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Proc. nº 875/2012
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 31 de Janeiro de 2013
Descritores:
-STDM
-Declaração de remissão/quitação


SUMÁRIO:

I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida

II- A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.

III- O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.

IV- O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.







Processo nº 875/2012
(recurso Cível e laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I- Relatório
A, do sexo masculino, com os demais sinais dos autos, intentou contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento da quantia total de MOP$ 883.075,90, a título de compensação pelo não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados e juros respectivos.
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Na sua contestação, a STDM, previamente à defesa por impugnação, excepcionou a prescrição dos créditos laborais e o pagamento e renúncia expressa ao pagamento de outras quaisquer quantias para além da mencionada na declaração de fls. 64. Deduziu ainda pedido reconvencional contra o A.
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No despacho saneador foram julgados prescritos os créditos anteriores a 10/11/1991 (nada foi decidido sobre a restante matéria exceptiva) e admitida a reconvenção.
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Foi, na oportunidade, proferida a sentença que julgou a acção improcedente com base na referida declaração e “indeferiu” o pedido reconvencional.
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso, em cujas alegações o autor formulou as seguintes conclusões:
«A - Ao caso sub judicio apenas se pode aplicar o R.J.R.T. da R.A.E.M., uma vez que o mesmo não contém lacuna que deva ser integrada, não se podendo fundar a Sentença recorrida no art. 854º do Código Civil - art. 3º do D.L. 39/99/M e art 6º, nºs 3º, 8º, 9º do C.C. e 25º e 33º do R.J.R.T.
B - De acordo Com o disposto no art. 33º do Decreto-Lei nº 84/89/M, de 03 de Abril, os direitos dos trabalhadores a créditos laborais, designadamente a salários por trabalho efectivamente prestado, são inalienáveis e irrenunciáveis.
C - Ao não aplicar ao caso concreto a norma do art. 33º do R.J.R.T., a Douta Sentença recorrida sofre de nulidade - art. 571º, nº 1 alínea d) do C.P.C..
D - Os créditos laborais dos trabalhadores da R.A.E.M. não têm um tratamento diferenciado, i.e., indisponíveis na vigência do contrato de trabalho e disponíveis após essa vigência.
E - Uma tal interpretação, no sentido da sua disponibilidade após a cessação da relação laboral, não resulta nem da letra da Lei, nem do seu espírito, nem das circunstâncias efectivas e históricas em que foi criada.
F - Bem como violaria o Princípio da Igualdade, pois os direitos dos trabalhadores nas mesma circunstâncias do recorrente têm vindo a ser acauteladas pelos Tribunais da R.A.E.M., existindo sobre a questão Jurisprudência Assente.
G - A “Declaração” assinada pelo recorrente não constitui, por falta de todos os legais requisitos e por violação do art. 33º do R.J.R.T. uma remissão ou renúncia abdicativa, sendo nula e de nenhum efeito.
H - O recorrente, embora tenha cessado o seu contrato de trabalho com a recorrida, continuou a exercer funções para a sua subsidiária, existindo entre aquela e a SJM, subsidiária da recorrida e por ela controlada, uma relação de trabalho, que a impedia de, livremente, formar uma vontade, com o que os documentos que suportam a Decisão recorrida são nulos e inquinam a mesma art. 259º do C.C.
I - A Doutrina portuguesa que suporta a Decisão recorrida não tem aplicação ao caso concreto, pelo que padece a mesma de ausência de fundamentação - art. 571º, nº 1, alíneas b) e d) do C.P.C.
J - A “Declaração” assinada pelo recorrente é vaga e imprecisa, sendo certo que os requisitos do art. 854º do CC, sem conceder, são a existência de um direito e não a mera hipótese de existência ou probabilidade de existência do mesmo, e a certeza, pela concretização, do direito a que se renúncia, quer pela sua especificação exacta, quer pelo reconhecimento da sua existência, o que não acontece in casu.
L - A “Declaração” do recorrente e documentos constantes dos autos, reportam-se a um “prémio de serviço” e não a um qualquer direito efectivado, não representando, ainda, a perda de um valor pecuniário/patrimonial, por si só e sem contrapartida.
M - Ainda, para que se dê a remissão/renúncia consensual do direito, nos termos do art. 854º do CC, é condição essencial o consentimento do devedor na remissão, que inexiste nesta concreta situação.
N - Ninguém pode dar quitação de um crédito que ignora e cuja titularidade nem sequer lhe é reconhecida, donde, não existindo qualquer remissão/renúncia abdicativa do recorrente aos seus créditos laborais e não sendo permitido retirar qualquer efeito liberatório de uma “Declaração” viciada, está a Decisão recorrida ferida de nulidade - cfr. arts. 854º, 239º e 240º do CC e art. 571º, nº 1 alíneas b) e d) do C.P.C.
O - Uma vez mais sem conceder, a “Declaração” e demais documentos que postulam a Decisão recorrida, padecem de erro vício - art. 240º do CC - uma vez que o recorrente foi levado a assiná-los pela, então, DSTE e pela R, recorrida, que não ignoravam estar a induzir em erro o recorrente/ declarante, conforme tempestivamente alegou, sendo que tasi factos não foram apurados.
O - Atento o inderrogável Princípio do Favor Laboratoris, elaborado atentas as especificidades do Direito de Trabalho e a necessidade de proteger o trabalhador, encontrando-se a solução jurídica que lhe seja mais favorável, uma vez que é a parte débil em qualquer relação laboral, deve sempre entender-se a “Declaração” sub judicio como declaração retratável - na senda da Jurisprudência da R.A.E.M., sob pena de violação do art. 6º do D.L. nº 24/89/M, de 3 de Abril.
P - Sem conceder, mesmo que a “Declaração” assinada tivesse feito surgir o contrato de remissão de dívida, de acordo com as normas imperativas dos arts. 6º e 2º, alínea d) do R.J.R.T., não podia este surtir qualquer efeito, pois é, em concreto, muitíssimo desfavorável ao recorrente.
Termos em que, e nos melhores de Direito, sempre com o mui Douto suprimento de V.Exªs, (Venerando Juízes, deverá ser declarada nula e de nenhum efeito a Douta Sentença proferida, com as legais consequências, designadamente, ser a presente Acção julgada, in tottum, procedente por provada, assim se fazendo a esperada JUSTIÇA!».
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Na sua resposta ao recurso, a STDM apresentou as seguintes conclusões:
«1. Andou bem a douta Sentença recorrida na consideração da “Declaração” como extintiva dos eventuais créditos do Autor sobre a Ré, decorrentes da relação laboral mantida entre ambos e já cessada;
2. O Tribunal a quo aderiu, assim, ao entendimento do TUI no que toca a esta matéria, mormente ao expresso no Acórdão n.º 46/2007, de 27 de Fevereiro de 2008, no âmbito do qual se declara que “A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais”;
3. Mais se invoca o Acórdão do TUI proferido no processo n.º 27/2008, de 30 de Julho de 2007, no âmbito do qual a Alta Instância qualifica a “Declaração” como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo da dívida, não obstante também afirmar que tratando-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a Ré;
4. Autor e Ré chegaram a um acordo quanto às eventuais compensações decorrentes da prestação de trabalho em dias de descanso, consubstanciando-se na assinatura da “Declaração” aqui em causa;
5. O Autor sabia e estava consciente do que assinava, aliás nada em contrário resulta da prova constante dos autos, ou seja, estava plenamente consciente de que se encontrava a dispor de eventuais direitos que eram disponíveis, porquanto a relação laboral com a Ré já tinha cessado;
6. Por outro lado, no tocante à questão fundamental da validade da declaração remissiva e a sua consequência jurídica, sabe-se que também é entendimento deste douto Tribunal de Recurso que a mesma é válida e extintiva de toda e qualquer compensação emergente da relação laboral (cfr. o Acórdão do TSI, de 24 de Julho de 2008, no âmbito do processo n.º 491/2007)1;
7. Trata-se de uma remissão que se traduz numa causa de extinção das obrigações e na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte”2, revestindo, por isso, a forma de “contrato”, como claramente se preceitua no artigo 854.º, n.º 1 do Código Civil, onde consta que o credor por remitir a dívida por contrato com o devedor, ou, tal como entende o Alto Tribunal de Última Instância, de uma questão de “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida” que se prevê no disposto no artigo 776.º do Código Civil e, de uns direitos disponíveis;
8. Seja qual for a qualificação, visa a mesma “Declaração” a produção dos efeitos de fazer extinguir a dívida do devedor e o reconhecimento definitivo da inexistência da prestação devida ao credor;
9. No caso dos presentes autos, encontrando-se a “Declaração” assinada, e cessada que estava a relação laboral entre os aqui Ré e Autor, nada mais deve aquela a este;
10. Nestes termos, porque a declaração produz efeitos extintivos sobre a eventual dívida resultante das compensações por trabalho prestado em dias de descanso, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, o doutamente decidido em Primeira Instância;
Ainda concluindo,
11. A “Declaração” não é subsumível à figura da cessão ou cedência de créditos. Aliás, bem pelo contrário, no âmbito da cessão de créditos, o crédito continua a existir, não se extingue, apenas operando-se mudanças quanto à sua titularidade. No caso dos autos e da “Declaração” em concreto, discute-se a extinção do crédito;
12. Por outro lado, o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, não tem aplicabilidade no caso dos presentes autos, porquanto o preceito refere-se a valores resultantes de créditos ao salário e não a valores resultantes de eventuais compensações por trabalho prestado em dias de descanso;
13. Esta posição da Recorrida tem, inclusivamente, acolhimento neste douto Tribunal de recurso. A título exemplificativo, socorre-se a Recorrida do recente Acórdão proferido no Processo n.º 192/2011, de 19 de Abril de 2012, no âmbito do qual esta Alta Instância Recursória se pronunciou sobre o assunto, epigrafando-o de “Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade”;
14. Nestes termos, por o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, não ter aplicabilidade no caso dos presentes autos, deverá o presente recurso ser considerado improcedente, mantendo-se na totalidade a douta Decisão recorrida;
Ainda concluindo,
15. Não há na matéria assente qualquer facto que se possa subsumir à existência de qualquer vício na formação ou declaração de vontade do Autor expressa na “Declaração” remissiva, ou a qualquer outra tipologia de falta ou vício da vontade, sendo que a prova de tais hipotéticos factos sempre caberia ao Autor.
16. Realce-se que o Autor nem sequer o alegou na sua Petição Inicial, nem em qualquer outra fase do processo. Repescando o Acórdão do TUI de 30 de Julho de 2008, proferido no processo n.º 27/2008, entendimento este também adoptado por esta Instância, mormente no recente e já citado Acórdão do TSI proferido no Processo n.º 192/2011, de 19 de Abril de 2012, transcreve-se o aí doutamente decidido: “Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.”;
17. Sem necessidade de mais, estamos em crer, deverá o recurso improceder também no que a esta parte se refere, mantendo-se na totalidade a Decisão constante da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, o que se requer;
Em face de todo o exposto, deverá o recurso apresentado pelo Recorrente ser considerado improcedente porque infundado e, consequentemente, ser mantida em conformidade a douta Sentença recorrida, na parte em que absolveu a aqui Recorrida, fazendo-se desta forma a devida e costumada Justiça».
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
   «A R. tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar, e a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestre, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação. (A)
   A R. foi, até meados de 2002, a única concessionária de jogos de fortuna ou azar em Macau, designadamente a proprietária e, ou, operadora de todos os casinos aqui existentes. (B)
   O A. inicialmente exerceu as funções de Assistente de Clientes da R., e a partir de 1985, passou a exercer as funções de “Croupier”. (C)
   O horário de trabalho do Autor foi sempre fixado pela Ré, em função das suas necessidades, por turnos diários, em ciclos de três dias, num total de 8 horas, alternadas de 4 em 4 horas, existindo apenas o período de descanso de 8 horas diárias durante dois dias e um período de 16 horas de descanso no terceiro dia. (D)
   A 5 de Agosto de 2003, o Autor emitiu a declaração constante de fls. 64, de cujo teor se passa a transcrever:
Declaração
   Eu, A,
   titular do BIR n.º XXX, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 44.522,67 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a todos os dias de licença (descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade) e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
   Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
   (A Declarante): (ass.) A.
   BIR n.º: XXX,
   Data: 05-08-2003
   Concordo e aceito tal declaração
   (ass.) - (Vide o original).
   2003.08.05 (E)
   A relação laboral entre o Autor e a Ré começou em 21 de Setembro de 1983. (F)
   A relação laboral entre o Autor e a Ré cessou em 25 de Julho de 2002. (G)
   Os rendimentos do Autor tinham uma componente fixa e uma variável. (1º)
   Os rendimentos diários efectivamente recebidos pelo Autor, entre os anos de 1991 e 2002, foram de:
   a) Ano de 1991 = MOP$ 503,45
b) Ano de 1992 = MOP$ 499,48
c) Ano de 1993 = MOP$ 565,94
d) Ano de 1994 = MOP$ 509,72
e) Ano de 1995 = MOP$ 638,44
f) Ano de 1996 = MOP$ 555,71
g) Ano de 1997 = MOP$ 607,58
h) Ano de 1998 = MOP$ 564,08
i) Ano de 1999 = MOP$ 458,28
j) Ano de 2000 = MOP$ 463,37
k) Ano de 2001 = MOP$ 485,16
   l) Ano de 2002 = MOP$ 779,37 (2º)
   A componente fixa da remuneração do Autor foi de MOP 4,10 por dia aquando da contratação até 30 de Junho de 1989, de MOP 10,00 por dia de 1 de Julho de 1989 a 30 de Abril de 1995 e de MOP 15,00 por dia, de 1 de Maio de 1995 até à data da cessação da relação de trabalho com a Ré. (3º)
   Desde o início da relação laboral e até ao fim, nunca o Autor gozou um único dia de descanso semanal. (4º)
   Desde o início da relação laboral e até ao fim, nunca o A. gozou o período de descanso anual. (5º)
   Desde o início da relação laboral e até ao fim, nunca o A. gozou descanso nos feriados obrigatórios. (6º)
   O Autor nunca recebeu qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios. (7º)
   Sem prejuízo das respostas dadas aos quesitos 4º, 5º e 6º, o Autor gozou os seguintes dias de descanso não remunerados:
a) No ano de 1994, o A. gozou 30 dias de descanso;
b) No ano de 1995, o A. gozou 7 dias de descanso;
c) No ano de 1996, o A. gozou 47 dias de descanso;
d) No ano de 1997, o A. gozou 5 dias de descanso;
e) No ano de 1998, o A. gozou 14 dias de descanso;
   f) No ano de 1999, o A. gozou 33 dias de descanso;
g) No ano de 2000, o A. gozou 24 dias de descanso;
h) No ano de 2001, o A. gozou 31 dias de descanso;
   i) No ano de 2002, o A. gozou 16 dias de descanso; (12º)».
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III- O Direito
A sentença recorrida, mesmo sem qualificar a natureza do documento (declaração) de fls. 64, absolveu a STDM do pedido, chamando à colação o acórdão do TUI lavrado no Processo nº 27/2008, que parcialmente transcreveu. Ora, mesmo sendo certo que a sentença em causa não fez, como devia, a subsunção expressa do caso material ao direito aplicável, a verdade é que a remissão para o aresto do TUI acaba por servir idênticos desígnios.
É contra essa decisão que ora se insurge o recorrente, autor da acção.
Importa, pois, indagar até que ponto a declaração em pareço assinada pelo autor da acção terá o valor que a sentença lhe atribuiu.
Tal questão foi já tratada nos tribunais da RAEM, inclusive pelo TUI. Veja-se o que este tribunal asseverou a propósito (Ac. do TUI de 30/07/2008, no Proc. nº 27/2008):
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ:
“Relacionada com a irredutibilidade encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”
De acordo com esta autorizada posição, facilmente se alcança que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o credor/autor da acção nada mais tenha a exigir do devedor.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito, não havendo razões para dela divergirmos neste momento. Veja-se, por exemplo, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 265/2010 e 317/2010, ambos de 6/10/2011; 316/2010 e 318/2010, ambos de 28/07/2011 e nº 233/2011, de 20/10/2011, entre outros. No mesmo sentido, ver ainda o Ac. de 29/09/2011, Proc. nº 490/2010, de 29/11/2012, Proc. nº 888/2012, de de 6/12/2012, Proc. nº 788/2012 .
Sendo assim, aquela declaração não pode deixar de ter efeitos extintivos da dívida, independentemente da noção que se tenha do salário, das partes que o compõem (se as gorjetas dele devem fazer ou não parte), da questão da sua natureza diária ou mensal e dos critérios ou factores de multiplicação no cálculo da compensação. Qualquer que fosse o resultado a que este tribunal chegasse sobre estas questões, a solução decisória sempre seria a mesma: confirmar o julgado pela 1ª instância nesta matéria.
Eis, assim, por que o recurso se tem que dar por improcedente.
***
IV - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 31 / 01 / 2013
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong
Vencido com termos de declaração de voto que se junta.













Processo nº 875/2012
Declaração de voto de vencido



Vencido por razões expostas na declaração de voto de vencido que juntei aos Acórdãos tirados nos processos nºs 68/2010, 476/2010, 1009/2010 e 330/2011.

RAEM, 31JAN2013

O juiz adjunto


Lai Kin Hong



1 Vide os Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Processos nº 207/2008, 249/2008, 335/2008, 380/2008, 407/2008 e 428/2008, todos de 18 de Setembro de 2008, e, mais recentemente, os proferidos nos Processos nº 44/2012, de 7 de Junho de 2012, 143/2011, 191/2011 e 192/2011, todos de 19 de Abril de 2012.
2 Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.II, Coimbra Almedina, 7.ª Edição, 1995, p. 203 e ss.
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