunamente citada a requerida que não deduziu qualquer oposição.
    
    O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.
Foram colhidos os vistos legais.

    
    II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

    
    III - FACTOS
    
    Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
    Relativamente ao processo de divórcio que correu seus termos nos Tribunais de Hong Kong, foi proferida a seguinte sentença:
    
    “LA/MAT6287/95 (16)
    NO TRIBUNAL DISTRITAL DE HONG KONG
    JURISDIÇÃO DE DIVÓRCIOS
    ACÇÃO Nº 919 DE 1996
    ENTRE
    B Autora
    nascida B1
     e
    A Réu
    
    PERANTE O MERITÍSSIMO JUIZ BRUNO CHAN
    JUIZ DO TRIBUNAL DISTRITAL, EM JULGAMENTO
    ORDEM
    
    No dia 15 de Agosto de 1996.
    O JUIZ após decretar o divórcio, ordena que: -
    1. O filho mais novo da família, nomeadamente, C permaneça sob a custódia da Autora até nova ordem do Tribunal com acesso razoável concedido ao Réu; e é aqui ordenado que o dito filho não seja levado de Hong Kong sem licença até ele atingir a idade de 18 anos, mas desde que, se qualquer dos progenitores apresente uma declaração por escrito ao Tribunal de retornar o dito filho para Hong Kong quando para tal for solicitado, e a menos que de outro modo resolvido com o consentimento por escrito do outro progenitor, esse progenitor pode levar o dito filho de Hong Kong por um período especificado nesse consentimento por escrito;
    2. O Réu pague à Autora um sustento nominal à taxa de $1.00 ao ano; o primeiro pagamento será feito aquando do Decreto Final do Divórcio; e
    3. As custas desta acção serão taxadas como entre parte e parte e serão suportadas e pagas pelo Réu e as custas da Autora serão taxadas de acordo com o Regulamento de Apoio Legal.
    E É AINDA DECLARADO que o Tribunal reconhece que o dito filho mais novo C é o único filho da família a quem a Secção 18 dos Processos Matrimoniais e Lei de Bens Capítulo 192, se aplica e os arranjos para o seu bem-estar foram feitos e são satisfatórios, ou são os melhores que podem ser conseguidos nas circunstâncias.
    Datado neste dia 15 de Agosto de 1996.
(carimbado e assinado)
    AVISO: qualquer dos progenitores pode pedir aos Serviços de Imigração que não emita um passaporte permitindo que a dita criança viagem para o estrangeiro sem o seu conhecimento.”

Mais se certifica o seguinte:

“LA/MAT6287/95 (16)
NO TRIBUNAL DISTRITAL DE HONG KONG
JURISDIÇÃO DE DIVÓRCIOS
ACÇÃO Nº 919 DE 1996
    
    ENTRE
    B Autora
    nascida B1
    e
    A Réu

ORDEM
    
    Registado neste dia 29 de Agosto de 1996
    
Certificado de tomar definitiva a Sentença Sem Contestação (Divórcio)
N.º 919 de 1996
NO TRIBUNAL DISTRITAL DE HONG KONG
JURISDIÇÃO DE DIVÓRCIO
    Entre
    B nome de solteira B1, requerente ;
    e
    A, requerido
    Em referência à sentença proferida neste processo em 15 de Agosto de 1996, pela qual foi decretado que o casamento realizado em 20 de Dezembro de 1974 na Conservatória de Registo de Kowloon, em Hong Kong (6482) entre B nome de solteira B1, requerente, e A, requerido, será dissolvido, salvo se razão suficiente for exposto ao Tribunal, dentro de 6 semanas a contar da sentença, explicando porque a mesma não pode ser definitiva. Como não foi apresentada qualquer causa, pela presente certifica-se que a referida sentença foi, em 4 de Outubro de 1996, tornada final e definitiva e que o referida casamento foi dissolvido.
    Datado em 8 de Outubro de 1996.
    
    (uma assinatura ilegível)
    C.M.BESSON
    Juiz Chefe Distrital”
    
    
   IV - FUNDAMENTOS
    
    O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal de Hong Kong, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
    
     1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
     2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
    
    *
    1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
    
    “1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
    
    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º 2 do CPC.
    
    A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
    
    Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
    
    Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
    Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
    
    Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida pelo Tribunal de Hong Kong, Região Administrativa Especial da República Popular da China, de 15 de Agosto de 1966, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento -, sendo certo que é esta que deve relevar.2
    
    Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
    
    “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
    
    Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
    
    É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
    
    Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
    
    2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Maca
    b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
    
    Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio requerido apenas por um dos cônjuges e não contestado pela outra parte.
    3. Da ordem pública.
    Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6 E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
    
    No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre o ora Requerente e a sua mulher, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
    
    Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo também prevê a dissolução do casamento, até por mútuo consenso.
    
    Como não deixa de se prever a regulação do poder paternal, de acordo como regime legal de Hong Kong, a custódia do menor, neste caso em relação ao filho único do casamento que ficou com a mãe e o pode levar de Hong Kong, e ainda uma prestação alimentar paga à requerente do divórcio, aqui requerida, tudo em moldes que não ferem os princípios fundamentais do nosso ordenamento
    O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
    
    V - DECISÃO
    
    Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão n.º 919 de 1996, proferida pelo Tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong da República Popular da China, de 15 de Agosto de 1996, tornada definitiva em 4 de Outubro de 1996, nos seus precisos termos.
    
    Custas pelo requerente.
     Macau, 29 de Novembro de 2012

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
    
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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