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Proc. nº 412/2010
(Recurso Contencioso)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 05 de Julho de 2012
Descritores:
-Execução de sentença
-Caso julgado: fundamentos e decisão
-Procedimento disciplinar
-Sindicância da medida concreta da pena.
-Representação sem poderes
-Actividade notarial: princípios aplicáveis.


SUMÁRIO:

I- Em execução de sentença a Administração deve praticar todos os actos jurídicos e operações materiais que se tornem necessários à reintegração da ordem jurídica, segundo o critério da reconstituição da situação actual hipotética (art. 174º, nº3, do CPAC). E, por outro lado, deve abster-se de praticar um novo acto administrativo inquinado do vício ou vícios que determinaram a invalidação do acto recorrido. Ou seja, tem, por força do dever de acatamento do julgado, de eliminar da ordem jurídica os efeitos positivos ou negativos que o acto ilegal tenha produzido e de reconstituir, na medida do possível, a situação que neste momento existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado e se, portanto, o curso dos acontecimentos no tempo que mediou entre a prática do acto e o momento da execução se tivesse apoiado sobre uma base legal.
II - A necessidade do alargamento dos efeitos do caso julgado aos fundamentos, em especial no contencioso anulatório, justifica-se, portanto, no âmbito de uma necessária diferenciação entre motivação-argumentação - que é a fundamentação em sentido material ou estrito, aquela que exibe o iter do pensamento do juiz, que expõe os antecedentes lógicos-jurídicos do decisum - e o accertamento preclusivo, aquele que, ao lado da anulação, surge como o momento decisório autónomo e, portanto, acaba por ser parte integrante do dispositivo em sentido material.

De modo que, tal como o juízo de ilegalidade contido na sentença transitada em julgado impede a reedição do acto com o mesmo vício, assim também o juízo de legalidade (é dizer, juízo de improcedência do vício) formulado sobre determinada pretensão alicerçada numa causa de pedir concreta impede, ao abrigo do mesmo factor de preclusão, que ela volte a ser discutida a propósito de outro acto administrativo posterior em renovação do anulado.
III- Sendo ao tribunal possível analisar da existência material dos factos nos moldes acima referidos e averiguar se eles constituem infracções disciplinares, já lhe não cabe apreciar a medida concreta da pena, salvo em casos de erro grosseiro e manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios da justiça e da imparcialidade, porque essa é uma tarefa da Administração que se insere na chamada discricionariedade técnica ou administrativa.

IV- Se o contratante exibe uma pública-forma de uma procuração que lhe concede poderes para vender bens imóveis do representado, mas que não corresponde já ao documento original, por ter sido entretanto revogada, com conhecimento do próprio representante e do notário, não deve este preparar e celebrar a escritura por estar a dar fé pública a um acto que, além de se fundar numa prática eventualmente ilícita, é contrário à vontade do representado. Assim, não basta dizer que o contrato é celebrado com representação sem poderes é ineficaz para, ao abrigo do art. 16º do Código do Notariado, o notário não se negar a praticá-lo.







Proc. Nº 412/2010
(Recurso contencioso)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, advogado e notário privado, com domicílio profissional na Av. da XXX, nº XXX, edif. XXX, XXº andar, “X” e “X”, em Macau, instaurou o presente recurso contencioso contra o acórdão do Conselho Superior da Advocacia, datado de 26 de Fevereiro de 2010, que lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão do exercício das suas funções como advogado pelo período de 5 (cinco) anos.
Ao acto imputando vícios vários, concluiu a sua pretensão pedindo a declaração da sua nulidade ou a sua anulação.
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Houve contestação e produção de prova testemunhal.
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Em sede de alegações facultativas, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«O presente recurso tem por objecto a decisão do Conselho Superior da Advocacia proferida em 5 de Fevereiro de 2010 e notificada ao ora Recorrente em 21 de Abril, nos termos da qual condena o ora Recorrente numa pena de suspensão do exercício da profissão de Advogado pelo período de 5 (cinco) anos;
b) Sustenta, para tal, que o ora Recorrente teria violado os seus deveres deontológicos enquanto Advogado, porquanto, teria aceitado lavrar, enquanto Notário, cinco escrituras sem que o representante do vendedor estivesse munido de uma procuração em vigor;
c) O ora Recorrente dá por integralmente reproduzido, na sua integralidade, o conteúdo e fundamentos da sua petição inicial de recurso contencioso;
d) A decisão ora Recorrida não executa a decisão do Tribunal de Última Instância proferida no processo nº 581/2006, violando, desse modo o disposto no artigo 174º do Código de Processo Administrativo Contencioso;
e) A decisão ora recorrida incorre em vício de falta de fundamentação, porquanto não procede à identificação dos meios de prova que em que se sustenta a prova de cada um dos factos dados como provados, violando desse modo, o disposto nos artigos 113º e 114º do Código do Procedimento Administrativo;
f) A decisão ora Recorrida incorre em vício de violação de lei, por erro e contradição nos respectivos pressupostos de facto ao não considerar como relevantes os factos constantes do Capítulo V da presente petição:
(i) Designadamente, aqueles em que contextualiza a outorga da procuração a favor do Senhor Bonzo Superior e das afirmações deste perante o ora Recorrente;
(ii) Por não considerar os verdadeiros motivos da recusa da Senhora Ora. T em lavrar as referidas escrituras;
(iii) Por escandalosamente, desconsiderar as advertências feitas pelo ora Recorrente no corpo das escrituras de compra e venda juntas aos autos de procedimento disciplinar de fls. 126;
g) A decisão ora recorrida incorre em vício de violação de lei, por erro e contradição nos respectivos pressupostos de facto, ao alegar que ora Recorrente tenha actuado com conhecimento da falsidade da pública-forma;
h) Valorando negativamente as dúvidas existentes quanto a esse facto e, assim, a presunção de inocência de que beneficia o ora Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 29º da Lei Básica;
i) A decisão ora recorrida enferma de vício de violação de lei, por erro e contradição nos respectivos pressupostos de facto e de Direito quanto à consideração dos prejuízos que resultam para o património da Associação mandante por força das escrituras por si lavradas e da eventual falta de poderes de representação por parte do Senhor Bonzo, K, ignorando desse modo, o disposto no artigo 261º do Código Civil;
j) A decisão recorrida viola a lei, por erro e contradição nos pressupostos de facto e de Direito quanto ao juízo relativo à revogação da procuração, violando, também, quanto a esta matéria, a presunção de inocência de que beneficia o ora Recorrente e, bem assim, o disposto nos artigos 113º e 114º do Código do Procedimento Administrativo;
k) Omite, ainda, quanto a esta parte a instrução do processo por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, violando o disposto no artigo 107º do Código de Processo Penal, aplicável, ex vi artigo 65º do Código Deontológico;
l) A decisão recorrida incorre em violação de lei, por erro nos respectivos pressupostos de facto e de Direito, atento o disposto no artigo 1096º do Código Civil e, bem assim, por contradição entre a decisão e os factos anteriores atenta a inexistência de qualquer acto de revogação eficaz perante a Associação Mandante, tal como também provado por prova testemunhal entretanto produzida;
m) A decisão recorrida incorre em violação de lei, por erro e contradição nos respectivos pressupostos de facto ao indiciar que vários notários recusaram lavrar as escrituras que solicitadas ao ora Recorrente;
n) As considerações tecidas a este respeito pelo Conselho Superior da Advocacia contradizem os factos anteriores e não têm suporte nos factos provados.
o) Do mesmo modo, a decisão recorrida incorre em violação de lei, por erro e contradição nos respectivos pressupostos de facto ao indiciar que o ora Recorrente tenha tido conhecimento da impugnação judicial da subsistência da referida procuração e, bem assim, que a consulta do Dr. P à Direcção dos Serviços de Justiça estaria truncada.
p) Do mesmo modo, incorre em grave violação de lei por erro e contradição nos pressupostos de facto e de Direito o juízo de ilicitude da conduta do ora Recorrente, enquanto Notário, atento o que se acha consagrado nos artigos 869º e 261º do Código Civil, e, bem assim, nos artigos 14º e 16º do Código do Notariado, quer pela imputação da violação das referidas normas, quer a título objectivo, quer a título subjectivo.
q) Em particular, viola ainda a decisão recorrida o disposto no artigo 13º do Código Penal, aplicável ex vi o artigo 65º do Código Disciplinar, porquanto tal juízo encontra-se em contradição com os factos anteriores e não têm suporte nos factos provados.
r) A decisão recorrida viola ainda o disposto no artigo 360º do Código de Processo Penal, aplicável, ex vi o artigo 65º do Código Disciplinar dos Advogados ao considerar factos não constantes da Acusação e sobre os quais o ora Recorrente não pode, devidamente, exercer o contraditório;
s) A decisão recorrida violou os artigos 5º, 6º e 7º do Código Deontológico ao considerar depoimentos prestados com violação do sigilo profissional;
t) A decisão proferida pelo Conselho Superior da Advocacia é manifestamente desproporcional e injusta, quer pela errónea consideração dos seus pressupostos de facto, quer pela errónea consideração dos respectivos pressupostos de Direito, e, ainda, porque os mesmos se encontram em contradição com os restantes factos não considerados mas provados nos autos cuja ponderação determinaria juízo completamente distinto do formulado na decisão recorrida;
u) A medida da pena aplicada é matéria sindicável contenciosamente, não apenas porque é manifestamente desproporcional, mas também porque atenta a natureza material e essencialmente jurisdicional da decisão proferida pelo Conselho Superior de Advocacia, o âmbito do recurso é de jurisdição plena, assumindo este uma finalidade de reexame da decisão recorrida, sob pena de violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva.
Nestes termos e nos mais de Direito que Vossa Excelência mui doutamente suprirá se requer,
a) Seja a decisão do Conselho Superior da Advocacia declarada nula, por violação do disposto no artigo 174º do Código de Processo Administrativo Contencioso;
ou, para o caso em que assim se não entenda,
b) Seja a decisão do Conselho Superior da Advocacia anulada, por violação de lei, por erro e contradição nos respectivos pressupostos de facto e de direito,
ou, ainda, para o caso em que assim se não entenda,
c) Seja a referida decisão anulada ou declarada nula por manifesta violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça».
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O CSA, por seu turno, concluiu as suas alegações do seguinte modo:
«I. O CSA discorda frontalmente dos argumentos aduzidos pelo Recorrente, nos termos que seguidamente se explanam e a que se somam os já expendidos no decurso dos presentes autos de recurso contencioso, em sede de contestação, e inclusivamente no respectivo processo instrutor dando assim por integralmente reproduzidos o conteúdo da sua contestação e o próprio teor daquele processo instrutório para os efeitos do artigo 54.º, in fine, do CPAC.
II. Como tal, o CSA impugna expressamente toda a matéria factual alegada pelo Recorrente não só na petição de recurso como ainda nas suas alegações facultativas, bem como contesta as ilações, presunções e conclusões ali aduzidas e, bem assim, não aceita a matéria de direito expendida como fundamento do recurso, nem os vícios jurídicos imputados ao Acórdão recorrido - o qual é válido e legal e, como tal, deve ser mantido em toda a sua extensão.
III. Não tem razão o Recorrente ao invocar que o Acórdão anulatório não foi executado uma vez que o CSA, como decorre distintamente respectivo texto, proferiu o Acórdão em crise em plena conformidade com o disposto no artigo 174.º do CPAC e o determinado no referido Acórdão do TUI, renovando o acto, in casu, com outra pena e clara remoção dos vícios que tinham inquinado a deliberação, em pleno respeito pelo caso julgado material.
IV. Como refere o TUI, anulado o acto administrativo e sendo o recurso contencioso em causa de mera legalidade, o CSA teria apenas de executar o Acórdão anulatório, tanto podendo renovar o acto com o mesmo conteúdo (aplicação da mesma pena) ou com outro conteúdo (aplicação de outra pena), como não renovar (não punir o recorrente), na discricionariedade de que dispõe.
V. É que o princípio do respeito do caso julgado não impede a substituição do acto anulado por outro idêntico, desde que a substituição se faça, como se fez, sem repetição das ilegalidades ou dos vícios determinantes da anulação.
VI. Não se trata, pois, de um caso de inexecução da decisão do TUI, nem de ofensa do caso julgado formado com o Acórdão anulatório, mas tão-só de uma situação em que o Recorrente não concorda com a medida da nova pena que lhe foi imposta.
VII. O Acórdão anulatório do TUI não estabelece essa alegada relação directa, absoluta e inequívoca entre o conluio e o agravamento da pena proposta pelo Exmo. Instrutor, isto é, em que aquele facto (o conluio) seria, na interpretação do Recorrente, uma espécie de conditio sine qua non da medida da pena aplicada inicialmente àquele.
VIII. O Acórdão do TUI claramente não estabeleceu qualquer dever para o CSA no sentido de limitar a medida da pena de eventual novo acto punitivo, nomeadamente em função da necessária e indispensável eliminação do vício determinante da anulação em sede de execução da decisão judicial nos termos do artigo 174.º do CPAC - e nem o poderia ter feito.
IX. De qualquer forma, o CSA procedeu a uma nova reponderação da situação do Recorrente à luz dos factos dados como apurados, tomando naturalmente em linha de conta a inexistência da prova de que aquele teria actuado em conluio com os demais arguidos no processo de preparação e celebração das escrituras, praticando para o efeito os actos jurídicos e realizando as operações materiais necessárias de modo a colocar a situação, tanto no plano do Direito como no plano dos factos, em conformidade com a modificação introduzida.
X. E, desse modo, renovando o acto punitivo, ainda que com uma pena mais reduzida em face do acima exposto, expurgado das ilegalidades que o inquinavam, em total conformidade com a decisão jurisdicional proferida pelo TUI e em pleno respeito pelo caso julgado material.
XI. Conclui-se assim que a medida concreta da pena que foi aplicada pelo CSA ao Recorrente, de entre os limites legalmente definidos, resultou de uma escolha ponderada em função das circunstâncias aplicáveis ao caso sub judice, mostrando-se a mesma pena disciplinar justa e proporcional.
XII. Pelo que não houve, nem há, com a prolação do Acórdão recorrido, qualquer ofensa do caso julgado e como tal, não se verifica qualquer nulidade do acto, em particular a prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 122.º do CPA, conforme imputa o Recorrente na petição de recurso e nas suas alegações facultativas.
XIII. O CSA identificou com clareza as provas em que baseou a decisão sobre a matéria factual dada como provada, tendo seleccionado os factos provados relevantes para a decisão tomada e desconsiderado apenas aqueles sem qualquer relevância para o caso sub judice, sempre em respeito da prova produzida e com observância do princípio do contraditório.
XIV. De resto, nenhum dos alegados factos que o Recorrente entende, no seu cenário, como devendo ter sido dados como provados, teria qualquer relevância factual ou jurídico-disciplinar para diminuir ou mesmo afastar a sua responsabilidade.
XV. De qualquer forma, cumpre sublinhar que, ao contrário do vem alegado nas alegações facultativas apresentadas pelo Recorrente, não resultou minimamente provada em sede de audiência de discussão e julgamento a matéria de facto que vem assinalada nos artigos 17.º, als. a) a i), 18.º, 19.º, als. a) a i), 20.º, (I) a (VI), 21.º, 25.º e 27.º a 29.º das referidas alegações.
XVI. Em particular, não ficou minimamente demonstrado que tivesse existido qualquer acordo para transmissão dos prédios em causa da Associação Mandante (“Associação de Piedade e de Beneficiência XXX”), para a Associação de Beneficiência dos Bonzos do Templo ou Pagode XXX, e, muito menos, que tivesse sido patenteado pelos beneficiários da referida procuração, perante o Recorrente, que a mesma não havia sido revogada.
XVII. Acresce que os depoimentos das duas testemunhas arroladas pelo Recorrente (B e C) não merece qualquer credibilidade, sendo que essas duas pessoas estiveram envolvidas, de forma particularmente activa, na ocorrência dos factos sub judice.
XVIII. Sendo que a primeira testemunha, inclusivamente, tinha perfeito conhecimento não só da falta de poderes do K para outorgar as escrituras em causa em nome da Associação Mandante, como ainda da falsidade da pública-forma em causa e, mesmo assim, assinou essas escrituras na qualidade de comprador, adquririndo os bens em causa por essa forma fraudulenta.
XIX. Como se disse, não resultou minimamente provada em sede de audiência de discussão e julgamento a matéria de facto que vem assinalada no artigo 21º, als. a) e b), das alegações facultativas apresentadas pelo Recorrente.
XX. O que resultou, sim, plenamente assente foi de que a pública-forma que instruiu as escrituras em causa foi tirada de uma fotocópia da procuração em apreço, tal como confessa o Dr. R no seu depoimento (cfr., Termo de transcrição de depoimento de testemunha de fls. 784 e ss.), não obstante ter aposto, no verso da dita pública-forma, os seguintes dizeres “Certifico que conferi neste cartório a presente fotocópia que contém cinco folha(s) e vai conforme ao original, que me apresentaram, rubriquei e restituí.”, com assinatura e a data de 7 de Junho de 1995.
XXI. Sendo perfeitamente despropositadas as alegações do Recorrente de que a revogação da procuração teria que ser feita judicialmente ou por instrumento público, sendo que, quanto a esta problemática, já o TUI se pronunciou no sentido de que, segundo o princípio tempus regit actus, as condições de validade de um negócio jurídico teriam de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado (vide, Acórdão de 1/12/2004, Processo n.o 23/2004).
XXII. Sendo certo que, segundo o artigo 262.º, n.º 2 do Código Civil de 1966 (art.º 255.º, n.º 2 do Código Civil de 1999), a procuração tinha a forma exigida para o negócio que o procurador devia realizar, salvo disposição legal em contrário, nomeadamente o art. º 127.º do Código do Notariado de 1967, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 81/90/M (art.º 128.º do Código do Notariado de 1999), concluindo assim o TUI de que para a revogação da procuração em causa, reinava o princípio de liberdade de forma (v., acórdão acima aludido).
XXIII. E o próprio TSI vem defender o mesmo entendimento sobre esta questão, afirmando peremptoriamente que “de acordo com a lei, a revogação da procuração não está sujeita a forma especial, quer seja necessário ou não o consentimento do interessado, o que facilmente se compreende, pois é no momento da outorga da procuração, mas já não da sua revogação, que se impõe ao representado e representante uma ponderação mais consciente do seu acto.” (vide, Acórdão de 9/02/2012, Processo no 616/2007).
XXIV. Não há, também, ao contrário do que o Recorrente alega, qualquer contradição na matéria de facto apurada e que, em particular, pudesse consubstanciar o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, do mesmo modo que o Acórdão recorrido não violou, em nenhuma altura, o princípio de presunção de inocência ou qualquer outra garantia de defesa do Recorrente.
XXV. O Acórdão recorrido encontra-se bem fundamentado, do ponto de vista dos factos e do Direito, e a decisão disciplinar aplicada ao Recorrente é plenamente justificada, adequada, proporcional e razoável face à gravidade da sua conduta.
XXVI. No Acórdão em crise ficou claramente provado que o Recorrente viabilizou a outorga de várias escrituras de compra e venda através da utilização de uma pública-forma de uma procuração que sabia ser falsa.
XXVII. “O arguido Sr. Dr. A sabia e tinha plena consciência de que a referida pública-forma era falsa por ter recebido as comunicações que constituem os documentos de fls. 89 a 118 cujo teor se dá aqui por reproduzido”.
XXVIII. O Recorrente tinha o dever de se recusar a viabilizar a outorga das escrituras, à semelhança do que fizeram outros colegas contactados para o mesmo fim, sem que lhe fosse exibido o original da procuração.
XXIX. Como ilumina o douto Acórdão do TUI, o Recorrente face à informação de que dispunha de que a pública-forma da procuração era falsa, “tinha a estrita obrigação de pedir a exibição do original da procuração para poder celebrar escrituras com base na pública-forma”.
XXX. Entre a escolha de duas opções, a de recusar a outorga das escrituras por o acto, instruído com documento falso, ser nulo, uma, e a de as realizar, recorrendo a um subterfúgio formal, outra, o Recorrente não hesitou e preferiu a segunda, ou seja aquela em que não cumpria com a sua obrigação primordial enquanto notário - a de conferir fé pública aos actos jurídicos em causa.
XXXI. Actos esses que, ao invés do que reclama o Recorrente na sua alegação eram claramente nulos, por contrários à lei e à ordem pública e ofensivos dos bons.
XXXII. Ao contrário do que clama o Recorrente, aos notários privados cabe a faculdade legal de recusar a prática de quaisquer actos da sua competência, incluindo a outorga de escrituras, sem necessidade de invocar razões que o justifiquem, nos termos do artigo 17.º do Código do Notariado
XXXIII. Ficou provado nos autos que o Recorrente cobrou honorários de Advogado, de que emitiu recibo de quitação, o que demonstra e, no âmbito da mesma transacção, o Recorrente interveio na dupla qualidade de Advogado e Notário Privado.
XXXIV. Quando a qualidade em que o Advogado age é a de Notário Privado, o princípio ínsito no artigo 1.º do Código Deontológico aplica-se com especial acutilância, porquanto a aquisição da qualidade de Notário Privado depende da condição prévia de o candidato ser Advogado com inscrição em vigor na Associação dos Advogados de Macau.
XXXV. Estas questões, como outras concernentes aos alegados vícios do acto e de novo suscitadas pelo Recorrente neste recurso, designadamente a relativa à prova da falsidade da pública-forma, são questões definitivamente decididas no referido douto Acórdão do TUI, sobre as quais a decisão do TUI constitui caso julgado material, após o seu trânsito em julgado - cfr. 2.º parágrafo da pág. 81 e alínea C) da Decisão, a pág. 83, ambas do Acórdão.
XXXVI. Não se regista, no Acórdão em crise, qualquer contradição entre a decisão punitiva e os factos apurados em inquérito que, no entender do Recorrente, resultaria da consideração da sua conduta como actuando com dolo eventual, nem a inexistência do preenchimento do tipo subjectivo de infracção.
XXXVII. Não tem razão o Recorrente, dado que tais “novos factos”, que não importam a alteração substancial dos factos constantes da Acusação, são meras ilações ou conclusões extraídas dos factos ali descritos e dados como provados e sobre os quais o mesmo teve oportunidade de os contraditar em sede de defesa.
XXXVIII. Não corresponde ainda minimamente à verdade que a prova obtida através dos depoimentos dos Exmos. Advogados seja nula, por produzida em violação do sigilo profissional (n.º 1 do artigo 7º do Código Deontológico), sendo que, no que se refere ao depoimento do Exmo. Dr. L, torna-se evidente que a matéria sobre que recaíu esse depoimento não está incluída na obrigação de segredo profissional.
XXXIX. Considerações idênticas poderão aplicar-se aos restantes ilustres causídicos que prestaram o seu depoimento no processo instrutório em questão no sentido de que a matéria sobre que recaíu a sua inquirição não está incluída, de igual modo, na obrigação de segredo profissional, se bem que, neste caso, como já foi dito, a convicção do Exmo. Instrutor e, por adesão, a do CSA, foi formada por meios probatórios que não o testemunho daqueles Colegas.
XL. “A aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, total desrazoabilidade ou violação dos princípios gerais do direito administrativo.
XLI. Para formar a sua decisão, o CSA aprovou a proposta apresentada pelo Exmo. Instrutor, mas discordou, face à gravidade do comportamento do Recorrente, com a pena de 2 anos de suspensão, por se revelar insuficiente e desajustadamente inferior ao seu grau de culpa.
XLII. Pelo conjunto destas razões, o CSA, observando o disposto no artigo 42º do Código Disciplinar dos Advogados, entendeu que a pena de 5 anos era a mais ajustada à conduta do Recorrente, que agiu com dolo, ainda que eventual, e à gravidade dos factos em causa.
XLIII. Atento o critério adiantado pelo Exmo. Instrutor, tomando como ponto de partida a média entre os limites mínimo (6 meses) e máximo (15 anos) da pena de suspensão prevista no artigo 41.º do Código Disciplinar, e considerando as circunstâncias atenuantes e agravantes do Recorrente, o CSA entendeu que um terço da pena máxima (5 anos) era a mais proporcionada, razoável e justa, tendo também em conta que essa pena representa pouco mais de metade da medida da pena aplicada a cada um dos outros dois arguidos (8 anos).
XLIV. Por todos estes factores, o CSA entende que a pena aplicada ao Recorrente é justa, porque adequada e proporcional à gravidade dos factos praticados e às necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir no presente caso».
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O digno Magistrado do M.P., no seu parecer de fls. 938-944, emitiu a seguinte opinião:
«Tanto quanto ousamos sintetizar da longuíssima alegação do recorrente, assaca este ao acto visado - acórdão do Conselho Superior da Advocacia de 27/2/10, que o condenou numa pena disciplinar de suspensão do exercício das suas funções como advogado pelo prazo de 5 anos, por violação dos seus deveres deontológicos enquanto tal, por ter aceite lavrar várias escrituras públicas de compra e venda de imóveis, na sua qualidade de notário privado, com base numa pública-forma falsa de uma procuração que se mostrava revogada e que o mesmo teria aceite como boa, causando, com isso, prejuízos significativos ao mandante dessa procuração - vícios de:
- Violação do disposto no art.º 174º, CPAC, por não execução de decisão do TUI proferida no âmbito do proc. 581/2006;
- Falta de fundamentação, por não proceder à identificação dos meios de prova em que sustenta a prova de cada um dos factos tidos como provados;
- Erro e contradição nos pressupostos de facto, por não consideração de factualidade relevante, errónea conclusão de ter o recorrente actuado com conhecimento da falsidade da pública forma, erróneo juízo relativo à revogação da procuração e errónea conclusão que o recorrente tenha tido conhecimento de impugnação judicial de subsistência da procuração e que a consulta do Dr P à D.S.J. estivesse truncada;
- Indevida apreciação do juízo de ilicitude da conduta do recorrente, enquanto notário;
- Consideração de factos não constantes da acusação disciplinar sobre os quais não teve oportunidade de exercer o contraditório;
- Indevida consideração de depoimentos prestados, com violação do sigilo profissional e
- Ofensa da proporcionalidade, matéria que entende sindicável contenciosamente também por o âmbito do recurso poder ser assumido como de jurisdição plena.
Cremos, porém, não lhe assistir qualquer razão.
Desde logo, não se vê que a entidade recorrida, ao proferir, na sequência do citado acórdão do TUI, novo acto, expurgando a responsabilidade do recorrente do não comprovado conluio com os demais arguidos no processo disciplinar e aplicando, como normal consequência, nova medida disciplinar de pena do mesmo tipo, não tenha cumprido escrupulosamente o preceituado no art.º 174º, CPAC, sendo que, em boa verdade, a ponderação a efectuar a partir do teor desse aresto, atenta a discricionariedade da Administração a tal nível, e não importando o vício detectado, à partida, para a consideração da Administração, qualquer especial “vínculo” em termos de tipo e medida de pena disciplinar a aplicar, tanto poderia consistir no que consistiu, como na manutenção do decidido quanto ao tipo e medida disciplinar aplicada (conquanto expurgado e removido o vício detectado), como até a não renovação do acto, tudo indicando, pois, não se tratar de caso de eventual inexecução do acórdão do TUI ou suposto atropelo do caso julgado com o mesmo formado, mas tão só do inconformismo do recorrente perante novo acto que, com perfeito respeito no decidido por aquele aresto, determinou aplicação de medida disciplinar do mesmo tipo, se bem que em medida mais benevolente.
No que tange à menção dos meios de prova tidos como idóneos para motivação válida do decidido, bastará uma atenta leitura do acórdão em crise para facilmente se alcançar, com clareza, suficiência e proficiência, a identificação dos diversos tipos de provas em que se estribou a decisão sobre a matéria factual, com selecção dos factos considerados pertinentes e relevantes para aquela, ficando um cidadão médio em perfeitas condições de assimilar em que tipo de provas se sustentou, de facto, o decidido.
Poderá (como aparenta ser o caso do recorrente) não se concordar com o tipo de apreciação e valoração empreendidos, mas tal não será já do domínio da fundamentação questionada a esse nível, mas já de análise substancial da prova produzida, objecto de diferente escrutínio que, de resto, o recorrente não deixa de empreender, sendo certo, porém, que em termos de motivação ligada à menção dos diferentes tipos de prova sustentadores da matéria factual apurada, a mesma não deixou de ser expressa.
Quanto aos assacados erros e contradições dos pressupostos factuais subjacentes à decisão, parece assistir-se, por parte do recorrente, a uma espécie de “construção”, de “cenário”, não coincidentes com a prova efectivamente produzida, ou, pelo menos, valorada, onde, por um lado, são postos em questão alguns dos factos efectivamente demonstrados e motivadores do decidido, elegendo-se, por outro, factos não dados como apurados e pretextando-se, finalmente, suposta contradição entre os mesmos.
Ora, do escrutínio do acervo probatório carreado para os autos, quer do constante do instrutor apenso, quer da prova produzida já no decurso do processo, constata-se corresponderem, no essencial, as conclusões formuladas em sede de apuramento factual ao que decorre daquele acervo, não se divisando quaisquer contradições relativas a qualquer matéria.
O que se verifica, isso sim, é que o recorrente, procurando nomeadamente valorizar depoimentos de testemunhas cuja credibilidade, à partida, merece as mais sérias reservas, atento o seu directo envolvimento nas práticas e tentativas, pelo menos pouco claras e legítimas relatadas nos autos, (casos de B e C), pretende concluir por prova não efectuada, designadamente relativa à sua falta de conhecimento sobre a falsidade da pública-forma e sobre a impugnação judicial da subsistência da procuração, à existência de acordo para transmissão dos prédios em causa da associação mandante “Associação de Piedade e Beneficiência XXX”, para a “Associação de Beneficiência dos Bonzos do Templo ou Pagode XXX” e ao relato, perante si, por parte dos beneficiários da procuração em questão, que aquela não fora revogada.
Temos, assim, que os supostos erros e contradições que o recorrente vê afectarem a factualidade subjacente ao decidido se reportam, bem vistas as coisas, ao seu inconformismo com a apreciação e valoração que da mesma foi efectuada pela entidade recorrida, quando, da apreciação concreta da prova empreendida a tal respeito, nada permite infirmar ou contrariar o acerto das conclusões essenciais formuladas.
Relativamente ao “juízo de ilicitude”, encontra-se devidamente demonstrado que o recorrente, na dupla qualidade de advogado (cobrando honorários, com emissão de recibo de quitação) e notário privado viabilizou a outorga de várias escrituras de compra e venda de imóveis, através da utilização de uma pública-forma de uma procuração que deveria saber ser falsa, por, além do mais, ter recebido comunicações nesse sentido, sendo que, face à informação de que dispunha tinha, nos termos do acórdão do TUI “estrita obrigação de pedir a exibição do original da procuração para poder celebrar escrituras com base na pública-forma”, detendo o dever de recusar a viabilidade e outorga das escrituras sem que lhe fosse exibido aquele original, à semelhança do que sucedeu com outros colegas contactados para o mesmo fim. Agindo em contrário, a ilicitude é patente.
No que respeita à assacada consideração de factos não constantes da acusação disciplinar, sendo salutar que sobre toda a matéria imputada tenha o visado oportunidade de a contraditar e não se concordando, a este respeito, com a tese da recorrida de que se trate apenas de meras ilacções ou conclusões decorrentes da factualidade constante daquele libelo, a verdade é que se não descortina que a matéria adiantada a tal propósito contrarie os factos ali descritos e imputados, ou importe alteração substancial do acervo respectivo.
Na verdade, a consideração da existência de prejuízos causados pela conduta do recorrente decorre, com normalidade da exposição daqueles factos, de que o mesmo teve plena oportunidade de se defender, do mesmo passo que o conhecimento de que a genuinidade do mandato estava a ser impugnada judicialmente e de que a consulta do Dr P à DSJ se encontrava truncada, se revela relativamente espúria, em face da imputação expressa na acusação disciplinar de que o arguido detinha, por outras vias, o conhecimento de que a pública-forma utilizada resultava de procuração falsa e, também quanto a esse conhecimento, teve o interessado oportunidade de contraditar.
Quanto à prova obtida através dos depoimentos dos Exmos advogados, Drs XXX, XXX e XXX, convirá referir ter o próprio instrutor do processo disciplinar, cuja convicção foi acolhida pelo acto em crise, feito questão de referir ser dispensável o recurso à mesma, já que tais depoimentos, sendo elucidativos se não revelam decisivos, dado a matéria da acusação resultar suficientemente provada do teor da documentação junta aos autos e depoimentos das restantes testemunhas.
De todo o modo, sempre se dirá não se alcançar que o teor de tais depoimentos se encontre efectivamente ao abrigo do segredo profissional (nº 1 do art.º 7º do Código Deontológico), revelando-se isso patente relativamente ao Dr L, já que o depoimento respectivo se não reporta a factos revelados por clientes, mas sim factos de que foi testemunha presencial, não se referindo a matéria a qualquer litígio ou negociações com vista a composição amigável de litígio, sendo que o seu contributo se reporta a factos já constantes de prova documental junta ao procedimento.
Finalmente, no que respeita à medida concreta da pena disciplinar aplicada, não vemos que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, a natureza do presente recurso de decisão proferida pelo CSA (pese embora apelidada de “acórdão”) seja de natureza “material e essencialmente jurisdicional”, com finalidade de reexame da decisão recorrida: do que se trata, para todos os efeitos, é de recurso contencioso, que não jurisdicional, daquela decisão razão por que o escrutínio da medida disciplinar concreta aplicada haverá que ser efectuado a essa luz.
Fosse a natureza do recurso a que o recorrente almeja e não teríamos qualquer dúvida em apontar como mais adequada, consentânea e justa a medida disciplinar adiantada pelo Exmo. instrutor do procedimento: simplesmente, não sendo o caso e havendo que respeitar escrupulosamente a separação de poderes, também não divisamos que, a partir da medida que a entidade recorrida entendeu por bem adoptar, seja de molde a concluir, no caso, pela ocorrência de erro notório, manifesta injustiça, ou violação dos princípios da proporcionalidade, justiça ou imparcialidade.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer provimento o presente recurso»
***
II- Os Factos
1 - O recorrente, por acórdão do Conselho Superior de Advocacia da Associação dos Advogados de Macau de 11/06/2007, foi punido disciplinarmente na pena de 6 anos de suspensão do exercício de funções de advogado, nos termos do art. 41º, al. e), do Código Disciplinar dos Advogados.
2- Tal acórdão viria a ser anulado pelo TUI em 13/01/2010, no processo nº 24/2009, em virtude de a decisão punitiva, aos factos que constavam do relatório do instrutor, ter acrescentado o seguinte:
“5. Apesar disso, todos os 3 (três) arguidos trabalharam em 2003 na obtenção dos documentos que o arguido Dr. A. precisava para instruir as escrituras que obtiveram e perante este usaram e forneceram em 2003 (não podendo pois, também por isso, proceder a alegada prescrição), a este ajudando a consumar a outorga em apenas 2 dias (23/6 e 25/6 de 2003) das escrituras de compra e venda dos diversos imóveis identificados nos autos, indiferente ao resultado”.
3- A respeito deste facto novo, o referido acórdão do TUI asseverou na sua fundamentação:
«Esta consideração contradiz os factos anteriores e não têm suporte nos factos provados. São admissíveis ilações extraídas a partir dos factos provados, mas a mencionada consideração não resulta dos factos, pelo que se resolve a contradição dando prevalência aos factos constantes do acervo dos factos considerados provados, considerando-se tal ilação como não escrita. O que implica, inexoravelmente, a anulação do acto recorrido, dado que tal fundamento pode ter influenciado a integração do ilícito disciplinar e a escolha e a medida da pena».
4- Em execução desse aresto, foi proferido novo acórdão do CSA de Macau, em 26/02/2010, com o seguinte teor:
«ACÓRDÃO
Os membros do Conselho Superior de Advocacia de Macau, em execução do (i) douto Acórdão proferido nos autos de recurso jurisdicional em matéria administrativa que, sob o nº 24/2009, correram termos pelo Tribunal de Segunda Instância, transitado em julgado em 28 de Janeiro de 2010 DELIBERAM, por unanimidade dos membros presentes…
I-
A Instrução dos Factos Denunciados
(….)
II
A ACUSAÇÃO
(…)

Existe em Macau uma Associação, devidamente registada na Direcção dos Serviços de Identificação de Macau sob o nº. 161, denominada “Associação de Piedade e de Beneficência XXX, também conhecida como “XXX”.

A sua Direcção integra vários membros entre os quais o Sr. V.

Existe também uma outra Associação denominada “Associação dos Bonzos do Templo ou Pagode XXX.

São legais representantes desta última os Srs. K, B e C. Nenhum destes representantes integra a Direcção da “Associação de Piedade e de Beneficência XXX”.

Em 1993, o Sr. V, na altura Vice-Presidente da referida Associação, de Piedade e Beneficência XXX, outorgou, em representação desta, no Cartório do Notário Privado Sr. Dr. L uma procuração a favor daquele Sr. K, conferindo-lhe vários poderes, entre eles o de celebrar contratos de venda tendo por objecto imóveis dos quais era proprietária (fls. 27 e 31).

No dia 14 de Fevereiro de 1995, após prévio acordo entre os representantes daquela Associação e o Sr. K, a procuração em causa foi revogada, revogação levada a efeito no Escritório do Exmº. Sr. Dr. L e em presença deste (fls. 27 a 31).

A revogação foi feita estando também presente aquele K (fls. 27 a 31).

A mesma revogação foi feita, apondo-se, na parte superior do rosto do original da procuração em causa, a respectiva declaração, na redacção da qual foram utilizados caracteres chineses - 本授權書即日取消作廢 14/2/95 - que significam o seguinte: “a presente procuração cancela-se a partir da presente data 14/02/95”.

Além disso, no texto da primeira página forem apostos dois riscos oblíquos e paralelos e no espaço entre os mesmos a expressão inglesa “cancelled”, e outros riscos em restantes páginas (fls. 27).
10º
A declaração em causa foi subscrita pelos legais representantes daquela Associação V e XXX e também pelos Srs. XXX e K (fls. 27).
11º
A mesma declaração revogatória foi confirmada pelo Sr. Dr. L o qual sob a mesma manuscreveu a seguinte frase: “Fui presente: 14/02/95” seguida da sua rubrica, apondo também o seu carimbo de Advogado (fls. 27).
12º
O original da procuração revogada foi então devolvido pelo Sr. K a um representante da mandante, sendo depois guardado num cofre de segurança do Banco Tai Fung S.A. R. L..
13º
Esse mesmo original ficou ali guardado e só foi retirado do cofre anos mais tarde, e isto mesmo por ordem judicial.
14º
No obstante o que fica referido, no dia 7 de Junho de 1995, o arguido Sr. Dr. R, na qualidade de Notário Privado, entendeu certificar que havia conferido uma fotocópia daquela procuração com o respectivo original e elaborar a respectiva conta a qual atribuiu o nº. 6.
15º
Em outras palavras, no dia 7 de Junho de 1995, o referido arguido Sr. Dr. R, na qualidade de Notário Privado, declarou ter extraído uma fotocópia do original daquela procuração e que a mesma estava em conformidade com este (fls. 35 a 40).
16.º
Ora a data em que essa pública-forma foi elaborada, o original da procuração, devidamente revogada e riscada nos termos anteriormente referidos, encontrava-se encerrado num cofre do Banco Tai Fung.
17º
Não dispunha, pois, o Sr. Dr. R de quaisquer elementos que lhe permitissem certificar a conformidade dessa fotocópia com o originai.
18º
Trata-se, pois, duma pública-forma inteiramente falsa, motivo por que dela não constam nem a declaração revogatória, nem os falados riscos, nem a menção “cancelled”, nem a confirmação feita pelo Sr. Dr. L (fls. 35 e 40), sendo também fictícia a conta referida no artigo 14 deste despacho já que a mesma não se mostra lançada no competente Livro de Registos de Contas Emolumentos e Selo do Cartório do arguido Dr. R.
19º
Uma pública-forma constitui uma cópia de teor total ou parcial extraída de documentos avulsos exibidos para esse efeito ao Notário e deve conter a declaração de conformidade com o original.
20º
Ora, era de todo impossível a alguém que não fosse legítimo representante daquela Associação exibir o originai da falada procuração ao referido Sr. Dr. R por o mesmo estar guardado num cofre do Banco Tal Fung.
21º
Consequentemente, jamais poderia o Sr. Dr. R extrair uma fotocópia desse original.
22º
Consequentemente, também não dispunha de quaisquer elementos que o habilitassem a emitir a declaração de conformidade do teor da fotocópia com o do original.
23º
Está, assim, plenamente justificada a afirmação de que essa pública-forma é falsa.
24º
Tanto o Sr. Dr. R como o Sr. Dr. P eram mandatários daqueles K e B.
25º
No dia 13 de Janeiro de 2003, o Sr. K, fazendo uso da referida pública-forma e depositando-a no Cartório Notarial da Ilhas, substabeleceu os poderes nela referidos nos Sr. B e C (fls. 537 a 547).
26º
No dia 28 de Janeiro de 2003, o referido K fazendo uso daquela pública-forma falsa, substabeleceu os poderes nela referidas na pessoa do Sr. Dr. P, seu Advogado (fls. 478 a 479).
27º
Os documentos referidos no artigo 25º ficaram os arquivados no Cartório Notarial das Ilhas, figurando nas respectivas senhas de apresentação como interessada a mencionada Associação e como representante desta o Sr. Dr. P (fls. 537 a 545).
28º
Ora, em data indeterminada de 2003, mas em princípios do mesmo ano, os arguidos Sr. Dr. R e P e os Srs. K e B planearam alienar mediante a utilização daquela pública-forma falsa e tendo plena consciência dessa falsidade, vários imóveis pertencentes ao património da Associação de Piedade e de Beneficência “XXX”.
29º
A fim de concretizar os planos que haviam concebido e outorgar as competentes escrituras públicas o Sr. Dr. R requereu à Direcção dos Serviços de Identificação a passagem de dois certificados respeitantes à “Associação de Piedade e de Beneficência XXX”, certificados esses que foram emitido no dia 15 de Abril de 2003.
30º
Por sua vez, o Sr. Dr. P procurou marcar, sem sucesso, junto de alguns Cartórios Notariais de Macau, designadamente no da Notária Privada Sra. Dra. T data para a outorga dessas escrituras, entregado nesses Cartórios a documentação necessária para o efeito, designadamente a referida pública-forma falsa.
31º
O arguido Sr. Dr. P manifestou sistematicamente junto desses Cartórios Notariais, extrema urgência na celebração das mesmas escrituras.
32º
Além disso o Sr. Dr. P providenciou no sentido de através do seu Escritório de Advogado, ser liquidado o imposto de selo respeitante à compra e venda dos prédios descritos sob os nºs. 5795, como resulta dos documentos de fls. 490 a 521, em alguns dos quais aparece indicado, para os efeitos de “envio dos avisos e conhecimentos”, o seguinte endereço: Av. da Praia Grande nº. XXX, Xº andar - X,X,X..
33º
Este endereço correspondia ao do Escritório do Sr. Dr. P.
34º
Perante a indisponibilidade desses Cartórios Notariais, foi então contactado o Cartório Notarial do Sr. Dr. A.
35º
Quem estabeleceu, para esse efeito, tal contacto foi o Sr. Dr. P que de igual modo aí procedeu à entrega de todos os documentos necessários para serem celebradas as escrituras públicas designadamente a pública forma atrás referida.
36º
Esse contacto, reforçado, mais tarde, por outros feitos pelo Sr. B e, por um secretário do Sr. K revelou-se altamente profícuo uma vez que nos dias 23 de Janeiro de 2003 e no dia 25 seguinte acabaram por ser outorgadas no Cartório Notarial do Sr. Dr. A e com a sua intervenção como Notário várias escrituras públicas tendo por objecto a compra, e venda de imóveis pertencentes à Associação de Piedade e de Beneficência “XXX”.
37º
Assim no dia 23 de Junho de 2003, foi celebrada uma escritura Pública tendo por objecto a compra e venda dos prédios rústicos descritos na Conservatória do Registo Predial sob os nºs. 12255, 22759 e 12254, conforme melhor resulta da cópia que constitui o documento junto de fls. 121 a 124 cujo teor se dá aqui por reproduzido.
38º
No dia 25 de Junho de 2003, foi celebrada uma Escritura Pública tendo por objecto a compra e venda das fracções autónomas A1 do primeiro andar A, A2 do segundo andar A, A3 do terceiro andar A, A4 do quarto andar A, A5 do quinto andar A, B1 do 1 º andar B, B2 do segundo andar B, B3 do terceiro andar B, B4 do quarto andar B, todas sitas na Rua do Noronha nº 6 desta cidade e descritas na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 5795, conforme resulta da fotocópia que constitui o documento junto de fls. 137 a 163.
39º
Também no dia 25 de Junho de 2003 foi celebrada uma escritura pública de compra e venda dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob o nºs. 12249, 12248, 12251 e 12250.
40º
Ainda no dia 25 de Junho de 2003, foi celebrada uma escritura pública tendo por objecto a compra e venda das fracções autónomas A1, do primeiro andar A, A2 do segunda andar A, A3 do terceiro andar A, A4 do quarto andar A, A5 do quinto andar A, B1 do 1 º andar B, B2 do segundo andar B, B3 do terceiro andar B, B4 do quarto andar B, B5 do quinto andar B, C1 do primeiro andar C, C2 do segunda andar C, C3 do terceiro andar C, C4 do quarto andar C, C5 do quinto andar C, D1 do 1 º andar D, D2 do segundo andar D, D3 do terceiro andar D, D4 do quarto andar D, D5 do quinto andar D, E1 do primeiro andar E, E2 do segunda andar E, E3 do terceiro andar E, E4 do quarto andar E e E5 do quinto andar E, fracções estas descritas sob o n. 21459-I a fls. 16 do Livro B50, conforme melhor resulta das fotocópias de fls. 199 a 209 cujo teor se dá aqui por reproduzido.
41º
O preço da venda de cada um dos imóveis referidos nos nºs. 24º e 25º e 26º deste Parecer foi de $100,000.00 patacas e de cada um dos referidos no nº. 27º o de $80,000.00 patacas.
42º
O comprador de todos aqueles imóveis foi o referido Sr. B, um dos representantes da Associação referida no artigo 3 deste despacho.
43º
Quem interveio em todas as escrituras atrás referidas em representação da Associação vendedora foi o já mencionado K.
44º
A qualidade do Sr. K, como Procurador da referida Associação, foi verificada com base numa certidão da pública-forma da procuração referida neste despacho.
45º
O arguido Sr. Dr. A sabia e tinha plena consciência de que a referida pública-forma era falsa por disso ter sido informado em data anterior à da celebração daquelas escrituras pelos Advogados Srs. Drs. XXX e XXX, os quais designadamente lhe explicaram as razões por que tal documento devia ser considerado como falso. Além disso, recebeu as comunicações e constituem os documentos de fls. 89 a 118 cujo teor se dá aqui por reproduzido.
46º
Não obstante ter plena consciência de falsidade da pública-forma em questão, o arguido Sr. Dr. A aceitou-a como boa, celebrando as referidas Escrituras.
47º
Assim, deu como verificada a qualidade de procurador da referida Associação de K numa altura em que lhe tinham sido retirados os poderes de representação.
48º
O arguido Sr. Dr. A ao celebrar aquelas escrituras verificou o registo e a denominação da citada Associação através dum certificado passado no dia 15 de Abril de 2003 pela Direcção dos serviços de Identificação de Macau.
49º
Como se disse, foi o arguido Sr. Dr. R quem requereu a passagem desse certificado sabendo que o mesmo se destinava a habilitar o arguido A a celebrar aquelas escrituras e sabendo também que a qualidade do Sr. K, seu cliente, como procurador da vendedora Associação seria verificada com base na mencionada pública-forma falsa.
50º
Com o comportamento descrito nos artigos que antecedem cada um dos arguidos violou frontalmente os deveres Impostos pelos artigos 1º, 12º, 14º alínea a) e c), e 25º nº. 1 do Código Deontológico, homologado por Despacho nº.121/GM/92 de 31 de Dezembro publicado no Boletim Oficial nº. 52, Suplemento de 31/12/92 conjugados com o artigo 2º do Código disciplinar dos Advogados homologado pelo Despacho nº. 53/GM/95 de 7 de Setembro publicado no B.O. nº. 37, 1ª. S. Suplemento de 11/9/95.
51º
Agrava a situação dos arguidos Srs. Drs. R e P a acumulação (Processos Disciplinares 8/02/CSA e 19/00/CSA, respectivamente).
III
AS DEFESAS
Notificada a acusação aos arguidos, o Dr. P juntou procuração constituindo seu advogado o Dr. A e requerendo que todas as notificações passassem “doravante” a ser feitas na pessoa deste seu mandatário (fls.746747).
Notificado este na qualidade de procurador do Dr. P (fls. 754) mediante carta com AR expedida em 14.06.2005 (fls.757), não respondeu à notificação, embora a posta dada à denúncia no seu requerimento de 09.12.2003 (f1s.301-307) serem no sentido de negação de qualquer facto ilícito pois mostra ter consultado os autos e o matéria então existente neles, nomeadamente o anúncio de jornal em que o seu nome também é denunciado e as 2 participações da ASSOCIAÇÃO DE PIEDADE E DE BENEFICÊNCIA “XXX” apresentadas ao Exmo. Chefe do Executivo da RAEM, pelos factos acima resumidos, contra o Notário Privado Dr. A (fls. 73-82) e contra o Notário Privado Dr. R (fls. 83-88 e verso), mas, apesar disso, alega desconhecer a denúncia de quaisquer factos ilícitos contra si;
E os outros dois co-arguidos vieram defender-se com as respostas que constam de fls. 712-730 (o Dr. A); e fls-733-745 (Dr. R).
O Dr. A defende-se, alegando, em resumo:
- Que os factos que lhe são imputados pertencem à sua actividade funcional de Notário, ainda que de Notário Privado se trate, e, portanto, a competência disciplinar pertence à Direcção dos Serviços de Justiça, sendo a AAM incompetente;
- Que existe violação do princípio “ne bis idem” porque já existe processo disciplinar instaurado pela Direcção dos Serviços de Justiça para punição dos mesmos factos e, consequentemente, não pode ser responsabilizado também perante o CSA;
a) - Que não sabia que a procuração correspondente à pública-forma que utilizou nas escrituras tivesse sido cancelada quer por não serem nesse sentido os ofícios que a Direcção dos Serviços dirigiu ao Sr. Dr. P em resposta aos pedidos de esclarecimento que o Dr. P dirigiu àqueles Serviços;
b) - Quer porque, face às informações antagónicas do Dr. P (de um lado) e do Dr. XXX e Dr. XXX (do outro) entendeu analisar por si próprio com imparcialidade e independência tais informações opostas (art. 26 da defesa), tendo concluído que a procuração e pública-forma eram válidas:
   b) - 1 - Porque a alegada revogação terá sido feita em escritório de advogado e não perante notário; que tal advogado manuscreveu “Fui presente” sem dizer presenciei, com data rasurada, rubrica e carimbo de advogado e, em seu entendimento, a revogação não podia ser feita por tal via mas sim perante notário nos termos dos artigos 5º e 84º do antigo C. Notariado e os arts. 5º, 6º e 87º nºs. 1 e 2, do C. Notariado actual, sendo pois nula a alegada revogação face ao art. 212º do C. Civil;
   b) - 2 - Porque não se sabe desde que data é que a procuração foi posta e se manteve intocada no cofre do Banco de modo a poder saber-se se a falsidade está na revogação ou se está na pública-forma (se a pública forma foi efectivamente extraída na data de 07.Jun.1995 que dela consta perante o original ainda não cancelado, e posteriormente cancelando-se este com data falsa de 14.02.1995 e encerrando-o no Banco; ou se, pelo contrário, é o inverso: cancelamento efectivamente em 14.02.1995 e pública-forma feita usando uma cópia e não o original que o Notário certificou ter usado) e, face a tais elementos, as disposições legais sobre a força probatória plena dos documentos autênticos mandam, em seu entender, aceitar como verídica a pública forma do Notário e não o cancelamento e informações fornecidos pelo Dr. P, pelo Dr. XXX pelo Dr. XXX.
Concluindo: - alega que agira convencido de estar dentro da estrita legalidade, imparcialidade e independência face a interesses e palavras antagónicos.
Quanto ao Dr. R, veio com a sua defesa respondendo à acusação a fls.733-745, alegando, em resumo:
- A incompetência do CSA dado os factos que lhe vêm imputados terem sido praticados na qualidade de notário e não de advogado;
- Ter havido prescrição em 07.Junho.1998 por os factos que lhe vêm imputados datarem de 07.Junho.1995 e o prazo de prescrição ser de 3 anos;
- Serem nulas as provas dado terem sido ouvidos como testemunhas a Dra. XXX, Dr. XXX e Dr. XXX, todos amigos pessoais e advogados do mesmo escritório que patrocinava a Autora das 2 participações que o Dr. XXX forneceu aos autos e que a ASSOCIAÇÃO DE PIEDADE E DE BENEFICÊNCIA “XXX” dirigiu ao Exmo. Chefe do Executivo da RAEM em 29.Julho.2003, contra o Notário Privado Dr. A (fls. 73-82) e contra o Notário Privado Dr. R (fls.83-88 e verso);
- E nulas também por o instrutor Dr. XXX (do inquérito realizado pela Direcção da AMM e que constitui a participação desta ao Conselho Superior de Advocacia) ter tido com aqueles conversas e telefonemas de que resultaram os depoimentos daquelas testemunhas e a junção de vários documentos e porque “Por toque de mágica do Instrutor, Dr. XXX, os participados transmutaram-se em testemunhas e os ofendidos transformaram-se em arguidos” (sic-art. 360 da sua defesa, numa referência implícita à carta datada de 19 de Julho de 2003, recebida na AAM a 21/7/2003, em que o Dr. R juntava cópia do anúncio que denunciava os factos objecto destes autos e pedia “abertura de um inquérito para total apuramento de eventual responsabilidade disciplinar, incluindo a eventual autoria moral ou material de associados na feitura do anúncio supra citado.” sic).
- E, embora não o diga ali muito claramente, da conjugação dessa peça com a peça que apresentou a fls. 848 e segs., vê-se que nega que a falsidade da pública forma, alegando que o original da procuração não se encontrava fechado no Banco à data em que emitiu a pública forma (fls. 848) mas sim terá, segundo aqui alega, estado sempre na posse do falecido presidente da Associação até pouco tempo antes da morte deste, ocorrida a 03.Julho.1999 (que “apenas terá depositado o original da procuração antes das 21 horas e 10 minutos do dia 3 de Julho de 1999 no Banco Tai Fung, SARL” - sic sua alegação a fls. 848); e que o facto dos autos terem obtido resposta negativa da Direcção dos Serviços de Justiça quanto à existência da conta emolumentar e selos constante de tal pública-forma, resulta da existência de ofício erradamente datado mas, mesmo que tal conta não tivesse sido paga, apenas haveria uma irregularidade fiscal;
- Que é nulo o “cancelled” feito no escritório do advogado L (sem este intervir como notário), por não ter sido nem revogação notarial nem judicial (art. 49º da defesa);
- E quanto à acusação de que também terá participado na instrução dos documentos para o Dr. A celebrar as escrituras em 2003, o Dr. R pergunta “será que requerer 2 certificados aos Serviços de Identificação de Macau constituem ilícito disciplinar?” (sic).
Em resumo: - alega que a eventual prática de falsidade da pública-forma (que teria sido praticada em 07.Junho.1995) estaria prescrita mas que nem sequer praticara tal falsidade; e que, quanto a eventuais factos ainda dentro de prazo de sujeição a procedimento disciplinar por praticados há menos de 3 anos, confessa implicitamente a requisição dos 2 (dois) referidos certificados para a instrução das escrituras mas que tal não constitui ilícito disciplinar.
IV
O RELATÓRIO FINAL DO INSTRUTOR
Foi feita a prova requerida e juntos documentos, nos termos do despacho de fls.867 até fls.969 e despacho de fls. 970 e segs., findo o que o Exmo. Instrutor apresentou de fls.1024 a fls. 1048, o seu relatório final, nos termos seguintes:
“Exma. Senhora Presidente
e Exmºs Membros do Conselho Superior da Advocacia:
Finda a Instrução, cabe-nos apresentar o seguinte
Relatório Final:
__ X __
Propositadamente não vamos tecer quaisquer considerações ou formular qualquer juízo sobre o comportamento processual do arguido Sr. Dr. R, designadamente quando afirma a fls. 1022 que não houve recusa no recebimento da “carta dos correios” quando os próprios Serviços Oficiais confirmam essa mesma recusa (carimbos apostos nos cartas juntas a fls. 988V. e 997V.).
V. Excias. examinando todas as peças por ele produzidas não deixarão certamente de formular o juízo que se impõe.
__ X __
O Diário da expressão portuguesa “Macau Hoje” publicou na sua edição de 15 de Julho de 2002 uma notícia sob a forma dum anúncio judicial, que envolvia as pessoas dos arguidos num caso de falsificação.
Tal anúncio consta do documento fotocopiado a fls. 290.
Com base nesse anúncio, entendeu a Associação dos Advogados de Macau instaurar um Inquérito, tendo a final o respectivo instrutor emitido o seu parecer no sentido de os respectivos autos serem remetidos ao Conselho Superior da Advocacia, cuja Presidente mandou instaurar o presente processo disciplinar, decisão que veio a ser ratificada pelo Conselho Superior da Advocacia na sua reunião de 15 de Junho de 2004. (fls. 548).
Notificados da instauração do processo, responderam os Colegas arguidos Sr. Dr. P e Sr. Dr. R pela forma constante das suas respostas de fls. 301 a 307 e 313 a 315.
Após a ratificação atrás referida, procedeu-se a nova notificação dos arguidos para responderem querendo sobre à matéria dos Autos.
Oportunamente, foi emitido o parecer no sentido de existirem elementos para ser deduzida a acusação contra dois dos arguidos.
O Conselho Superior da Advocacia entendeu porém dever incluir os três arguidos no despacho acusatório o qual veio a ser proferido nos termos constantes de fls. 684 e seguintes.
Notificados da acusação, apresentaram os arguidos Sr. Dr. A e o Sr. Dr. R as suas defesas (fls. 714 a 730 e 734 a 745).
O Sr. Dr. P, que escolheu a pessoa do Sr. Dr. A para receber as notificações (fls. 747), nada disse ou requereu.
Sobre as diligências requeridas por aqueles dois Colegas recaiu o despacho de fls. 869 a 871, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
Foram juntos vários documentos quer por iniciativa do instrutor quer a requerimento do Sr. Dr. R.
__ X__
Suscita o Sr. Dr. A, na sua douta defesa, as seguintes questões:
1) A da incompetência da Associação dos Advogados de Macau para o punir disciplinarmente;
2) A violação do Princípio Ne Bis In Idem;
3) Questão prejudicial, por sobre a matéria estar a correr um processo crime.
A todas estas questões foi dada resposta por via dos nossos despachos de fls. 867 e seguintes e 970 e seguintes, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
__ X__
Alega o mesmo Colega que não aceitou como boa a procuração referida nos autos sem uma prévia averiguação e que tomou conhecimento através do Sr. Dr. P que a Direcção dos Serviços de Justiça entendia que o documento em causa não havia sido revogado.
Ora dos documentos juntos aos autos apenas resulta provado que aquela Direcção se pronunciou sobre a pública forma passada pelo Sr. Dr. R a qual como consta da acusação não contém referência ao “cancelamento”. (fls. 667 e 668).
Relativamente às respostas cujo teor se transcreve a fls. 718 e 718 V., não aparece nelas qualquer referência ao facto de a procuração não ter sido revogada.
Foi também colocada a questão da inobservância da forma exigida por lei para os efeitos da revogação dessa procuração, defendendo-se aí que esta deveria ter sido feita por instrumento notarial.
Só que o Tribunal da Última Instância da R.A.E.M. decidiu que a procuração em questão tinha sido validamente revogada (fls. 622 e seguintes).
__ X__
Diz também o ilustre Colega, cuja defesa estamos a apreciar, que a palavra dos Colegas Sr. Dr. XXX e XXX não vale mais do que a dos Colegas Sr. Dr. P e R.
Acontece, porém que perante a prova produzida, é forçoso concluir que o Sr. Dr. A tinha a consciência da falsidade da dita procuração uma vez que recebeu a comunicação e os documentos juntos de fls. 89 a 118. Não há, pois, que recorrer ao depoimento dos referidos Colegas para se dar como provado o facto que fica referido.
(…)
__X __
Pelo exposto não encontramos motivos para alterar o teor da acusação, devendo apenas e à cautela ignorar-se a referência feita aos Colegas Srs. Dr. XXX e XXX no artigo 45º da mesma peça.
Consequentemente damos como provado o seguinte:
Existe em Macau uma Associação, devidamente registada na Direcção dos Serviços de Identificação de Macau sob o no. 161, denominada “Associação de Piedade e de Beneficência XXX, também conhecida como “XXX”.
A sua Direcção integra vários membros entre os quais o Sr. V.
Existe também uma outra Associação denominada “Associação dos Bonzos do Templo ou Pagode XXX.”
São legais representantes desta última os Srs. K, B e C.
Nenhum destes representantes integra a Direcção da “Associação de Piedade e de Beneficência XXX”.
Em 1993, o Sr. V, na altura Vice-Presidente da referida Associação de Piedade e Beneficência XXX, outorgou, em representação desta, no Cartório do Notário Privado do Sr. Dr. L uma procuração a favor daquele Sr. K, conferindo-lhe vários poderes, entre eles o de celebrar contratos de venda tendo por objecto imóveis dos quais era proprietária (fls. 27 e 31).
No dia 14 de Fevereiro de 1995, após prévio acordo entre os representantes daquela Associação e o Sr. K, a procuração em causa foi revogada, revogação levada a efeito no Escritório do Exmo. Sr. Dr. L e em presença deste (fls. 27 a 31).
A revogação foi feita estando também presente aquele K (fls. 27 a 31).
A mesma revogação foi feita, apondo-se, na parte superior do rosto do original da procuração em causa, a respectiva declaração, na redacção da qual foram utilizados caracteres chineses - 本授權書即日取消作廢 14/2/95 - que significam o seguinte: “e presente procuração cancela-se a partir da presente data 14/02/95”.
Além disso, no texto da primeira página forem apostos dois riscos oblíquos e paralelos e no espaço entre os mesmos a expressão inglesa “cancelled”, e outros riscos em restantes páginas (fls. 27).
A declaração em causa foi subscrita pelos legais representantes daquela Associação XXX e XXX e também pelos Srs. V e K (fls. 27).
A mesma declaração revogatória foi confirmada pelo Sr. Dr. L o qual sob a mesma manuscreveu a seguinte frase: “Fui presente: 14/02/95” seguida da sua rubrica, apondo também o seu carimbo de Advogado (fls. 27).
O original da procuração revogada foi então devolvido pelo Sr. K a um representante da mandante, sendo depois guardado num cofre de segurança do Banco Tai Fung, S.A.R.L..
Esse mesmo original ficou ali guardado e só foi retirado do cofre anos mais tarde, e isto mesmo por ordem judicial.
Não obstante o que fica retendo, no dia 7 de Junho de 1995, o arguido Sr. Dr. R, na qualidade de Notário Privado, entendeu certificar que havia conferido uma fotocópia daquela Procuração com o respectivo original e elaborar a respectiva conta a qual atribuiu o nº. 6.
Em outras palavras no dia 7 de Junho de 1995, o referido arguido Sr. Dr. R, na qualidade de Notário Privado, declarou ter extraído uma fotocópia do original daquela procuração e que a mesma estava em conformidade com este (fls. 35 a 40).
Ora a data em que essa pública-forma foi elaborada, o original da Procuração, devidamente revogada e riscada nos termos anteriormente referidos, encontrava-se encerrado num cofre do Banco Tai Fung.
Não dispunha, pois, o Sr. Dr. R de quaisquer elementos que lhe permitissem certificar a conformidade dessa fotocópia com o original.
Trata-se, pois, duma pública-forma inteiramente falsa, motivo por que dela não constam nem a declaração revogatória, nem os falados riscos, nem a menção “cancelled”, nem a confirmação feita pelo Sr. Dr. L (fls. 35 a 39), sendo também fictícia a conta atrás referida já que a mesma não se mostra lançada no competente Livro de Registos de Contas Emolumentos e Selo do Cartório do arguido Dr. R.
Uma pública-forma constitui uma cópia de teor total ou parcial extraída de documentos avulsos exibidos para esse efeito ao Notário e deve conter a declaração de conformidade com o original.
Ora, era de todo impossível alguém que não fosse legítimo representante daquela Associação exibir o original da falada procuração ao referido Sr. Dr. R por o mesmo estar guardado num cofre do Banco Tai Fung. Consequentemente, jamais poderia o Sr. Dr. R extrair uma fotocópia desse original.
Consequentemente também não dispunha de quaisquer elementos que o habilitassem a emitir a declaração de conformidade do teor da fotocópia com o do original.
Está, assim, plenamente justificada a afirmação de que essa pública-forma é falsa.
Tanto o Sr. Dr. R como o Sr. Dr. P eram mandatários daqueles K e B.
No dia 13 de Janeiro de 2003, o Sr. K, fazendo uso da referida pública-forma e depositando-a no Cartório Notarial da Ilhas, substabeleceu os poderes nela referidos nos Sr. B e C (fls. 537 a 547).
No dia 28 de Janeiro de 2003, o referido K fazendo uso daquela pública-forma falsa, substabeleceu os poderes nela referidas na pessoa do Sr. Dr. P, seu Advogado (fls. 478 a 479).
Os documentos em questão ficaram arquivados no Cartório Notarial das Ilhas, figurando nas respectivas senhas de apresentação como interessada a mencionada Associação e como representante desta o Sr. Dr. P (fls. 537 a 545).
Ora, em data indeterminada de 2003, mas em princípios do mesmo ano, os arguidos Sr. Dr. R e P e os Srs. K e B planearam alienar mediante a utilização daquela pública-forma falsa e tendo plena consciência dessa falsidade, vários imóveis pertencentes ao património da Associação de Piedade e de Beneficência XXX.
A fim de concretizar a plano que haviam concebido e outorgar as competentes escrituras públicas o Sr. Dr. R requereu à Direcção dos Serviços de Identificação a passagem de dois certificados respeitantes à “Associação de Piedade e de Beneficência XXX”, certificados esses que foram emitidos no dia 15 de Abril de 2003.
Por sua vez, o Sr. Dr. P procurou marcar, sem sucesso, junto de alguns Cartórios Notariais de Macau, designadamente no da Notária Privada Sra. Dra. T data para a outorga dessas escrituras, entregado nesses Cartórios a documentação necessária para o efeito, designadamente a referida pública-forma falsa.
O arguido Sr. Dr. P manifestou sistematicamente junto desses Cartórios Notariais, extrema urgência na celebração das mesmas escrituras.
Além disso o Sr. Dr. P providenciou no sentido de através do seu Escritório de Advogado, ser liquidado o imposto de selo respeitante à compra e venda dos prédios descritos sob os nºs. 5795, como resulta dos documentos de fls. 490 a 521, em alguns dos quais aparece indicado, para os efeitos de “envio dos avisos e conhecimentos”, o seguinte endereço: Av. da Praia Grande nº. XXX, Xº andar - X,X,X.
Este endereço correspondia ao do Escritório do Sr. Dr. P.
Perante a indisponibilidade desses cartórios Notariais, foi então contactado o Cartório Notarial do Sr. Dr. A.
Quem estabeleceu, para esse efeito, tal contacto foi o Sr. Dr. P que de igual modo aí procedeu à entrega de todos os documentos necessários para serem celebradas as escrituras públicas designadamente a pública forma atrás referida.
Esse contacto, reforçado, mais tarde, por outros feitos pelo Sr. B e por um secretário do Sr. K revelou-se altamente profícuo uma vez que nos dias 23 de Janeiro de 2003 e no dia 25 seguinte acabaram por ser outorgadas no Cartório Notarial do Sr. Dr. A e com a sua intervenção como Notário várias escrituras públicas tendo por objecto a compra e venda de imóveis pertencentes à Associação de Piedade e de Beneficência “XXX”.
Assim no dia 23 de Junho de 2003, foi celebrada uma escritura Pública tendo por objecto a compra e venda dos prédios rústicos descritos na Conservatória do Registo Predial sob os nºs. 12255, 22759 e 12254, conforme melhor resulta da cópia que constitui o documento junto de fls. 121 a 124 cujo teor se dá aqui por reproduzido.
No dia 25 de Junho de 2003, foi celebrada uma Escritura Pública tendo por objecto a compra e venda das fracções autónomas A1 do primeiro andar A, A2 do segundo andar A, A3 do terceiro andar A, A4 do quarto andar A, A5 do quinto andar A, B1 do 1º andar B, B2 do segundo andar B, B3 do terceiro andar B, B4 do quarto andar B, todas sitas na Rua do Noronha nº. 6 desta cidade e descritas na Conservatória do Registo Predial sob o nº. 5795, conforme resulta da fotocópia que constitui o documento junto de fls. 137 a 162.
Também no dia 25 de Junho de 2003 foi celebrada uma escritura pública de compra e venda dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob o nºs. 12249, 12248, 12251 e 12250. (fls. 163 e 167).
Ainda no dia 25 de Junho de 2003, foi celebrada uma escritura pública tendo por objecto a compra e venda das fracções autónomas A1, do primeiro andar A, A2 do segunda andar A, A3 do terceiro andar A, A4 do quarto andar A, A5 do quinto andar A, B1 do 1º andar B, B2 do segundo andar B, B3 do terceiro andar B, B4 do quarto andar B, B5 do quinto andar B, C1 do primeiro andar C, C2 do segunda andar C, C3 do terceiro andar C, C4 do quarto andar C, C5 do quinto andar C, D1 do 1 º andar D, D2 do segundo andar D, D3 do terceiro andar D, D4 do quarto andar D, D5 do quinto andar D, E1 do primeiro andar E, E2 do segunda andar E, E3 do terceiro andar E, E4 do quarto andar E e E5 do quinto andar E, fracções estas descritas sob o n. 21459-I a fls. 16 do Livro B50, conforme melhor resulta da fotocópias de fls. 199 a 209 cujo teor se dá aqui por reproduzido.
O preço da venda de cada um dos imóveis referidos nos documentos de fls. 121 a 124, de fls. 137 a 162 e de fls. 163 a 167 foi de $100,000.00 patacas e de cada um dos nos documentos de fls. 199 a 209 de $80,000.00 patacas.
O comprador de todos aqueles imóveis foi o referido Sr. B, um dos representantes da Associação dos Bonzos.
Quem interveio em todas as escrituras atrás referidas em representação da Associação vendedora foi o já mendonado K.
A qualidade do Sr. K, como Procurador da referida Associação, foi verificada com base numa certidão da pública-forma da procuração referida neste despacho.
O arguido Sr. Dr. A sabia e tinha plena consciência de que a referida pública-forma era falsa por ter recebido as comunicações que constituem os documentos de fls. 89 a 118 cujo teor se da aqui por reproduzido. Não obstante ter plena consciência da falsidade da pública-forma em questão, o arguido Sr. Dr. A aceitou-a como boa, celebrando as referidas escrituras.
Assim, deu como verificada a qualidade de Procurador da referida Associação de K numa altura em que lhe tinham sido retirados os poderes de representação.
O arguido Sr. Dr. A ao celebrar aquelas escrituras verificou o registo e a denominação da citada Associação através dum certificado passado no dia 15 de Abril de 2003 pela Direcção dos Serviços de Identificação de Macau. Como se disse foi o arguido Sr. Dr. R quem requereu a passagem desse certificado sabendo que o mesmo se destinava a habilitar o arguido A a celebrar aquelas escrituras e sabendo também que a qualidade do Sr. K, seu cliente, como Procurador da vendedora Associação seria verificada com base na mencionada pública-forma falsa.
__X __
Foi decisiva para a nossa convicção no que diz respeito a confirmação do despacho de acusação o teor dos documentos e dos depoimentos que a seguir se indica:
Documentos de fls. 27 a 283, fls. 288, fls. 338 e 339, fls. 348 a 362, fls. 372 a 459,477 a 479, 487 a 521, 535 a 547, 621 a 645, 662 a 669, 677, 784, 819 a 844 e os depoimentos de fls. 334 e 335, 522 e 523, 524 e 525, 526 e 527, 552 e 553, 672 e 673 e 674 e 675.
São também elucidativos embora não decisivos os depoimentos dos colegas Srs. Drs. XXX, XXX e XXX se acaso se entender que os mesmos não estão feridos de nulidade.
O Direito
Os factos imputados a cada um dos arguidos integram a infracção prevista nos números 1 e 3 do artigo 1º, com referência ao artigo 12º, nº. 2 e 14º alínea c) do Código Deontológico homologado por despacho 121/GM/92 de 31 de Dezembro, conjugados com artigo 2º do Código Disciplinar dos Advogados.
Não se mostra verificada a falta prevista no seu artigo 25º.
O Sr. Dr. R produziu a pública forma falsa no longínquo ano de 1995.
Aguardou cerca de 10 anos para através dos factos levados à acusação fazer uso desse documento falso.
Com o comportamento atrás descrito o Sr. Dr. P contribuiu decisivamente para que essa pública forma, que sabia ser falsa viesse a ser utilizada quando da celebração das escrituras públicas lavradas no Cartório Notarial do co-arguido A e com activa intervenção deste.
A conduta dos arguidos, além duma infracção disciplinar, integra um ilícito criminal.
Trata-se dum comportamento antijurídico e eticamente reprovável a todos os títulos: os seus autores não serviram nem a justiça, nem o direito, devendo fazê-lo e não se mostraram dignos da honra e responsabilidade inerentes à qualidade de advogados, qualidade essa que deviam ter sempre presente.
Violaram o dever de probidade que um advogado, quer no exercício da profissão quer fora dela, deve sempre respeitar e fizeram uso de expedientes condenáveis porque integradores de ilícito penal. Assumiram em suma um comportamento, a um tempo, escandaloso - pela repercussão negativa e desprestigiante junto da comunidade -, desprimoroso aos olhos do público, desonroso para si próprios e lesivo da classe não só dos Advogados mas também dos Notários. Dispõe o artigo 42º do Código Disciplinar dos Advogados que:
Na aplicação das penas deve atender-se aos antecedentes profissionais e disciplinares do arguido, ao grau de culpabilidade, às consequências da infracção e a todas as circunstâncias agravantes ou atenuantes.
A doutrina e a Jurisprudência penais mais representativas de Portugal têm entendido que na individualização da pena deve tomar-se como ponto de partida a média entre os limites mínimo e máximo tomando-se depois em consideração as circunstâncias atenuantes e agravantes.
Porque este critério é um dos mais equilibrados dos que têm sido propostos quanto a essa matéria, entendemos observá-lo na tarefa da escolha e graduação da pena no caso presente.
Todos os arguidos agiram dolosamente. E bastante elevada a gravidade dos factos dados como provados e intenso o grau de culpabilidade dos seus autores, o que decorre das considerações atrás tecidas.
Como decorre dos factos dados como provados, devido à actuação dos arguidos a Associação de Piedade e Beneficência XXX ficou privada de grande parte do seu valioso património.
Os prejuízos, pelo menos de natureza material, dai resultantes são óbvios.
Os arguidos exercem a sua profissão em Macau há longos anos.
Contra o Sr. Dr. A está pendente um outro processo disciplinar que não se acha ainda ultimado.
Trata-se dum Advogado competente no exercício da sua profissão, goza do conceito de pessoa honesta, imparcial, urbana, afável no trato e, além disso, portador duma estatura moral elevada.
É considerado como profissional muito cumpridor da ética e da deontologia profissional.
O Sr. Dr. R foi condenado na pena de 20.000 no âmbito do processo 8/02/CSA, tem outros processos disciplinares pendentes contra si e um processo de averiguações em ordem a apurar a sua eventual falta de idoneidade moral para o exercício da profissão.
O Sr. Dr. P foi condenado no âmbito de outros processos disciplinares na pena de 2 anos e 3 meses de suspensão com obrigação de restituir a quantia de 277.273,00 HKD. A respectiva deliberação não transitou ainda em julgado.
Encontram-se pendentes contra o mesmo mais processos disciplinares.
Tendo em atenção os critérios de individualização da pena atrás referidos, a elevada gravidade dos factos constantes da acusação, o elevado grau de culpabilidade, os antecedentes disciplinares e a consequência danosa atrás referida, afigura-se que aos arguidos Sr. Dr. R e Sr. Dr. P deve ser imposta a pena prevista no artigo 41º, f) do Código Disciplinar graduada em 8 anos de suspensão.
Relativamente ao Sr. Dr. A, atentos os mesmos critérios, o elevado grau de culpabilidade, a alta gravidade dos factos e a mesma consequência danosa, mas tomando em linha de conta o peso das atenuantes que ficaram apontadas, parece equilibrada a pena do artigo 41º, alínea e) do mesmo Código, graduada em 2 anos de suspensão.
Atenta a circunstância de o Sr. Dr. R ter sido condenado na r pena de 20,000.00 patacas de multa no âmbito do Processo Disciplinar no. 8/02/CSA, há que efectuar o cúmulo desta pena com a agora proposta.
Sugere-se que em cúmulo lhe seja imposta a pena única de 8 anos de suspensão e 20,000.00 patacas de multa, com a nota de que esta já foi paga.
Quanto ao Sr. Dr. P, terá de se efectuar o cúmulo jurídico da pena proposta com a já imposta, aplicando-se-lhe uma pena única que se sugere seja a seguinte: pena de suspensão por 9 anos e 3 meses, com a obrigação da restituição da quantia de HKD277,273.00 (P.D. 02/02/CSA; 03/01/CSA; 08/01/CSA; 11/01/CSA e 17/01/CSA)
Eis as penas cuja aplicação propomos.
V. Excias., porém, melhor resolverão.
Macau, ao 20 de Outubro de 2005.
O Instrutor, XXX.”
V
DECISÃQ
A) Questão Prévia: o caso julgado e a execução do douto Acórdão do TUI:
1. Com o trânsito em julgado do referido Acórdão do Tribunal de Última Instância, mostra-se anulado, com efeitos retroactivos, o acórdão deste Conselho proferido, em 1 de Novembro de 2006, no processo disciplinar comum n.º 27/03/CSA relativamente ao arguido e ali recorrente Dr. A, pelo qual lhe havia sido aplicada a “pena prevista no art. 41º, alínea f), do Código Disciplinar dos Advogados graduada em 6 (seis), suspensão da actividade de advogado”.
2. O fundamento da anulação do acórdão do Conselho é a Contradição na matéria de facto na parte em que o acto administrativo recorrido, acrescentando certos factos e considerações aos que constavam do Relatório do Instrutor, determinou que “todos os 3 (três) arguidos trabalharam em 2003 na obtenção dos documentos que o arguido Dr. A precisava para instruir as escrituras, que obtiveram e perante este usaram e forneceram em 2003 (não podendo pois, também por isto, Proceder a alegada prescrição), a este ajudando a consumar a outorga em apenas 2 dias (23/6 e 25/6 de 2003) das escrituras de compra e venda dos diversos imóveis Identificados nos autos, indiferente ao resultado […] ”, porquanto tal “consideração contradiz os factos anteriores e não tem suporte nos factos provados” relativamente ao arguido Dr. A – cfr. pág. 84 do Acórdão citado.
3. Isto porque dos factos provados “não resulta [que] o recorrente tenha participado no conluio para obtenção dos documentos necessários à celebração das escrituras. O que resulta é que foram os Drs. P e R a fazê-lo.” - cfr. pág. 83 do Acórdão citado.
4. Neste contexto, a anulação do acordão do Conselho não aproveita aos demais co-arguidos, i.e. o Dr. R e o Dr. P, até porque, sendo a responsabilidade disciplinar de natureza individual, “se o acto foi anulado com fundamento em razões que só se verificam no recorrente, a eficácia produz-se apenas inter partes”, no caso concreto entre este Conselho e o arguido/recorrente Dr. A - v. MARCELLO CAETANO, in Manual de Direito Administrativo, Vol. 2, págs. 1396 e 1397, citado por LINO JOSÉ B.R. RIBEIRO in Manual Elementar de Direito Processual Administrativo de Macau, Tomo I, edição do Centro de Formação de Magistrados de Macau, 1997, pág. 278.
5. Se bem que o “caso julgado [seja] válido e eficaz erga omnes, quer a sentença declare nulo o acto, quer rejeite o recurso [...] esta solução não se aplica aos actos plurais (em que há tantos efeitos e, por consequência, tantos actos únicos, quantas as esferas jurídica dos destinatários directamente modificadas), caso em que quem «não recorreu nem foi citado para contestar não fica abrangido pelo julgado» - v. RUI MACHETE, in Caso Julgado, Estudos de Direito Público e Ciência Política, págs. 179 e ss., citado por LINO JOSÉ B.R. RIBEIRO, ob. cito pág. 278.
6. Ou seja, tratando-se, como in casu, de acto plural - o que implica que possam existir vícios comuns a todos os actos simples e vícios autónomos, respeitantes apenas a um dos actos que integram o acto plural - e sendo este “anulado contenciosamente por razões respeitantes à situação específica de um dos seus destinatários, a Administração [leia-se, o Conselho Superior de Advocacia] não está obrigada a dar execução à decisão anulatória, relativamente a destinatários do acto relativamente aos quais não se verifica que se baseou a anulação” – v., a título de boa doutrina, o Acórdão do Supre-mo Tribunal Administrativo de Portugal de 4 de Julho de 2001, proferido no Processo n.º 03429, in www.dgsi.pt/jsta.
7. De resto, a mesma conclusão resulta, a contrario sensu, do artigo 77. º do Código do Processo Administrativo Contencioso.
8. Por conseguinte, o dever jurídico de executar o Acórdão anulatório do Tribunal de Última Instância, e que, nos termos do artigo 174.0 do Código do Processo Administrativo Contencioso, consiste no dever de praticar todos os actos jurídicos e todas as operações materiais que sejam necessárias à reintegração efectiva da ordem jurídica violado, apenas se cinge à sanção disciplinar aplicada ao Dr. A, razão pela qual este Conselho deliberou, em reunião do dia 5 de Fevereiro de 2010, renovar o acto administrativo anulado, substituindo-o por outro válido, sobre o mesmo assunto mas apenas quanto a este arguido - o que ora se faz.
B) A Decisão: a renovação do acto administrativo anulado
Tudo analisado e ponderado, este Conselho Superior da Advocacia, em execução, nos termos e ao abrigo do artigo 174.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, do douto Acórdão proferido nos supra referidos autos de recurso jurisdicional em matéria administrativa com o n.º 24/2009 do Tribunal de Última Instância de Macau, transitado em julgado em 28 de Janeiro de 2010, delibera dar por provada a acusação relativamente ao arguido Dr. A, aderindo, como seu e aqui integrante, ao Relatório do Exmo. Senhor Instrutor deste processo disciplinar, com os aditamentos seguintes:
1. Vê-se dos autos que o Dr. A cobrou a conta emolumentar de notário (que remeteu para os cofres públicos, destinatários das receitas da sua actividade notarial), mas que também cobrou e emitiu recibo de honorários de advogado (que reverteu para si, destinatário da receita da sua actividade de advogado). Por isso, e pelo já sustentado no relatório, não se diga pois que os factos são estranhos à advocacia e incompetente este CSA, ou haver repetição de procedimento disciplinar pelos factos, mesmos valores, mesma função e mesmo sujeito pois, repete-se, aqui está apenas em causa o comportamento do arguido Dr. A enquanto advogado, mesmo que tenha actuado também na qualidade de notário privado.
2. Ora, “sempre que o notário ultrapasse esta simples assistência e entre no campo da assessoria ou, o que é o mesmo, da consultadoria jurídica, sem limites estabelecidos, estará a agir com um verdadeiro advogado e então não é compreensível, nem aceitável a qualquer título, que não deva estar sujeito a todas as regras de deontologia próprias da profissão de advogado” - a título de boa doutrina, v. Parecer n.º E-1051/1995 da Ordem dos Advogados de Portugal, proferido em 30.06.1995, in www.jurisdata-oa.pt.
3. Acresce que, como se estipula no Decreto-Lei n.o 66/99/M, de 1 de Novembro, só podem ser nomeados notários privados os senhores advogados que se qualifiquem para o efeito, pelo que necessariamente a primeira qualidade é condição sine qua non para a verificação da segunda. Não existe aqui repetição de procedimento disciplinar porque não é a conduta do notário que está aqui em causa, mas sim a do Sr. Advogado que infringiu normas que disciplinam a sua actividade enquanto advogado e os seus deveres de advogado para com os seus clientes e a comunidade em geral.
4. Todos os arguidos sabiam que o mandato concedido pela procuração reproduzida pela pública-forma usada para a celebração das escrituras se encontrava cancelado ou revogado e que a pública forma atestava um mandato inexistente ou, pelo menos, como tal estava sendo reivindicado pelo mandante quer em juízo quer em informações chegadas a todos os três arguidos com a abundância que vem relatada e se vê dos autos, tanto a que foi especialmente dirigida ao Sr. Dr. A para se abster da celebração, tal como outros notários já se tinham abstido, como a informação de conhecimento geral, que os advogados de Macau costumam usar tipo pedido-circular, que foi distribuída por todos os notários privados de Macau pedindo-lhes para não celebrarem tais escrituras por o mandante estar a impugnar a autenticidade ou subsistência do mandato alegadamente em vigor.
5. Apesar disso, o arguido Dr. A, aceitando fazer uso dos documentos, obtidos e fornecidos pelos outros dois co-arguidos para instruir as escrituras, entre os quais a pública-forma que atestava um mandato inexistente, consumou a outorga em apenas dois dias (23/6 e 25/6 de 2003) das escrituras de compra e venda dos diversos imóveis identificados nos autos, indiferente ao resultado (o Dr. A - com dolo eventual bem esclarecido face ao grau de informações de que tinha conhecimento) que o Tribunal viesse a proferir quanto a tal procuração e sua pública-forma (que a julgou validamente revogada pelo referido acto de 14.Fev.1995), e manifesto intuito de antecipar-se ao próprio tribunal (os outros dois co-arguidos - com dolo directo);
6. Ora, na ponderação do grau de culpa, valor e influência que o comportamento dos arguidos terá tido na consumação do resultado (celebração das escrituras) pretendido pelo portador do mandato já não existente e pelos Dr. P e Dr. R, verifica-se que o Dr. A teve a abundante informação supra, nomeadamente a troca de correspondência entre o Dr. P e a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça (DSAJ), fornecida pelo Dr. P ao Dr. A, e da qual se vê facilmente, face à prova conhecida destes autos, que, nessa troca de correspondência, o Dr. P simulou querer informação certa mas na verdade não quis, pois não informou a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, nem esta conhecia por outra via, a informação que os três arguidos tinham sobre a existência da disputa em juízo acerca da procuração. Se a consulta do Dr. P contivesse tal questão, certamente que a informação prestada pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça não seria a mesma e estoutra não serviria aos seus desígnios.
7. O Dr. A sabia daquela disputa e, portanto, face à correspondência, facilmente poderia ter visto que a consulta do Dr. P estava truncada com um segredo que a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça desconhecia (pois só era conhecido dos arguidos e dos queixosos) e que, portanto, a informação da DSAJ não esclarecia nem podia esclarecer da real subsistência ou insubsistência do mandato nem da existência de quaisquer dúvidas ou disputas acerca dele. Além disso, também se verifica que outros notários solicitados para a celebração das escrituras recusaram a prática do acto apesar de menos alertados, enquanto que o Dr. A, apesar de mais alertado, optou por considerar em vigor o mandato e desprezar o resultado que o tribunal viesse a dar ao litígio.
8. Tanto basta para se concluir que o Dr. A também conhecia a falta de mandato ou, pelo menos, que o mesmo estava posto judicialmente em crise e que o mesmo podia vir a ser julgado em Tribunal como já não existente, tal como foi efectivamente julgado. E a sua opção foi decisiva na consumação dos desígnios dos co-arguidos e do mandatário-comprador, pois todos os outros notários contactados para o efeito se recusaram a praticar os actos notariais.
9. Assim, face à gravidade do seu comportamento, a pena de 2 anos de suspensão proposta para o Dr. A revela-se insuficiente, por desajustadamente inferior ao seu grau de culpa, decidindo este Conselho, enquadrando a sua pena também na alínea e) do artigo 41º do Código Disciplinar dos Advogados, fixá-la em 5 (cinco) anos de suspensão.
10. Assim, em conformidade com o relatório do Sr. Instrutor e com esta ponderação adicional, este Conselho julga a acusação procedente e decide aplicar ao arguido Dr. A a pena prevista no art. 41º, alínea e), do Código Disciplinar dos Advogados graduada em 5 (cinco) anos de suspensão da actividade de advogado, nos termos agravatórios ao relatório final do Sr. Instrutor que acima formulámos» (fls. 11001157 do p.a., vol. IV).
5- A procuração em causa, outorgada em 30 de Setembro de 1993, no cartório notarial do Dr. L, apresenta manuscrita a palavra em língua inglesa “cancelled” aposta entre dois traços oblíquos paralelos na 1ª folha e acompanhada de um só traço nas restantes folhas (fls. 27 do apenso I do p.a.).
6- Dessa procuração resulta expressamente que V, na qualidade de vice-presidente da Associação de Piedade e de Beneficência constituiu procurador da mencionada Associação K para em nome da Associação, entre o mais, poder prometer comprar, comprar, prometer vender, vender ou de outra forma alienar, pelo preço e nas condições que entender, recebendo o sinal, seus reforços e o preço, hipotecar, arrendar, outorgar escrituras, praticar negócios consigo mesmo, substabelecer os poderes, etc. (doc. cit.)
7- Do referido documento ainda resulta expressamente que a procuração também era conferida no interesse do procurador, pelo que não poderia ser revogada sem o seu consentimento, ou o do substabelecido, no caso de ter havido substabelecimento sem reserva (doc. cit.).
8- Em 13/01/2003 aquele procurador K substabeleceu sem reserva os seus poderes em B (doc. fls. 50 do p.a., apenso I).
9- A Associação de Piedade e de Beneficência intentou uma providência cautelar não especificada no TJB em 24/06/2003 contra K, B e C, pedindo, entre outras coisas, que os requeridos fossem proibidos de vender ou de qualquer modo alienar ou onerar quaisquer bens da Associação e que fossem proibidos de usar a dita pública-forma da procuração (fls. 52, apenso I).
10- Da decisão que parcialmente deferiu o pedido, foi pela Associação de Beneficência interposto recurso jurisdicional para o TSI, que, no Proc. nº 8/2004,por acórdão de 4/03/2004, concedeu parcial provimento ao recurso e decretada a providência nos termos essenciais em que ela havia sido pedida (fls. 348 a 362 do apenso I).
11- Os requeridos recorreram para o TUI desse acórdão do TSI, vindo o recurso a ser julgado improcedente e os recorrentes condenados por litigância de má fé, por acórdão de 1/12/2004 (fls. 622 a 625 do p.a. apenso II).
12- No TJB, Proc. nº CAO-019-03-3, deu entrada em 30/07/2003 acção declarativa comum com processo ordinário movida pela Associação de Beneficência contra K, B e C pedindo a declaração de nulidade das vendas efectuadas através de cinco escrituras públicas lavradas no cartório notarial do Dr. A (fls. 413 a 433 do p.a. apenso I).
13- Por sentença do TJB foi declarada a ineficácia face à Associação dos negócios de compra e venda de imóveis titulados pelas cinco escrituras públicas referidas e ordenado o cancelamento dos registos efectuados com base nessas escrituras.
14- Interposto recurso dessa decisão para este TSI, nos autos a que coube o nº 616/2007 foi lavrado acórdão em 9/02/2012, que negou provimento ao recurso (fls. 887-928).
15- No TJB correu termos a Providência Cautelar Comum com o nº CV3-03-0013-CAO-A, cuja sentença, lavrada em 25/09/2001, determinou a comunicação ao Banco Tai Fung SARL para proceder à abertura forçada de três cofres de segurança em nome de XXX, aliás, XXX, e sua mulher XXX (fls. 823 a 828, do p.a. apenso III).
16- Num desses cofres estava guardada a procuração referida em 5 supra (verba nº2, da relação de bens constante do Termo de Abertura de Cofre, a fls. 829 a 831, apenso III).
17- Pende contra a testemunha B um processo-crime no TJB com o nº CR1-11-0078-PCC, estando marcado o julgamento para 3/07/2012 pela prática de cinco crimes de falsificação de documento e por um crime de burla.
Não se provou que:
K não tivesse ido ao cartório notarial do Dr. L no dia 14/02/1995, ou noutro dia qualquer, para apor a assinatura na revogação da procuração que tinha sido emitida em seu favor e no seu interesse no dia 30/09/1993.
K não tivesse informado o recorrente, Dr. A de não ter estado no dia 14/02/1995 para a revogação da referida procuração.
***
III- O Direito
1 - Da inexecução do acórdão anulatório do TUI
O 1º vício invocado na petição inicial (arts. 32º a 79º), e reiterado nas alegações facultativas (5º a 9º), foi este que acaba de se epigrafar: não teria sido respeitado o acórdão do TUI, que anulou a deliberação do CSA, a qual tinha punido o recorrente na pena disciplinar de seis anos de suspensão do exercício de funções de advogado em Macau. Segundo o recorrente, o CSA não teria cumprido o dever de praticar todos os actos e operações materiais necessários à violação efectiva da ordem jurídica violada e à reposição da situação actual hipotética. E remata: “A mera substituição amorfa de um acto administrativo por outro acto sem repetição das ilegalidades ou dos vícios determinantes da anulação não é, in casu, suficiente para o cumprimento do disposto no art. 174º do CPAC”.
Estaria em crise, em sua óptica, a circunstância de o CSA ter utilizado os mesmos fundamentos que estiveram na base do acórdão anulado jurisdicionalmente, ainda que desta segunda vez aquele órgão da Associação dos Advogados tenha eliminado a referência que no anterior existia ao conluio do recorrente com os demais arguidos na obtenção de documentos alegadamente falsos para a celebração das escrituras de compra e venda. Ora, tal procedimento teria omitido um passo fundamental e que se traduzia na reponderação da situação do recorrente à luz dos factos apurados e da eliminação do aludido conluio.
Vejamos.
Como é sabido, em execução de sentença a Administração deve praticar todos os actos jurídicos e operações materiais que se tornem necessários à reintegração da ordem jurídica, segundo o critério da reconstituição da situação actual hipotética (art. 174º, nº3, do CPAC). E, por outro lado, deve abster-se de praticar um novo acto administrativo inquinado do vício ou vícios que determinaram a invalidação do acto recorrido.
Ou seja, tem, por força do dever de acatamento do julgado, de eliminar da ordem jurídica os efeitos positivos ou negativos que o acto ilegal tenha produzido e de reconstituir, na medida do possível, a situação que neste momento existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado e se, portanto, o curso dos acontecimentos no tempo que mediou entre a prática do acto e o momento da execução se tivesse apoiado sobre uma base legal1.
Por outro lado, a eficácia do caso julgado limita-se aos vícios determinantes da anulação, ou seja, não impede a substituição do acto recorrido por um acto de idêntico conteúdo regulador da situação jurídica, desde que a substituição se faça sem a repetição dos vícios determinantes da anulação2. Portanto, o limite objectivo do caso julgado das decisões anulatórias de actos administrativos “seja no que respeita ao efeito preclusivo, seja no que respeita ao efeito conformador do futuro exercício do poder administrativo, determina-se pelo vício que fundamenta a decisão”3
No processo de execução o tribunal só aprecia a actuação administrativa posterior à sentença exequenda quanto aos aspectos referentes à execução, isto é, quanto à observância do caso julgado; outros eventuais vícios dos novos actos com os quais a Administração pretenda ter dado execução ao julgado só poderão ser apreciados em recurso autónomo4.
No Ac. do STA, de 27/05/2004. Proc. nº 33942-A, escreveu-se:
«Como se disse, o critério a seguir na execução não é necessariamente o da reposição ou restabelecimento da situação anterior à prática do acto ilegal, mas o da reconstituição da situação actual hipotética através da qual a ordem jurídica violada é reintegrada, tudo se passando como nada ilegal tivesse acontecido e, portanto, realizando-se agora o que entretanto se teria realizado se não fosse a ilegalidade cometida (F. Amaral, ob. cit., pag. 41/42). Ou seja, as coisas não se passarão exactamente como se encontravam antes da prática do acto anulado, antes poderão ocorrer tal como se presume viessem a estar no momento presente, independentemente da verificação da anulação.
Ora, se a eficácia do caso julgado se confina aos vícios determinantes da anulação, nada impede que a Administração venha a praticar um novo acto de conteúdo igual ou diferente, consoante o caso em presença. O que não pode é reiterar a prática de um acto com um conteúdo igual ao anulado, desde que baseado expressamente nos mesmos fundamentos do anterior, porque, nessa hipótese, o novo acto ofenderá o caso julgado.
Assim, temos:
a) Se em execução de sentença vierem a ser praticados novos actos em ofensa do caso julgado, a sua nulidade poderá ser declarada, tanto em sede de “execução de julgado” (art. 9º, nº 2, do DL nº 256-A/77, de 17/06), como em sede de “recurso contencioso” autónomo (art. 9º, nº 3, cit. dip.).
Neste sentido, v.g.: o Ac. do STA de 13/07/95, Rec. nº 031129; 24/10/96, Rec. nº 40013; de 30/01/97, Rec. nº 2560; 20/01/99, Rec. nº 38470, entre outros.
b) Se vier a ser praticado acto renovador, porém, eivado de novas causas de invalidade que não faziam parte do anulado, então a sua sindicância já só poderá ser efectuada em recurso contencioso autónomo.
Neste sentido: Ac. do STA/Portugal, de 17/12/93, Rec. nº 31723; 29/01/97, Rec. nº 027517; de 29/01/98, Rec. nº 042342; de 4/11/99, Rec. nº 31110-A; Ac. do STA de 18/01/2001, Rec. nº 45381-A»5.
Ora, o que motivou a anulação foi a circunstância de o CSA ter dado por provado um facto que não constava no leque dos considerados provados pelo instrutor no seu relatório final: o “conluio” em que o recorrente teria participado no sentido da obtenção de documentos de que ele precisava para outorgar as escrituras de compra e venda.
Na execução desse acórdão anulatório, o que havia a fazer por parte do CSA, dado que nada mais do que isso estava em causa, era refazer a decisão punitiva, expurgando-a do vício de que anteriormente padecia. E se, neste caso, o vício se reportava à introdução indevida de um facto que não figurava no relatório do instrutor no âmbito dos factos provados, a reformulação do leque da factualidade provada mediante a eliminação daquele tornar-se-ia em escrupuloso cumprimento do referido acórdão anulatório e, consequentemente, em absoluto respeito pelo caso julgado. Nisso se traduziria o dever de execução.
A partir dessa redução no acervo factual, cumpriria, posteriormente, ao CSA sopesar os efeitos dessa alteração e, nesse sentido, determinar a moldura concreta da sanção disciplinar a aplicar ao recorrente.
E foi o que sucedeu. Conforme se pode constatar no ponto “B) Decisão: a renovação do acto administrativo anulado”, o CSA, deliberou “tudo analisado e ponderado…” dar por “…provada a acusação relativamente ao arguido Dr. A, aderindo, como seu e aqui integrante, ao Relatório do Ex.mo Senhor Instrutor deste processo disciplinar (…), na ponderação do grau de culpa, valor e influência que o comportamento dos arguidos terá tido na consumação do resultado (…). Assim, face à gravidade do seu comportamento, a pena de 2 anos de suspensão proposta para o Dr. A revela-se insuficiente, por desajustamente inferior ao seu grau de culpa, decidindo este Conselho, enquadrando a sua pena também na alínea e) do artigo 41º do Código Disciplinar dos Advogados, fixá-la em 5 (cinco) anos de suspensão (…)”.
Por aqui se vê a falta de razão do recorrente no que ao vício em apreço concerne. O CSA alterou os factos, como se impunha, face ao acórdão anulatório; efectuou a sua reponderação; procedeu à reformulação da sanção de acordo com o acervo factual apurado, não acolhendo a punição proposta pelo instrutor (2 anos), mas reduzindo de seis (pena anulada) para cinco a nova pena de suspensão.
Nada mais era necessário fazer. Descer a maior minúcia de ponderação, como parece defender o recorrente, seria tautológico, segundo cremos, uma vez que a reflexão sobre a necessidade de punir estava já patente no acórdão anterior e porque, por outro lado, mais ampliada explicação para a graduação da pena se deve ter por dispensável em virtude de ela já decorrer implicitamente da redução de seis para cinco da suspensão, mas principalmente por a fundamentação necessária a esse efeito já explicitamente fluir dos pontos 6 a 9 do aludido ponto B).
Se o dito “conluio” introduzido nos factos no primeiro acórdão anulado foi desta vez eliminado e se agora, na reapreciação do caso, o mesmo CSA baixou a medida da sanção, relativamente à pena primitiva, mas aumentando-a em relação à proposta pelo instrutor, com referência ao enquadramento legal do art. 41º, al. e), do Código Disciplinar dos Advogados, então podemos seguramente dizer que, independentemente da quantidade das palavras usadas com esse fim, o acórdão foi bem executado.
Quereria, talvez, o recorrente que a pena fosse substancialmente reduzida, quiçá até pura e simplesmente eliminada. Contudo, sendo ao tribunal possível analisar da existência material dos factos nos moldes acima referidos e averiguar se eles constituem infracções disciplinares, já lhe não cabe apreciar a medida concreta da pena, salvo em casos de erro grosseiro e manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios da justiça e da imparcialidade, porque essa é uma tarefa da Administração que se insere na chamada discricionariedade técnica ou administrativa, (Acs. do TUI de 15/12/2006, Proc. nº 8/2006; também na jurisprudência comparada: STA de Portugal, de 11/12/86, in BMJ nº 362/434 e de 5/06/90, in BMJ nº 398/355;de 02/10/90, in BMJ nº 400/712; de 03/03/94, Proc. Nº 033069; de 23/03/95, Proc. Nº 032586; 6/03/97, Proc. nº041112; de18/01/2000, Proc. nº038605; de 7/02/2004, Proc. nº 048149, entre outros).
Em todo o caso, sempre anuiremos que a graduação da sanção disciplinar de suspensão, dentro dos limites legalmente estabelecidos, é uma actividade incluída na discricionariedade imprópria (justiça administrativa), podendo sofrer os vícios típicos do exercício do poder discricionário, designadamente o desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, na sua vertente da adequação (Ac. do STA/Portugal, de 3/11/2004, Proc. nº 0329/04).
Contudo, nas hipóteses em que a medida tomada se situa dentro de um círculo de medidas possíveis, deve considerar-se proporcionada e adequada aquela de que a Administração se serviu (Esteves de Oliveira e outros, in Código de Processo Administrativo anotado, pags. 1904/105; tb. cit. Ac. do STA de 3/11/2004).
Neste sentido, de pouco valem as considerações produzidas pelo recorrente a respeito do poder-dever do tribunal na análise da dimensão da sanção no âmbito daquilo que entende ser um contencioso de plena jurisdição.
Com efeito, face ao que entre nós dispõe o art. 20º, do CPAC, o contencioso anulatório não muda de feição consoante a matéria seja atinente, ou não, ao exercício fundamental do direito ao trabalho ou do direito à profissão. O controlo do poder judicial obedece à intrincada rede de normas que lhe define o âmbito da sua acção e lhe cerceia os limites dos poderes de cognição. E se por esse controlo passa necessariamente a sindicância da função punitiva do CSA, outra coisa não pode o Tribunal fazer senão aquilo que a lei permite que faça. Ou seja, não está cometido ao Tribunal o exercício do poder disciplinar que é próprio do órgão corporativo de disciplina a que o recorrente está profissionalmente ligado. A tutela jurisdicional efectiva, aqui, ao contrário do que pensa o recorrente, não vai ao ponto de permitir uma ingerência no uso de poderes que são característicos de órgãos tipicamente administrativos ou que agem em matéria administrativa e não jurisdicional, e fica-se pelo apuramento da legalidade, impedindo qualquer imiscuidade na tábua de competências e poderes administrativos de outrem.
Foi esse, aliás, o sentido claro do Acórdão anulatório do TUI, de 13/01/2010, prolatado no Proc. nº 24/2009.
Razão para concluir, portanto, pela improcedência deste vício.
*
2- Da violação do princípio da proporcionalidade
Remetendo para os arts. 460º a 559º da p.i (arts. 10º a 16º das alegações), o recorrente defendeu que a pena de 5 anos aplicada é manifestamente desproporcional e atentatória doa sua dignidade como advogado.
Esta matéria, cremos nós, foi já abordada suficientemente no ponto anterior deste aresto. Portanto, consideramo-nos dispensados de repetir o que já foi dito sobre a sindicabilidade judicial da sanção. E assim concluído, outro caminho nos não esta, senão dar por finda a questão da medida concreta da pena. É que, sublinhemos, tendo o acórdão em apreço baixado de seis para cinco a pena de suspensão e dado a justificação para o seu juízo (ver pontos B- 1 a 9: fls. 1153-1157 do Vol. IV apenso), não nos parece que estejamos perante uma violação do apontado princípio, na medida em que não se nos afigura manifesta e ostensiva a presença de qualquer erro grosseiro na aplicação dos parâmetros de incidência dos factores de ilicitude e da culpa aos factos provados. De modo que quaisquer argumentos relativos ao decurso do tempo entre os factos e a pena ou à forma como o recorrente tem vindo a exercer o seu munus sem qualquer infracção disciplinar ou outros aqui não expressamente consignados não têm o condão de exercer qualquer influência na conclusão acabada de retirar acerca do vício.
3- Do erro sobre os pressupostos de facto
No capítulo III das suas alegações (arts. 17º e sgs.), o recorrente oferece aos autos a sua crítica relativamente ao modo como pelo CSA foi feita a apreciação dos factos pela decisão recorrida, concatenando-os agora com a prova produzida em audiência6.
São circunstâncias de facto alegadamente reveladoras de que os imóveis vendidos pelas referidas escrituras eram, desde tempos imemoriais, bens de sustento da Associação de Beneficência dos Bonzos do Tempo ou Pagode XXX (associação religiosa), apesar de nunca registados em seu favor, por até esse momento nunca ter adquirido personalidade jurídica. Segundo a sua posição, eram bens que estavam registados a favor da Associação de Piedade e Beneficência XXX (associação de leigos). E foi no intuito de transferir a propriedade desses bens para a Associação Religiosa - logo que esta adquirisse personalidade jurídica - que foi assinado um protocolo em 10/04/2003, na sequência do que viria a ser emitida uma procuração em que o representante da 1ª Associação (de leigos), de nome V, conferia poderes ao representante da segunda (associação religiosa), de nome K, no interesse deste e no interesse da Associação a que ele pertencia.
Mas esta questão, com o devido respeito, não serve os desígnios do recorrente com a eficácia pretendida. Aquelas circunstâncias não são mais do que factos antecedentes à emergência do caso. Isto é, possam embora ser reais, eles apenas quando muito permitem perceber como a procuração foi emitida em nome do beneficiário K. Mas nada retiram da substância da actuação do recorrente, se a procuração passada viria a ser revogada e se, inteirado dessa revogação, ele acabou por celebrar as escrituras de compra e venda com base num documento que não continha qualquer menção revogatória ou similar.
Avancemos, pois, para a questão fundamental. Trata-se de saber se dos elementos do p.a. e da prova produzida em audiência se pode colher se:
- Houve (ou não) revogação da procuração;
- Disso tinha (ou não) conhecimento o recorrente.
São questões que foram incluídas na acusação e dadas por provadas no relatório do instrutor do procedimento disciplinar e pela deliberação punitiva.
O que acontece é que, não obstante se ter encaminhado a pertinente matéria da petição inicial para audiência de discussão, nada de definitivo foi apurado que contrarie a versão fáctica com base na qual foi o recorrente punido. Efectivamente, pouco valor terá o depoimento das duas testemunhas ouvidas presencialmente no TSI quando afirmaram que o seu mestre K não reconheceu ter revogado a procuração. Efectivamente, essa afirmação juridicamente terá pouca importância, porque a revogação, quando existe, parte do representado (art. 258º, nº2, do CC) e aquele era simplesmente o procurador. A sua presença só se impunha para o caso de renúncia (art. 258º, nº1, do CC) ou no da revogação de procuração que também tivesse sido conferida no seu próprio interesse de procurador (art. 258º, nº3, CC). Era esta última a situação. Nesse caso, porque a procuração tinha sido passada também no seu interesse, a sua intervenção justificava-se, não a título de revogação de sua parte, mas a título autorizativo (o que é diferente), uma vez a lei obrigaria a prestação do seu acordo (art. 258º, nº3, do CC).
Por outro lado, a circunstância de as duas testemunhas terem dito que não foram com o seu mestre ao “acto de revogação”, não significa que este não tenha sido praticado sem a sua presença (sem a presença de qualquer uma das testemunhas). É, de resto, também frágil a afirmação de que o dia em que a “revogação” teria ocorrido (15/02/1995) era dia de festividades religiosas e de oração (circunstância alegada com o intuito de afastar a possibilidade de presença do mestre no acto), porque esse facto não obrigaria a reza constante durante todo o dia que impedisse em algum momento a deslocação ao escritório do Dr. L para a aposição de uma assinatura, a qual, necessariamente, não duraria mais do que breves minutos.
Por conseguinte, nada do que foi dito por aquelas testemunhas – as quais, de resto, enquanto discípulas do mestre K, ou dele subordinadas, conferem ao seu depoimento probatório um valor indiciariamente comprometido, face à reconhecida subordinação hierárquica e confessional daquelas em relação a este, sem esquecer que uma delas, concretamente, a testemunha B, acaba por mostrar-se interessada na prova, na medida em que é arguida no Processo-crime CR1-11-0078 – PCC – nos levou a valorizar mais o seu depoimento do que aquilo que de todos os processos acima citados, nomeadamente o próprio procedimento disciplinar, resulta em sentido contrário.
Estas são as razões da nossa convicção em não se dar por provada aquela factualidade concernente à alegada não intervenção de K no acto de revogação da procuração em seu benefício, assim como aquela outra em que se prendia que fosse provada a informação do mestre prestada ao ora recorrente de não ter estado no cartório notarial para a dita revogação da procuração.
Por tudo isto, não podemos aceitar que se esteja perante uma nulidade do acto (como o defende o recorrente) por nele não terem sido relevados estes factos, circunstância que quanto a nós, caso demonstrada, somente seria motivo para anulação com base em erro nos pressupostos de facto, aqui mesmo dado por inverificado.
*
Na mesma senda, isto é, no quadro da valoração da prova aqui concitada, o recorrente insiste, ainda, na circunstância de a procuração não poder ter sido revogada em virtude de a Associação em favor de quem ela foi emitida não ter manifestado o seu acordo e de nunca o recorrente ter tido conhecimento deles. E para isso, socorre-se agora do testemunho obtido do Dr. R.
Ora, duas coisas importa realçar neste instante.
Em primeiro lugar, da carta rogatória enviada a Timor-Leste para inquirição desta testemunha nada resulta que infirme a matéria da acusação e a aquisição factual obtida no procedimento disciplinar em sede de prova.
Em segundo lugar, esta questão, que densificava um vício imputado ao acto no recurso contencioso anterior - a que sobreveio o acórdão anulatório do TUI a que já nos referimos – foi tratada já em termos que não mais poderão ser alterados. Efectivamente, conforme se pode ler no ponto 10 do mencionado acórdão do TUI, ao tratar da violação de normas imperativas por parte do acórdão recorrido do TSI quanto à prova do conhecimento da falsidade da pública-forma, “A prova de que o recorrente conhecia a falsidade não requer nenhum meio de prova tarifada. Nenhuma norma o impõe. Está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (…). Não estava provada a falsidade da pública-forma perante o recorrente, mas este sabia que ela era falsa. Logo, tinha a obrigação de pedir a exibição do original da procuração para celebrar escrituras com base na pública-forma” (negro nosso). E a finalizar a apreciação do vício, concluiu: “ Improcede o vício suscitado”.
Ora, se esta questão foi expressamente tratada no acórdão anulatório e se a renovação do acto, para cumprir o dever de execução, deveria observar não só a parte dispositiva desse aresto, como os seus fundamentos, a fim de que o CSA não pudesse cair sob a alçada de execução indevida ou mesmo incumprimento, o que o CSA fez foi, como tivemos oportunidade de dizer, respeitar o acórdão anulatório. E, por conseguinte, tendo ele eliminado a causa da anulação, parece evidente que aquilo que na decisão punitiva foi apreciado, apreciado está. A não ser assim, o risco de contradição de soluções jurisdicionais seria grande. Bastaria que desta vez este tribunal, em sede de apreciação do mesmo vício, acabasse por divergir da solução anterior. O caso julgado – tanto na vertente positiva (autoridade do caso julgado), como na negativa (excepção de caso julgado) – estende-se neste caso aos fundamentos da decisão jurisdicional anterior, desde que a respectiva matéria tenha sido invocada no processo anterior e objecto de apreciação expressa pelo tribunal. Nisso reside, precisamente, a autoridade do caso julgado aplicada ao contencioso7.
As sentenças no contencioso administrativo anulatório têm um efeito reconstrutivo ou reconstitutivo que impõem, na medida do possível e necessário – pois pode haver grave prejuízo para o interesse público ou até mesmo uma causa legítima de inexecução – a reconstituição da situação actual hipotética, como já se viu. Isso passa, necessariamente, por uma distinção entre actos renováveis e não renováveis, sendo que aqui apenas o primeiro dos casos aqui se nos depara. Quanto a esse, o acto renovador, o novo acto praticado na sequência da anulação, pode bem repetir a solução do acto anulado8, embora com diferentes e novos fundamentos, desde que não reincida naquele(s) que tenha(m) determinado a anulação9. Parece claro que a imodificabilidade da decisão judicial só abrange a causa de pedir invocada e apreciada pelo tribunal, a ponto de se ter que considerar que se não torna legal ou válido o acto se a sentença, ao apreciar os vícios concretos, os considerou improcedentes. Na realidade, o juiz limita-se a declarar que os vícios não existem10.
Fácil é, portanto, concluir que o limite objectivo do caso julgado da sentença anulatório, sem dúvida, impede a Administração de praticar novo acto com a reedição dos vícios que conduziram ao julgamento de procedência de determinada causa de pedir, isto é, dos fundamentos concretos de preenchimento de determinado vício invalidante do acto11. A ilegalidade assim declarada encontra-se abrangida pelo carácter de imutabilidade da sentença transitada em julgado12.
Questão menos tratada na doutrina e na jurisprudência é aquela que procura a solução para os casos em que, mesmo anulado o acto com base em um vício específico, a mesma sentença julgou improcedentes alguns outros. É que, sendo verdade que o respeito pelo caso julgado se determina pelo motivo da anulação, nada por outro lado obsta a que a Administração insista em novo acto com os mesmos conteúdo e forma que a sentença julgou serem conformes o direito. Se o fizer, não estaremos perante ofensa de caso julgado, seguramente, porque lhe é suficiente eliminar a causa da anulação. Nessa hipótese, o problema da validade ou invalidade do acto fez parte do objecto do processo e foi concretamente apreciada, devendo ser abrangida pelo caso julgado.
Neste sentido, cremos que a limitação do caso julgado à decisão, ou seja, à parte dispositiva da sentença - embora no processo civil essa seja a situação que mais frequentemente é defendida na doutrina13, portanto, no sentido de que a força de caso julgado cobre a solução decisória e não o percurso empreendido pelo juiz para a alcançar, nem os factos considerados provados14 - não será no contencioso anulatório a melhor opção face à natureza da complexidade da causa de pedir, sempre que o juiz, perante os diversos vícios arrimados ao acto sindicado, sobre eles tenha emitido uma pronúncia decisória parcelar. E assim é que a observação que os processualistas apontam para arredar o caso julgado dos fundamentos carece aqui de sustentação lógica-jurídica. Compreendemos que “Estender a força do caso julgado a outros efeitos decorrentes dos factos apurados na acção, das situações ou relações jurídicas pressupostas na decisão, significaria ampliar a autoridade da decisão a consequências em que as partes podem não ter cogitado ao formularem as suas pretensões ou ao organizarem a sua defesa”15. E do mesmo modo se concede que se deve excluir do âmbito objectivo da eficácia do caso julgado todas as questões que, mesmo invocadas pelas partes como argumentos incidentais ou colaterais, não tenham sido objecto de pretensão explícita do autor na sua causa de pedir16. Mas não é disso que se trata agora. Realmente, a preocupação evidenciada no trecho transcrito não tem paralelo no contencioso administrativo, uma vez que as causas de pedir anulatórias são complexas: tantas, afinal de contas, quantos os vícios invalidantes, eventualmente conducentes a sancionamentos diversos (nulidade, inexistência jurídica, anulação)17. Na verdade, para cada um deles, o juiz ao longo do seu trabalho de subsunção dos factos ao direito, vai fazendo uma apreciação concreta e dando um veredicto específico, considerando-o procedente ou não, embora na parte final e dispositiva da sentença apenas tenha que resumir o seu juízo decisório anulatório em relação àqueles que mereceram êxito ou procedência. Portanto, não se pode dizer que as partes não sopesaram aquele fundamento que foi objecto de cognição do juiz e com base no qual ele, precisamente, emitiu um juízo de improvimento. É por isso que a sentença de anulação é o resultado da aplicação da norma ao facto e, assim mesmo, a enunciação da regra do caso concreto18.
Mas, além disso, um outro factor de delimitação objectiva do caso julgado ganha particular importância. Tem ele que ver com as sentenças de total improcedência, pois aí os limites do caso julgado só podem ter relação com os fundamentos da decisão, “porque eles constituem o elemento por referência ao qual se deverá verificar se a formulação do mesmo pedido em ulterior processo se baseia na superveniência de factos novos”19.
A necessidade do alargamento dos efeitos do caso julgado aos fundamentos, em especial no contencioso anulatório, justifica-se, portanto, no âmbito de uma necessária diferenciação entre motivação-argumentação - que é a fundamentação em sentido material ou estrito, aquela que exibe o iter do pensamento do juiz, que expõe os antecedentes lógicos-jurídicos do decisum - e o accertamento preclusivo, aquele que, ao lado da anulação, surge como o momento decisório autónomo e, portanto, acaba por ser parte integrante do dispositivo em sentido material20. De modo que, tal como o juízo de ilegalidade contido na sentença transitada em julgado impede a reedição do acto com o mesmo vício, assim também o juízo de legalidade (é dizer, juízo de improcedência do vício) formulado sobre determinada pretensão alicerçada numa causa de pedir concreta impede, ao abrigo do mesmo factor de preclusão, que ela volte a ser discutida a propósito de outro acto administrativo posterior de renovação do anulado21.
Em suma, se o efeito conformativo da sentença passa por uma consequência preclusiva ou inibitória, essa consequência só fixa o quadro de actuação específica da Administração sobre aquilo que ela pode ou não fazer em execução do julgado. Mas, nos casos em que, face à sentença anulatória, a Administração puder repetir a decisão administrativa com o mesmo conteúdo, o novo acto não pode ser acometido novamente nos tribunais com os mesmos vícios já anteriormente afastados expressamente pela decisão judicial. Em tal situação, o efeito inibitório, por conseguinte, deve sofrer um alargamento, de modo a estender-se ao próprio recorrente22quanto à invocação da nova causa de pedir em novo recurso contencioso.
E é por tudo isto que o recorrente não pode reeditar os vícios de ataque ao acto renovador naquilo em que ele nada inova relativamente ao anteriormente anulado, pela simples razão de que não são vícios supervenientes à anulação. Por isso se deve aceitar como boa a tese de que, assim como um acto anulado com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto não é renovável com base no mesmo facto que o Tribunal julgou não ser verdadeiro, assim também não pode o recorrente atacar o acto de renovação imputando-lhe o vício de erro sobre os pressupostos de facto que o Tribunal anteriormente apreciou e julgou não verificado.
No caso concreto, portanto, e respondendo à matéria das alegações contidas nos pontos 19 a 26, temos que julgar improcedente o vício nesta vertente, não apenas porque o depoimento do Dr. R nenhuma nova luz fez a propósito do tema em análise, como também em virtude de a questão do conhecimento da falsidade por parte do recorrente não poder estar sob nova censura na sequência da definição desse facto pelo julgado anterior.
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Na alínea II) - pontos 27º a 29º - das alegações o recorrente faz a importação, por reprodução, da matéria dos arts. 200º a 260º da p.i., no trilho que conferiu à relevância da prova produzida em audiência, para aflorar a questão da “falta de mandato por revogação da procuração outorgada a 22 de Abril de 2005”.
Pretende o recorrente fazer crer que a Associação de Beneficência dos Bonzos não tinha interesse em revogar a procuração e que nada nos autos ou noutra sede é demonstrativo que deliberou revogá-la; que, portanto, o Sr. K não estava mandatado para, em nome dessa Associação (em favor de quem também a procuração tinha sido emitida), proceder ou aceitar a revogação.
Mas, como já atrás dissemos, não está em causa nos autos saber por quem a procuração foi revogada e a quem ela aproveitava. Para o efeito da apreciação da bondade da sanção aqui sindicada, o que está em causa é concluir que o recorrente, como notário privado e como advogado, sabia que a pública-forma com base na qual foram lavradas as escrituras de compra e venda dos imóveis já não reproduzia a verdade, isto é, que não correspondia já ao original. Mas, isso, pelo que também acima dissemos, não foi infirmado. E, tal como o concluiu o acórdão do TUI anteriormente referido, o recorrente sabia que ela era “falsa” (“falsa” nesse sentido), ainda que a falsidade não tivesse passado pela sua autoria ou sequer co-autoria. Ele limitou-se a usar o documento que sabia já não traduzir cópia fiel do original.
Por conseguinte, ainda na perspectiva do vício de erro nos pressupostos de facto, tanto quanto se pode depreender da intenção do recorrente neste segmento das alegações, somos levados a concluir pela sua improcedência.
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Nos pontos 30 a 34º das alegações, no mesmo quadro da prova obtida em audiência, e invocando a matéria dos arts. 433º a 459º da p.i., para os quais remete, defende ainda o recorrente que a prova obtida no procedimento disciplinar com base no depoimento dos quatro advogados que nele foram ouvidos – Drs. XXX, XXX, XXX, L – era nula, face ao disposto nos arts. 5º, nº1 e nº4, al. b), 6º, nºs 1 e 2 e 88º, nº1, al. a) do Código Deontológico. E isto porque tais causídicos alegadamente depuseram sobre factos referentes a assuntos profissionais que lhes foram transmitidos pelos clientes, sem que, como o impunha o art. 7º, nº1, do mesmo Código, tivessem pedido e obtido prévia autorização da Associação dos Advogados.
Vejamos. Trata-se de uma questão que, podendo ter sido invocada no recurso anterior, dele, porém, não foi objecto, vindo a lume agora pela primeira vez. E se esta circunstância pode fazer ressurgir uma vez mais o tema do caso julgado, cremos que desta vez não haverá obstáculos ao conhecimento do vício. Em primeiro lugar porque ele é imputado ao novo acto. Em segundo lugar, porque, da mesma maneira que a Administração pode invocar novos fundamentos que podiam ter sido invocados no acto anterior, e não foram, uma vez que a anulação não tem, quanto a este aspecto, efeitos preclusivos23, assim também imutabilidade da decisão abrangida pelo caso julgado só abrange a causa de pedir invocada e conhecida pelo tribunal no recurso ao acto anulado, o que não impede o recorrente de invocar novos vícios em novo processo24.
Mas, e mergulhando já no conhecimento desta questão, cumpre dizer que o acórdão, ao reproduzir o conteúdo do relatório, dele se apropriou como suporte factual para a aplicação da sanção. E, assim sendo, bastará ver o que foi dito a fls. 40 da decisão (fls. 1139 do p.a., Vol. IV):
“ Aqui chegados, importa tecer algumas considerações, ainda que breves, sobre a questão da inquirição dos Colegas Srs. Drs. XXX, XXX e XXX.
Como já ficou referido, os seus depoimentos não estão feridos de nulidade pelas razões que indicamos.
Mas ainda que se perfilhe o entendimento defendido pelo Sr. Dr R, nem por isso ficará a acusação privada do necessário suporte probatório.
É que a matéria da acusação resulta provada do teor dos diversos documentos juntos aos autos e do depoimento das restantes testemunhas.
É, pois, perfeitamente dispensável o recurso ao testemunho daqueles Colegas
(…)
Pelo exposto, não encontramos motivos para alterar o teor da acusação, devendo apenas e à cautela ignorar-se a referência feita aos colegas Snrs. Drs. XXX e XXX no artigo 45º da mesma peça”.
Como se vê, qualquer discussão a propósito do valor do depoimento daquelas testemunhas deixa de ter qualquer sentido útil, uma vez que o próprio relatório justificou a matéria de facto apurada pelo recurso a documentos e às declarações de outras pessoas no procedimento, sem precisar do “…recurso ao testemunho daqueles colegas”. E se podemos, então, asseverar que o acto punitivo acolheu o relatório final do instrutor tal como ele está redigido, ao mesmo tempo recebeu os pressupostos ou fundamentos que ele elegeu para dar por colhida determinada factualidade.
Por conseguinte, se para a aquisição factual não foi decisiva a prova testemunhal dos referidos causídicos, e se, como foi dito, ela é dispensável, sem que isso altere ou diminua a massa fáctica obtida, parece evidente que nenhum efeito se pode extrair da presença daqueles testemunhos no seio do procedimento. O que vale por dizer que a arguição de nulidade é, a este respeito inerte ou, como se disse em Ac. do STJ de Portugal, de 20/09/2007, embora reportado a depoimento prestado em tribunal por advogado, “Se o conteúdo do depoimento é inócuo relativamente à sorte da causa, nunca poderia ser provido agravo em que se pretende a mencionada declaração de nulidade”.
Mesmo que assim não fosse, sempre valeria a pena lembrar que se considera justificada a quebra do segredo profissional quando o depoimento do advogado se mostrar “absolutamente indispensável para a defesa dos direitos e interesses legítimos do cliente, designadamente quando a sua audição se mostrar imprescindível à investigação de ilícito denunciado pelo seu cliente contra terceiro, sem o que aquele não tem possibilidade de demonstrar a verdade da tese que sustenta”25.
Ora, era precisamente o caso relativamente aos primeiros três advogados, quando expuseram o que sabiam sobre o caso que envolvia a Associação de Piedade e Beneficência (ver fls. 364 e sgs. do Vol. I, quanto à Drª XXX; fls. 471 e sgs. Do mesmo Vol.I, quanto ao Dr. XXX; fls. 475 e sgs, do Vol. I, quanto ao Dr. XXX).
Se analisarmos os referidos depoimentos, em nenhum momento do seu conteúdo podemos constatar que estes advogados se serviram da sua qualidade de advogados da Associação de Piedade para divulgar dados que só ela podia fornecer. Limitaram-se, na qualidade de colegas de profissão - tendo tomado conhecimento de sabendo que havia uma pública-forma falsa de procuração (porque a original estava já revogada), - a informar outros notários e até mesmo o recorrente desse facto, para que não procedessem à celebração das escrituras de compra e venda ao abrigo daquele instrumento. Ao agirem dessa maneira, pode até dizer-se, que estavam, mais do que a defender a Associação de Piedade e Beneficência, a proteger o próprio recorrente, tentando evitar que ele caísse na tentação de praticar actos fundados num documento forjado, livrando-o assim de qualquer ilicitude.
Quanto ao depoimento do Dr. L é muito claro que ele se limitou a intervir procedimentalmente na sua qualidade de notário, dando conta da sua actividade nesse estrito domínio (fls. 334 do Vol. I, apenso).
Em suma, e dispensando mais alongadas considerações, não se pode dizer que tenha havido violação dos arts. 5º, 6º e 7º do Código Deontológico por divulgação de segredo profissional.
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4- Vício de forma por falta de fundamentação
As conclusões, sendo uma síntese das alegações, não costumam apresentar um conteúdo que vá para além destas. É essa a regra. No entanto, o art. 68º, nºs 3 e 4, do CPAC, veio permitir que o recorrente pudesse trazer às conclusões os vícios que fossem próprios do conhecimento superveniente dos vícios acrescentando-os aos que já constassem das conclusões da petição inicial.
O recorrente, neste caso, trouxe às alegações fundamentos que resultam da prova obtida com a inquirição de testemunhas no âmbito da audiência de discussão dos autos, levando às conclusões a matéria respectiva. Sobre eles já nos pronunciámos acima.
Mas, como ele também levou às conclusões os vícios ou fundamentos que tinha formulado na petição, resta agora somente apreciar aqueles que se não podem considerar já abrangidos pela apreciação anteriormente feita.
O primeiro vício é o de forma por falta de fundamentação.
Vício que o recorrente sintetizou na alínea e) das conclusões, dizendo:
“A decisão ora recorrida incorre em vício de falta de fundamentação, porquanto não procede à identificação dos meios de prova que em que se sustenta a prova de cada um dos factos dados como provados, violando desse modo, o disposto nos artigos 113º e 114º do Código do Procedimento Administrativo”.
Mas o recorrente não tem razão. Como acertadamente diz o digno Magistrado do MP no seu parecer final, “No que tange à menção dos meios de prova tidos como idóneos para motivação válida do decidido, bastará uma atenta leitura do acórdão em crise para facilmente se alcançar, com clareza, suficiência e proficiência, a identificação dos diversos tipos de provas em que se estribou a decisão sobre a matéria factual, com selecção dos factos considerados pertinentes e relevantes para aquela, ficando um cidadão médio em perfeitas condições de assimilar em que tipo de provas se sustentou, de facto, o decidido. Poderá (como aparenta ser o caso do recorrente) não se concordar com o tipo de apreciação e valoração empreendidos, mas tal não será já do domínio da fundamentação questionada a esse nível, mas já de análise substancial da prova produzida, objecto de diferente escrutínio que, de resto, o recorrente não deixa de empreender, sendo certo, porém, que em termos de motivação ligada à menção dos diferentes tipos de prova sustentadores da matéria factual apurada, a mesma não deixou de ser expressa”.
Trata-se de uma posição que fazemos nossa, com a devida vénia, e que até nos deveria dispensar qualquer outro desenvolvimento. Ainda assim, não deixamos de lhe fazer acrescer o seguinte apontamento:
Contrariamente ao que sucede no processo civil, em que há um julgamento da matéria de facto e em que o tribunal deve especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art. 556º, nº2, do CPC), não há no procedimento administrativo regra semelhante. O que existe é um dever de expor a justificação do acto (explanação dos pressupostos de facto e de direito que conduzem à decisão) e os seus motivos (as razões que levaram o órgão administrativo a praticar o acto). Este dever, que encontra acolhimento no art. 113º, als. c) e d) do CPA, não se assemelha, portanto, à citada disposição do CPC. Daí que aquilo que o recorrente nos propõe não tem paralelo também no art. 115º do CPA. O que deve o órgão administrativo fazer é deixar claro o iter cognoscitivo, mas a respectiva apreensão há-de colher-se a partir dos fundamentos contextuais e próprios ou por ele recebidos pelo recurso à conta da remissão a partir de outra fonte (informação, parecer, proposta, etc). Isto é, não precisa o órgão (e o acto) de dizer que os factos considerados na fundamentação derivam concretamente do documento X ou Y ou do depoimento de A ou B. Quando se afirma que o acto não contém fundamentação de facto o que se transmite é a noção de que o acto não contém base sólida no plano da facticidade para justificar a decisão tomada; por outro lado, não se diz que não está fundamentado o acto que, apesar de abundante acervo de factos expressamente discriminados, apenas não esclarece qual a fonte em que se baseia para a obtenção desses factos26. Portanto, o que importa à observância do dever de fundamentar é que estejam devidamente expostas as razões que motivaram o seu autor a agir como agiu, que se faça luz sobre o caminho conducente à conclusão assente no desenvolvimento lógico e volitivo das respectivas premissas, que se tornem claramente externadas as razões de facto e de direito pelas quais o acto se apresenta com determinado conteúdo decisor, de forma a permitir que o destinatário inconformado o possa acometer com êxito. Diferente é a questão, sempre que os fundamentos fácticos do acto não condizem com a realidade, pois aí, do que se trata é de vício de erro sobre os pressupostos de facto.
Mas, ainda que assim não fosse, sempre nos cumpriria alertar para a circunstância de o relatório do instrutor ter indicado, em relação a alguns factos, a origem e a causa de onde extraiu a respectiva matéria, remetendo para depoimentos ou de documentos instrutórios existentes no procedimento (ex: “como melhor resulta da cópia que constitui o documento de fls…a…, cujo teor aqui se dá por reproduzido”: fls. 45 do acórdão; ou “Foi decisiva para a nossa convicção…o teor dos documentos e dos depoimentos que a seguir se indica…”: fls. 48 do acórdão).
Em suma, não consideramos que possa proceder o vício invocado.
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5º- Erro sobre os pressupostos
Em causa, agora, estaria a decisão na parte em que ela reporta a existência de vários notários que se haviam recusado a lavrar as escrituras públicas solicitadas ao recorrente (conclusão m) e art.281º da p.i.), circunstância que o recorrente acha não poder ser retirada da prova colhida no procedimento.
Realmente, o acórdão aborda o assunto dizendo que o Dr. P procurou, sem sucesso, junto de alguns cartórios notariais, nomeadamente o da Dr. T, a outorga dessas escrituras.
Trata-se, antes de tudo, de uma invocação perfeitamente inócua, pois o que releva para a punição e para a medida da pena não é saber se outros notários houve que se recusaram celebrar as escrituras por saberem da falsidade da pública-forma. O que importava para o cometimento do ilícito era apurar se o Dr. A, enquanto notário – houvesse ou não outros notários que tivessem agido diferentemente – se dispôs a celebrar as escrituras apesar de saber que o faria com base num documento “falso”. E quanto a isso, não há dúvidas.
Mesmo assim, no que respeita à indisponibilidade de vários cartórios para a dita celebração notarial, encontramos dispersos nos autos vários elementos de onde isso se pode colher. Assim: documento de fls. 264 do vol.I apenso (p.i. que viria a dar lugar aos autos CV3-03-0013); prova dessa matéria (facto 14); já neste TSI, Proc. nº 616/2007. Resulta ainda do depoimento da testemunha Drª XXX a fls. 364 e sgs, em particular a fls. 367; também das declarações a fls. 472 do Dr. XXX ou a fls. 520, do Dr. XXX e a fls. 552/553 da Drª T.
Ora, como esta questão decorre da livre convicção do instrutor e do órgão decisor a partir dos elementos existentes no procedimento, que permitem extrair a conclusão que o CSA retirou (sem qualquer aparente violação das regras da prova), somos a concluir que se não pode dar por procedente o vício.
6- Erro sobre os pressupostos (Cont.)
Desta vez, entende o recorrente que não podia dar-se por provado:
a) Que ele tivesse tido conhecimento da impugnação judicial a respeito da subsistência da referida procuração e, bem assim,
b) Que ele tivesse tido conhecimento de que a consulta do Dr. P à Direcção dos Serviços de Justiça estivesse truncada (alínea o).
Trata-se de matéria que vinha dos arts. 294º a 329º (1ª parte) e 330ºa 340º (2ª parte) da petição.
Quanto à primeira parte, pretendendo o recorrente tomar aquela factualidade como falsa, parte do pressuposto de que essa foi matéria dada por provada.
Em primeiro lugar, as comunicações que foram efectuadas ao recorrente pela Associação de Piedade e Beneficência e que constam de fls. 89, 95 e113, enviadas em 28/02/2003, 6/03/2003 e 21/05/2003, respectivamente, deram-lhe atempadamente conta de ser falsa a pública-forma em apreço e que a anterior, a original, havia sido cancelada. Ora, no que respeita à ilicitude da sua actividade, uma das suas raízes pode desde logo encontrar-se ali. E isso é – e foi - o mais importante para o seu sancionamento, afigurando-se-nos de nula importância o efeito de distracção que visa alcançar com a presente imputação.
Em segundo lugar, a “impugnação” a que se refere na parte final do parágrafo 4º de fls. 55/56 do acórdão do CSA (“…por o mandante estar a impugnar a autenticidade ou subsistência do mandato alegadamente em vigor”) é acertada se repararmos no sentido literal da comunicação de fls. 95 (“…esta Associação accionou já os mecanismos legais…designadamente no for criminal, tendo apresentado já a competente queixa…”) ou da carta de fls. 113 (“…todos os factos…são já do conhecimento do Ministério Público, no âmbito da queixa crime que a ora Exponente apresentou contra K”). Ao contrário do que exorta o recorrente, nós entendemos que o sentido da “impugnação” é esse, precisamente: discutir em Tribunal a (in)validade da procuração e, consequentemente, a (in)subsistência do mandato. Qualquer cidadão de mediana formação apreende este sentido com relativa facilidade, e mais o colhe qualquer advogado/notário habituado que está ao uso comum dos termos jurídicos. Deveria bastar ao recorrente saber destes dados para ficar de sobreaviso ou de alerta máximo para travar qualquer intenção de agir enquanto advogado e notário na preparação e celebração das escrituras.
No que se refere à segunda parte, valem de novo as considerações acima feitas a propósito da relevância e do valor do ponto 7 a fls. 57 do acórdão do CSA. Trata-se, ainda aqui, do exercício da livre convicção do órgão próprio formada a partir dos elementos dos autos, não se podendo dizer que ela tenha sido ilação grosseira ou de todo desprovida de sentido.
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7- Erro sobre os pressupostos de direito (violação de lei)
A sanção aplicada ao ora recorrente não decorre fundamentalmente da função notarial que exerceu, mas sim da qualidade de advogado. Daí que a fonte da ilicitude tivesse sido a violação dos arts. 1º, nºs 1 e 3 e 12º, nº2 e 14º, al. c), do Código Deontológico homologado por despacho nº 121/GM/92, de 31 de Dezembro.
O recorrente, contudo, é que não está pelos ajustes. Quer dizer, para si, não podia ser imputada qualquer violação dos seus deveres deontológicos de advogado, cujo conteúdo se traduz no mero dever de respeito geral pela legalidade (art. 393º da p.i.; conclusão o), da p.i. e das alegações). Trata-se de uma maneira de dizer que, se não violou os deveres deontológicos, os artigos citados do Código Deontológico não se podem mostrar violados.
Vejamos.
A tónica da argumentação está na circunstância de não ter sido dada qualquer relevância ao juízo de licitude do comportamento do recorrente, enquanto notário. Depreende-se da arguição que, para si, a actuação censurada pelo acto punitivo não deveria merecer qualquer crítica, não só porque as vendas não foram feitas a non domino, mas também por nelas ter participado o Sr. K, em representação da Associação de Piedade e Beneficência. Quer com isto o recorrente dizer que a sanção para a representação sem poderes seria a ineficácia do negócio (art. 261º, nº1, do CC) e a impossibilidade de produção de efeitos, circunstância que não geraria prejuízo jurídico ou patrimonial para a esfera da representada. Ora, isso deveria levar a entidade sancionadora a valorar a ilicitude e a gravidade dos factos imputados ao recorrente. Além disso, os dados de facto assim expostos não poderiam levá-lo, diz, a recusar a prática dos actos solicitados, concitando em abono da sua posição os arts. 14º e 16º do Código do Notariado. Finalmente, aduz a circunstância de ter advertido os contratantes da ineficácia das escrituras perante terceiros caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada. Tudo isto, portanto, na tentativa de demonstrar que a sua conduta foi lícita e sem violação de quaisquer deveres deontológicos.
Antes de mais nada, que a sanção para os negócios celebrados foi, efectivamente, a ineficácia dos negócios celebrados a coberto da referida pública-forma, isso resulta desde logo do acórdão lavrado neste TSI no Proc. nº 616/2007, em 9/02/2012, em sede de recurso da sentença da 1ª instância que havia decidido no mesmo sentido a questão derivada da representação sem poderes por parte do procurador K.
Ora, como se colhe directamente do Código do Notariado (C.N.), quando uma situação subjacente, não sendo caracterizada por um factor de nulidade (art. 87º, C.N.) dos actos notariais pretendidos realizar, mas antes subsumível a uma ambiência de ineficácia ou anulabilidade, o notário não tem o poder de se recusar a praticá-los, nos termos do art. 14º e 16º do CN, ainda que tenha que advertir os contratantes da existência do vício e fazer consignar no próprio instrumento a advertência que tivesse feito (art. 16º, nº2, do Cod. cit.). Advertência que no caso foi feita, conforme promana dos docs. de fls. 121 e sgs. do Vol. I, apenso.
A questão é: ao celebrar as escrituras, mesmo assim, teria o notário cometido algum ilícito ou, enfim, algum comportamento menos correcto ou adequado?
Numa interpretação puramente literal do preceito (art. 16º cit.), dir-se-ia que não. Importa, ainda assim, perder algum tempo na análise do artigo.
O caso é de representação voluntária, como se sabe. A Associação de Piedade e Beneficência emitiu procuração para a venda de bens, mas posteriormente revogou essa procuração. Isto quer dizer, portanto, que no momento em que o representante se arrogou com poderes para o acto, munido ainda de uma pública-forma que não correspondia ao original (o original estava já truncado graficamente para revelar a revogação e ainda possuía a palavra “concelled”), já não dispunha desses poderes. Ou seja, o representante estava a agir sem poderes, com um título que sabia não ser fidedigno e com o conhecimento de que agia contra a vontade do representado. E o mesmo sabia o digno recorrente!
Ora, para efeito da tarefa de subsunção ao art. 16º citado, tem que entender-se haver alguma diferença entre um acto ineficaz, porque o instrumento não confere poderes para o acto (caso em que tem que ser ratificado pelo representado, como acontece com a gestão de negócios (art. 261º, nº1 e 465º do CC) e um acto ineficaz que o notário sabe ser baseado num documento “forjado” e celebrado contra a vontade do dono dos imóveis vendidos.
Além, o notário, embora detecte a falta dos necessários poderes, age sem constrangimento nem possibilidade de recusa, porque assim lho impõe o Código, ante uma situação que pode ser resolvida pela ratificação: ao notário basta admitir (nem precisa de presumir) que o representado poderá proceder a essa ratificação e, assim, não lhe cumpre qualquer adicional atitude, muito menos nenhum juízo a respeito da impossibilidade ou ausência de vontade do representado nesse acto ratificativo. É por isso que o Código impõe que o notário faça a advertência e a registe no instrumento celebrado.
No segundo caso, as coisas mudam de figura. O notário conhece o vício (falta de poderes), sabe que a pública-forma da procuração foi abusivamente obtida e alcançada por um processo ilícito e tem conhecimento que o representado é contra a celebração do negócio! Numa hipótese em que todos estes elementos se conjugam, só uma configuração muito restrita do fenómeno da representação sem poderes pode caber no âmbito da previsão do art. 16º do CN. Com efeito, haveria de parecer cinismo fazer uma advertência deste género “Adverti os outorgantes de que este acto é ineficaz em relação ao dono do negócio, enquanto por ele não for ratificado” se o notário à partida a faz apenas para cumprimento meramente formal do seu dever, já que conhece as vicissitudes do negócio, sabe da invalidade formal e substancial do título e toma ciência da real vontade das partes, alem de ter consciência de que o negócio jamais irá ser ratificado. Em boa verdade, achamos que um caso real com este desenho ultrapassa, ou deve ultrapassar, os poderes funcionais do notário.
O notário é, como se sabe, é um tabelião, um delegado do poder público e profissional do direito, que deve por isso mesmo contribuir para a segurança e eficácia dos actos jurídicos que pratica, devendo portanto analisar a vontade das partes, a licitude do negócio e os requisitos formais específicos. Deve proceder sempre sem deixar rasto de ilicitude; deve ser rigoroso e imparcial; deve apreciar a eficiência e valor do negócio projectado, “com vista a decidir se pode dar-lhe o seu assentimento”27. “Seria reconhecer uma limitação incompatível com a natureza da função circunscrever a acção notarial à aceitação da vontade privada, ainda que muito problemática ou de duvidosa legalidade”28. Deve, pois, entender-se que o notário deve adaptar a sua actividade concreta ao sistema jurídico vigente, varrendo os vícios que se lhe deparem e que possam vir a anular ou a tornar ineficaz futuramente o negócio, fazendo assim a pedagogia da prevenção de litígios, em especial se o caso tem contornos obscuros do ponto de vista da ilicitude. Neste sentido, não podem os olhos do notário radiografar o preceito em apreço pelo prisma de Pilatos, limitando-se à advertência e à consignação no instrumento da advertência, pois desse jeito pode estar a contribuir para a degradação da imagem pública da função notarial e para o atropelo à segurança do comércio jurídico.
É, aliás, neste ponto que confluem as linhas da deontologia (ramo da ética que trata dos deveres) e da diceologia (ramo da ética que trata dos direitos profissionais). Na ética profissional pontificam elementos psicológicos (como a aptidão e vocação), mas também integridade, que no caso dos notários, está associado aos deveres de veracidade e imparcialidade29 e espírito de serviço, associado à prioridade da função social e pública da profissão exercida.
Temos a impressão de que o Estatuto do Notariado em Macau deveria ter ido mais longe, como foram os de outras jurisdições, nomeadamente a portuguesa30 ou brasileira, que indelevelmente traçaram no seu articulado um conjunto de princípios que devem nortear a actividade notarial. Mas nem por isso se pode pensar que não há um lote de princípios não escritos, os quais se podem extrair das regras existentes no Código e no Estatuto, algumas vezes tornadas “deveres”, pelos quais o notário tem que orientar-se.
No plano da deontologia, e nesse sentido, não só valem os princípios subjacentes relacionados com os deveres plasmados no Estatuto dos Notários Privados (DL nº 66/99/M, de 1/11), como o de dignificação do cartório notarial (art. 8º), de sigilo (art. 9º), de imparcialidade (art. 10º), de deontologia (art. 11º), de concorrência leal (art. 11º), como todos os que relevam dos outros deveres, tanto os que são comuns aos funcionários públicos (art. 12º do Estatuto), como os que atentem contra a disciplina e sejam próprios de uma violação de valores de honestidade, integridade, lealdade, justiça (art. 18º do Estatuto). E não pode deixar de se considerar ainda outros princípios, igualmente não escritos, mas que emanam do próprio Código do Notariado (DL nº 62/99/M, de 25/10), como o da fé pública (art. 1º), imparcialidade (art. 9º), da legalidade (art. 14º e 15º), do dever de exercício (art. 16º), da responsabilidade (art. 18º e sgs.), da conservação (arts. 22º e sgs.).
E é nesta dimensão que se julga que o notário não pode “vender” a fé pública. A fé pública não deve ser comercializada e é mister do notário prestigiá-la perante a sociedade por meio da perfeição e da imparcialidade. Não estamos a dizer que o notário neste caso foi imparcial ou vendeu a fé pública pelos emolumentos que cobrou do serviço. Mas, como nos parece, não terá já prestigiado a função ao dar fé pública a um acto que sabia não merecê-la. O notário não é apenas, e tão-somente, um documentador que dá forma ao negócio jurídico, mas também um intérprete que tem o dever de saber o que é que as partes desejam, adequando a vontade delas ao direito e ao ordenamento jurídico em função da finalidade perseguida. O juízo acerca da legalidade impõe-lhe o dever de examinar os requisitos legais do acto em venha a intervir, negando autorização quando existam defeitos, faltas ou vícios graves.
Ora, assim sendo, ainda que pensasse que o art. 16º do CN lhe dava algum conforto jurídico, o que para tanto, mesmo assim, sempre carecia de uma interpretação puramente restrita e literal da norma, pensamos que este seria um caso nítido que deveria levar o ora recorrente a fazer uso do art. 17º do CN31.
Que fique bem claro: o TSI não está a apreciar a ilicitude da actuação do recorrente enquanto notário (não é esse o objecto do processo), mas sim a ponderar se, no quadro dos seus poderes, outro devesse ser o seu procedimento funcional. E isso, no âmbito da verificação do vício invocado, já o pode este tribunal fazer.
Evidentemente que a censura disciplinar que lhe dirigiu o Conselho Superior de Advocacia se inscreve no reduto da sua actividade como advogado. Mas é claro também que se a qualidade de advogado está antes da de notário, não parece que uma e outra se devam desligar em vista da resolução do caso. Se o notário fez o que fez sem o dever fazer, parece que o advogado a montante o devia ter impedido que fizesse. Ou seja, a liberdade de determinação do “advogado” foi decisiva e fundamental para a actuação do “notário”. Houve aqui assim, em suma, uma contaminação de qualidades funcionais, razão pela qual os deveres profissionais do advogado, naquilo em que são comuns aos do notário segundo o padrão da lisura comportamental e da observância de um exercício da profissão com dignidade, responsabilidade e sentido de justiça, como é costume e praxe acontecer entre os profissionais do foro, se mostram também violados.
Assim sendo, sem mais delongas, improcede a conclusão p) das alegações.
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b) E com base no mesmo fundamento, improcederá a conclusão q) subsequente. Com efeito, ao partir da verificação do dolo por parte do recorrente (fls. 1149 do Vol. IV apenso), partiu a entidade sancionadora do pressuposto de que o recorrente - notário e advogado, na mesma pessoa -, não podia agir como agiu, com intenção pré-determinada e com vista a um resultado. E a conclusão acima alcançada confirma o pressuposto.
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Finalmente, invoca na conclusão r) a violação do art. 360º do Cod. Proc. Penal, “ex vi” art. 65º do Código Disciplinar, em virtude de terem sido considerados factos na decisão punitiva que não constavam na acusação e sobre os quais não teve oportunidade de exercer o contraditório.
Pois bem. Tal como já havia ocorrido com o acto anterior, exactamente nas mesmas circunstâncias, o Conselho Superior de Advocacia, aos factos incluídos no relatório final do Snr. Instrutor, na decisão, fez os “aditamentos seguintes” (expressão comum em ambos os acórdãos punitivos). Todavia, a verdade é que do conteúdo desses aditamentos anteriores, o novo acto eliminou a passagem que o aresto do TUI considerou exceder o conteúdo do relatório do instrutor. Nestes termos, não se vê que o novo acto contenha o mesmo vício, porquanto, relativamente à restante matéria, o acórdão do TUI não lhes dirigiu censura, estando assim protegido pelo caso julgado, nos moldes já acima aflorados.
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8- Considerações finais
Se, com intenção meramente pedagógica, não mais do que isso, nos é permitido um reparo, atrever-nos-íamos a dizer que a longa peça da petição inicial, as conclusões desse articulado - nem sempre evidenciando uma perfeita correspondência com as causas de pedir complexas - e, bem assim, a forma própria, mas simultaneamente remissiva como foi arquitectada a peça alegatória e respectivas conclusões, traduzem uma técnica pouco perfeita, na medida em que, além de não deixar bem caracterizados os vícios imputados ao acto, deixam o julgador atordoado sobre a matéria que esteve verdadeiramente em causa no início e/ou a que, entretanto, deixou de estar. E isso, por maior atenção que o tribunal dedique aos articulados e por mais feridas que tal dedicação abra no tecido da celeridade, nem sempre tranquiliza o julgador, preocupado em tudo conhecer, mas sempre correndo o risco de algo deixar por apreciar.
Ainda assim, estamos em crer que a abordagem acima efectuada se mostra completa ao núcleo essencial dos fundamentos de invalidade invocados pelo recorrente.
De resto, quaisquer outros constantes das conclusões das alegações ou até mesmo da petição para a qual o recorrente remeteu, e aqui não especificamente aflorados, não são vícios que nos obriguem a mais profunda indagação e, antes, não passam de meros juízos de discordância do recorrente, meras opiniões de quem não se conforma com a medida aplicada (e a sentença não tem que enfrentar todos os argumentos do recorrente, mas as “questões” nucleares que constituem a causa de pedir), as quais se devem considerar genericamente abrangidas na apreciação acima efectuada e pela solução para que ela aponta.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso, confirmando o acto recorrido.
Custas pelo recorrente.
TSI, 05 / 07 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
Estive presente
Mai Man Ieng

1 Neste sentido, F. Amaral, in A execução das sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª ed., pag. 45; tb. Ac. do STA em Portugal de 01/10/97, Rec. nº 39 205, in Ap. Ao DR de 12/06/2001,pag.5261.
2 Neste sentido, Ac. do STA de Portugal, de 02/10/2001, Rec. nº 3444-A
3 Ac. do Pleno/STA de Portugal, de 08/05/2003, Rec. nº 40 821-A.
4 Ac. do STA de Portugal de 22/01/2004, Proc. nº 28957-A; Ac. STA/Pleno, de 5/05/2005, Processo nº 029726/91-20(A).
5 Ver Ac. TSI, de 23/02/2012, Proc. Nº 27/2011; tb. Ac. Pleno/STA de 18/09/2007, Proc. Nº 028779A
6 Como resulta do ponto 17 das alegações, o recorrente reitera a matéria dos arts. 97º a 119º da p.a.. Salta, portanto, a matéria dos arts. 85º a 96º da p.i., o que significa que abandonou o vício de forma por falta de fundament5ação ali expendido.
7 Santos Botelho, Contencioso Administrativo, 4ª ed., pag. 901 e 912-913, para quem “A indiscutibilidade da pronúncia contida no aresto anulatório, a propósito da legalidade do acto contenciosamente impugnado, sendo como é, vinculativa para todos, impede que a questão ou questões nele apreciadas voltem de novo a ser conhecidas”.
8 Embora haja quem pense que a sentença pode ter um efeito preclusivo amplo que impede o órgão administrativo de repetir o acto pela renovação com invocação de novos fundamentos e motivos sem explicar de forma objectiva a razão pela qual os não considerou expressamente no acto anulado: Mário Aroso de Almeida, in Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, Coimbra, 1994, pag.164.
9 F. Amaral, A execução das Sentenças dos tribunais administrativos, 3ªed., pag. 94
10 F. Amaral, Direito Administrativo, IV, pag. 223, 224.
11 O efeito preclusivo da sentença: M. Aroso de Almeida, Sobre a autoridade do Caso Julgado das Sentenças de Anulação de actos administrativos, Almedina, pag.119.
12 Vasco Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, pag. 237.
13 Antunes Varela, Miguel Bezerra/Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pag. 699/700; no mesmo sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, III, pag. 143. Mas já J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 1999, III, 3ª ed., pag. 201, entende que deve ser alargada a força de caso julgado à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como condição para a solução final alcançada.
14 Sobre o tema, em processo civil, ver Viriato Lima, in Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pag. 555.
15 Antunes Varela e outros, ob. cit., pag. 700.
16 Preocupação equacionada por Mário de Aroso de Almeida, in Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, Almedina, pag. 38.
17 Neste sentido, por exemplo, o Ac. do STA de 9/02/1993, Proc. nº 031311.
18 E. Ferrari, cit. por Mário de Aroso de Almeida, in ob. cit., , pag. 83.
1919 Autor e ob. cits. pag. 40.
20 Autor e ob. cits., pag. 54.
21 Autor cit, em anotação ao Ac. do STA/Pleno de 19/01/1993, Proc. nº 024606, in CJA nº0, 22 a 24; no sentido de que o Tribunal não pode voltar a apreciar os vícios substanciais julgados improcedentes na sentença anulatória, imputados agora ao acto renovado, por a tal obstar a autoridade do caso julgado formado por aquela sentença, ver, por exemplo, STA de 2/02/2000, Proc. nº 031022; STA de 26/02/2003, Proc. nº 01297/02; STA de 24/05/2011, Proc. nº 0993A/02; STA de 7/03/2006, Proc. nº 0803/02.
22 O Ac. STA/Pleno de 19/01/1993, Proc. nº 024606 afirmou que só é única na aparência a pretensão anulatória que se desdobra em causas de pedir diversas, integradas em mais do que um vício. E disse mais este aresto. Disse que, nesse caso, a sentença de não provimento faz caso julgado relativamente aos vícios que foram considerados e em que não houve procedência, os quais desse modo não poderão ser invocados contra o acto renovado, por haver identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir
23 Só preclude em relação aos fundamentos que foram conhecidos: Ac. STA de 21/03/1991, Proc. nº 019760 e Mário Aroso de Almeida, Sobre a Autoridade do Caso Julgado…cit, pag. 143.
24 Neste sentido, F. Amaral, Direito Administrativo, IV, pag. 224; Rui Machete, citando o Prof. Fezas Vital, em «O Caso Julgado», na obra colectiva Dicionário Jurídico da Administração Pública, II, pag. 289; Mário Aroso de Almeida, pag. 88. Também o Ac. do STA/Pleno de 21/03/1991, Proc. nº 019760, cit.

25 Ac. RP, de 2/05/2007, Proc. 9611073.
26 Só não cumpre esse dever se, a fundamentação é per remissionem, sem que seja indicada a fonte para que se remete, i.é., sem dizer qual o documento que por essa via faz seu (neste sentido, v.g., ac. STA de 19/05/1992, Proc. nº 030346).
27 Fernando Neto Ferreirinha e Zulmira Neto Lino da Silva, in Manual de Direito Notarial, 4ª ed., pag. 1095.
28 Aut., ob. e loc. cits.,
29 Cfr. art. 10º do DL nº 66/99/M, de 1/11/1999 (Estatuto do dos Notários Privados)
30 Ver DL nº 26/2004, de 4/02: princípios da legalidade (art. 11º), da autonomia (art. 12º), da imparcialidade (art. 13º), da exclusividade (art. 15º), da livre escolham (art. 16º).
31 Até em virtude das implicações que do contrato celebrado podem advir para os terceiros de boa fé: sobre o assunto, ver Pedro Nuno Rodrigues, in Direito Notarial e Direito Registral, Almedina, pag.145 e sgs.
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