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Processo nº 994/2012 Data: 07.03.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “ofensa qualificada à integridade física”.
Crime público.
Desistência.



SUMÁRIO

O crime de “ofensa qualificada à integridade física” é um crime público, sendo irrelevante (inoperante) a desistência da queixa por parte do ofendido.


O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 994/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. O Digno Magistrado do Ministério Público requereu o julgamento de A, arguido com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática de 2 crimes de “ofensa qualificada à integridade física”, p. e p. pelos art°s 140°, 137°, n.° 1 e 129°, n.° 2 al. h), todos do C.P.M..

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Realizada a audiência, proferiu o Colectivo do T.J.B. Acórdão, declarando extinto o procedimento criminal e determinando o arquivamento dos autos; (cfr., fls. 116 a 118-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido veio o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer, motivando para, a final, produzir as conclusões seguintes:

“1- Segundo o acórdão do Tribunal a quo (fls. 118 e 118v.) – “Tendo em consideração que o crime de ofensa qualificada à integridade física ora imputado ao arguido tem a natureza do crime semi-público, pois, nos termos do art.º 108º, n.º 2 e art.º 137º, n.º 2 do Código Penal e art.º 40º, n.º 3 do Código de Processo Penal, homologa-se a desistência da queixa apresentada pelos dois ofendidos, declarando-se a extinção da prescrição do procedimento criminal contra o arguido, A, pela prática de dois crimes de ofensa qualificada à integridade física, p. e p. pelo art.º 140º, conjugado com art.º 137º, n.º 1 e art.º 129º, n.º 2, al. h) todos do Código Penal, bem como arquivando-se o processo.”
2- Nas alegações finais da audiência, o MºPº pediu ao Colectivo que julgasse procedente a acusação deduzida contra o arguido pela prática dos dois crimes em causa, visto que o arguido tinha confessado os factos imputados.
3- À luz da jurisprudência do acórdão do processo n.º 549/2012 do T.S.I., vislumbra-se que, em termo da técnica legislativa e da natureza da teoria jurídica, o crime de ofensa qualificada à integridade física em apreço é um crime público e, como objectivo do Direito comparado, o artigo correspondente de Portugal é também considerado um crime público.
4- Assim, revela-se que o Tribunal a quo teve erro na interpretação do disposto no art.º 108º, n.º 2 e art.º 140º, conjugado com art.º 137º, n.º 1 e art.º 129º, n.º 2, al. h) do Código Penal.
5- Atendendo ao conteúdo dos “factos provados” do acórdão do Tribunal a quo, verifica-se que o referido acto do arguido reúne os elementos constitutivos subjectivos e objectivos do crime previsto no art.º 140º, conjugado com art.º 137º, n.º 1 e art.º 129º, n.º 2, al. h) do Código Penal, sendo assim, deve julgar-se procedente a acusação.
6- A moldura penal abstracta do crime em apreço é de 40 dias a 4 anos de prisão ou de multa de 13 a 480 dias.
7- Tendo em conta que o arguido é delinquente primário e tinha referido que não se lembrava do sucedido do caso, por ter sido embriagado na altura, bem como o grau de ilicitude não é baixo, o grau da intensidade da culpa do arguido é regular e nos termos do art.º 64º do Código Penal, este MºPº considera que, nomeadamente para os fins da prevenção geral, a multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pois, deve escolher-se pena privativa da liberdade.
8- Nos termos dos artigos 65º, 40º e 48º do Código Penal, atendendo às circunstâncias do crime e à culpa do arguido, mormente o arguido insultou várias vezes os guardas policiais com palavras grosseiras e feriu dois guardas com pontapés, bem como as lesões dos guardas eram leves, tendo também em conta que o arguido teve bom comportamento na audiência, este MºPº considera que o arguido deve ser condenado em pena não inferior a 6 meses de prisão por cada crime de ofensa qualificada à integridade física praticado e, em cúmulo jurídico das penas aplicadas nos dois crimes, deve o mesmo ser condenado numa pena não inferior a 10 meses de prisão, sendo permissível a suspensão da execução da pena de prisão por um período não inferior a 1 ano e 6 meses”; (cfr., fls. 123 a 125).

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Sem resposta, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta o seguinte douto Parecer:

“Face à questão e fundamentação submetida pelo recurso interposto pela Digna Magistrada do M.P., concordamos, sem qualquer dúvida, com o entendimento da natureza do crime público do acto ilícito previsto e punido no art.° 140 do C.P.M., conjugado pelo art.° 129 n.° 2 al. h) do mesmo código, estando à suporte das competentes decisões dos Processos n.°s 149/2011 do Tribunal da 2°. Instância da R.A.E.M., de 15/11/2012, e 9610804 do Tribunal da Relação do Porto, de 13/11/1996.
Não é aceitável interpretar o art.° 140 do CP.M. como uma extensão do disposto no art.° 137 do mesmo código, por ser meramente um método de remissão adoptado pelo legislador.
Assim, nunca pode ser arquivado o presente caso sub judice com fundamentação da desistência da queixa, uma vez que o procedimento relativo ao "crime previsto e punido no art.° 140 do C.P.M., conjugado pelo art.° 129 n.° 2 al. h) do mesmo código, não depende da queixa.
Por tanto, inconformado com a decisão do Tribunal ad quo, deve assim ser reconhecida razão ao recorrente, no que toca à parte do entendimento da natureza do crime em causa, pois que se vislumbra que o douto Acórdão ora recorrido tenha violado as regras e as normas legais acima mencionadas.
*
Aliás, analisados os autos, salvo o devido respeito, mesmo que o recorrente não evidencie o eventual vício da decisão da matéria de facto provada, entendemos que seja discutível a qualificação jurídica, pelo Tribunal Ad quo, dos factos cometidos pelo arguido A.
Como é do senso comum, é competência exclusiva dos tribunais a apreciação das questões relativas à qualificação jurídica dos actos ilícitos, bastando garantir a possibilidade de realização do direito de defesa dos interessados bem como o princípio de debate. Limitando-se, claramente, pela proibição de reformatio in pejus, nos termos do art.° 399 do C.P.P.M ..
Vejamos assim os factos provados seguintes:
"……
2.
Neste momento, não ficando contente com o pedido do B, o arguido A berrou, com palavrões, ao B, "Que polícia burro, o que tem a ver contigo caralho (死差佬, 關你撚事呀)" ... "Puta com dentes feias, cão com dentes grandes, o que tem a ver contigo caralho, puta que pariu (哨牙Hai, 哨牙狗, 關你撚事呀, 屌你老母。)" …
4.
Ao proceder às diligências de condução do arguido ao automóvel policial com a destinação da esquadra policial, o agente policial C pisou no bilhete de identidade, que estava caído no chão, do arguido A, sendo, de imediato, por este, apontado com dedo e ralhado com palavrões, "Porque pisas fodidamente no meu bilhete de identidade, como te desempenhas o fodido trabalho de polícias burros nesta época, que grandes caralhos são! (你做乜撚嘢踩我個證, 依家D死差佬點撚樣做嘢, 大鳩哂呀!)" ;
5.
Na altura, o arguido A, perante as várias advertências sérias de não continuação das palavras injuriadoras dos agentes policias na presença do local, insistiu-se aproximar o corpo do agente policial C com o corpo próprio, e, com dedo apontado à cara do tal agente policial, e, berrou, "Puta que pariu, polícia burro ! (屌你老母, 死差佬)" .... "
"6.
Quando o agente policial C conduziu o arguido A e D ao automóvel policial, o arguido A recusou de entrar em veículo e gritou, "Que grande polícia caralho, o polícia está agredindo pessoa (差佬大鳩哂呀, 差佬打人呀". Face a esta situação, os agentes policiais do local controlaram-no juntamente com forças, subjugando com as algemas.
O arguido A mantinha a resistir com as mãos apertadas, prejudicando, com pontapés, os dedos da mão esquerda do B, bem como a perna esquerda e pulso esquerdo do C.
……"
O Tribunal Ad quo enquadrou os factos acima provados no crime de Ofensas qualificadas à integridade física, previsto e punido no art.° 140 n.° 2 do C.P.M., com conjugação do art.° 129 n.° 2 al. h) do mesmo código.
É destacado que a punição do tal acto ilícito depende da produção do tal acto ilícito em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, de entre as quais são susceptíveis as previstas no art.° 129 n.° 2 do C.P.M ..
É necessária salientar que, mesmo que se mostre satisfeito o pressuposto do art.° 129 n.° 2 do C.P.M., ou digamos, em concreto, que sejam os ofendidos agentes policiais que se encontravam no exercício da função pública, não conseguimos concluir que, in casu, exista circunstância que revele especial censurabilidade ou perversidade do agente, com base em que se devia imputar o crime previsto e punido no art.° 140 n.° 2 do C.P.M., com conjugação do art.° 129 n.° 2 al. h) do mesmo código, ao arguido A.
Em sentido de esclarecer as circunstância em causa, Jorge de Figueiredo Dias, na sua ilustre obra "Comentário Conimbricense do Código Penal de Portugal" de 1999, evidenciou o seguinte :
" ... que tais circunstâncias revelam, no caso, a especial censurabilidade ou perversidade do agente; o que só acontecerá se ao homicídio puder ligar-se uma especial baixeza da motivação ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vitima ou à função que ela desempenha. " (Tomo I, fls. 41)
Da factualidade dada como assente, por um lado, o arguido A dirigiu palavras ofensivas aos polícias que estavam no exercício das suas funções, injuriando gravemente os polícias. Por outro lado, o arguido A resistiu e deu pontapés aos polícias ofendidos para se opor a ser levado para o automóvel policial, causando as lesões de tais polícias constantes nos exames médicos, por empregar violência contra membros das forças de segurança enquanto no exercício de actos relativos aos exercícios das suas funções.
No entanto, não vemos, no âmbito da culpa do arguido, nenhumas circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do ora arguido que possa enquadrar o conceito de "uma especial baixeza da motivação ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica", afastando assim do efeito jurídico previsto no art.° 140 n.° 2 do C.P.M., com conjugação do art.° 129 n.° 2 al. h) do mesmo código.
No nosso entendimento, deveriam ser imputados, mais correctamente, por força dos art.°s 175, 178 e 311 do C.P.M., ao arguido A um crime de injúria com agravação e um crime de resistência e coacção.
Face ao prazo de prescrição, o procedimento penal pelo crime de injúria grave fica extinto, nos termos do art.° 110 n.°1 al. e) do C.P.M., arquivando pelo M.P. (v. fls. 42).
Em relação do crime de Resistência e Coacção, p.° e p.° n.° 311 do C.P.M., são requisitos necessários a violência ou ameaça grave empregada pelo arguido contra funcionário ou membro das forças de segurança com intuito de se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções.
Permitamo-nos citar, mais uma vez, as brilhantes ideias do Jorge de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal de Portugal, 1999, Tomo I, fls. 354 e 355) :
" ... Do conceito tradicional de violência, como intervenção da força física ... sobre a própria pessoa do coagido, tem a doutrina e a jurisprudência evoluído para um conceito mais amplo de violência que abrange também a violência psíquica...
A violência tanto pode dirigir-se contra a pessoa do coagido como contra a pessoa de terceiros……
A violência, pressuposta pelo crime de coacção, também pode consistir numa intervenção física sobre coisas, como, p. Ex, o furar os pneus do automóvel para impedir que o seu proprietário ou utente' possa prosseguir viagem…… As coisas, osbre as quais o agente faz recair o seu acto violento ... tanto podem ser do coagido como de terceiro……"
In casu, o arguido A deu pontapés aos agentes policiais que o conduziam ao automóvel policial, causando-lhes lesões. Apesar da ausência dessa menção no douto Acórdão recorrido, não duvidamos que, tendo em conta o ambiente e a situação do local e os factos provados pelo Tribunal Ad quo, no caso sub judice, o acto do ora arguido destinava-se a opor-se a que os agentes policiais praticassem acto relativo ao exercício das suas funções, independentemente da forma e nível da violência optada e causada. Tendo resultado, na realidade, a impossibilidade do exercício ou da continuação do exercício das funções que aos ofendidos competiam desempenhar.
Determina-se assim sem dúvida um crime, só, de Resistência e Coacção, p.° e p.° n.° 311, absorvendo o crime p°. p.° n.° 137 n.° 1, ambos do C.P.M ..
*
O Tribunal é livre para fixar a pena, dentro da moldura penal de cada crime, atendendo às exigências de prevenção criminal e da culpa do agente, nomeadamente de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nos termos do art.s° 40 e 65 do C.P .M ..
Como já foi demonstrado na motivação do recurso da Digna Magistrada do M.P., "ponderando também a inexistência de qualquer circunstância agravante ou atenuante, para além de o arguido ser primário, bem como os fins das penas, vamos promover uma condenação em pena correspondente à correcta qualificação de crime e à sua moldura penal, tendo em consideração a suspensão da pena por um prazo adequado, nos termos do art.os 40, 65 e 48 do C.P.M ..
*
Tudo ponderado, é de concluir pela procedência do recurso do M.P., na parte do entendimento da natureza do crime previsto e punido no art.° 140 do C.P.M., conjugado pelo art.° 129 n.° 2 al. h) do mesmo código, por este não depender de queixa, considerando assim que o douto Acórdão, ora recorrido, tenha violado as regras e as normas legais acima mencionadas.
Sem prejuízo da consideração ponderada das questões relativas à correcta qualificação jurídica dos factos provados, pela força dos art.s 311 do C.P.M., e, à condenação e determinação da pena promovida pelo recorrente, nos termos dos art.s art.°s 40, 65 e 48 do C.P.M ..
Pelo exposto, devem assim ser julgados procedentes os recursos do M.P. e, ser reclassificado o crime com condenação em pena como promovido pelo recorrente, ou reenvio dos presentes autos para novo julgamento”; (cfr., fls. 139 a 142).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

2. Vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. que declarou extinto o procedimento criminal e determinou o arquivamento dos presentes autos.

Vejamos.

Tem a decisão ora recorrida – na parte da “aplicação do direito” – o teor seguinte:

“In casu, o arguido, A, foi acusado pela prática de dois crimes de ofensa qualificada à integridade física, p. e p. pelo art.º 140º, conjugado com art.º 137º, n.º 1 e art.º 129º, n.º 2, al. h) todos do Código Penal.
Os dois ofendidos, B e C, declararam a desistência do procedimento criminal instaurado contra o arguido.
O arguido alegou que concordava com a vontade de desistência da acção dos dois ofendidos.
Na audiência, o MºPº manifestou que não se opunha à desistência da acção apresentada pelos dois ofendidos.
*
Tendo em consideração que o crime de ofensa qualificada à integridade física ora imputado ao arguido tem a natureza do crime semi-público, pois, nos termos do art.º 108º, n.º 2 e art.º 137º, n.º 2 do Código Penal e art.º 40º, n.º 3 do Código de Processo Penal, homologa-se a desistência da queixa apresentada pelos dois ofendidos, declarando-se a extinção da prescrição do procedimento criminal contra o arguido, A, pela prática de dois crimes de ofensa qualificada à integridade física, p. e p. pelo art.º 140º, conjugado com art.º 137º, n.º 1 e art.º 129º, n.º 2, al. h) todos do Código Penal, bem como arquivando-se o processo”.

Discordando do assim decidido, vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público imputar ao Acórdão objecto do seu recurso o vício de “erro na interpretação do disposto no art.° 108°, n.° 2 e art.° 140°, conjugado com art.° 137°, n.° 1 e art.° 129°, n.° 2, al. h) do Código Penal”, (cfr., concl. 4), pedindo, igualmente a condenação do arguido numa pena única não inferior a 10 meses de prisão; (cfr., concl. 8°).

É também verdade que, em sede de motivação, alega o Exmo. Magistrado recorrente que:

“(…) no decurso da audiência, o Tribunal Colectivo não concedeu a palavra a este MºPº para pronunciar sobre a desistência da acção. De facto, nas alegações da audiência, este MºPº pediu ao Colectivo que julgasse procedente a acusação, visto que o arguido tinha confessado os factos imputados.
Assim sendo, o MºPº não se conforma com a seguinte parte do acórdão do Tribunal a quo: “Na audiência, o MºPº manifestou que não se opunha à desistência da acção apresentada pelos dois ofendidos”.

Todavia, nenhuma referência a tal “questão” consta das conclusões a final produzidas (e atrás transcritas), e, assim, certo sendo que atento o art. 402° do C.P.P.M., é nas conclusões que se demarcam as questões a resolver, há que dizer que irrelevante se afigura o alegado sobre a aludida questão.

Seja como for, não se deixa de consignar também que o “recurso” não nos parece o meio processualmente adequado e próprio para se suscitar tal questão – de (eventual) “falsidade da acta” – especialmente, sem que previamente tenha sido a mesma colocada perante o Tribunal a quem se imputa o seu cometimento.

Dito isto, e identificadas que assim ficam as questões a resolver, vejamos.

Preceitua o art. 105°, n.° 1 do C.P.M.:

“Quando o procedimento penal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

E, em anotação ao enunciado no dito art. 105° salientam L. Henriques e S. Santos o que segue (e que vale a pena aqui recordar):

“Este artigo foca a questão de saber a quem compete a iniciativa do desencadeamento da investigação da prática de um crime e a decisão de o submeter ou não a julgamento: saber se essa iniciativa deve pertencer a uma entidade pública (representando o interesse da comunidade organizada) ou a qualquer entidade particular, designadamente ao ofendido pela infracção.
Foi consagrado o princípio da oficialidade, o que significa que a iniciativa e o impulso processuais da investigação prévia e da submissão a julgamento das infracções criminais competem oficiosamente às entidades públicas a quem a lei confere o encargo daquela investigação e aos tribunais criminais.
«Considerando-se o direito penal como direito de "protecção" dos bens fundamentais da comunidade e o processo penal como " um assunto da comunidade jurídica", em nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o crime e perseguir e punir o criminoso, toma-se de imediato compreensível que a generalidade das legislações actuais, e entre elas a nossa, vote no sentido de reputar a promoção processual das infracções tarefa estadual, a realizar oficiosamente e portanto em completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares» (FIGUEIREQO DIAS, Direito Processual Penal, pág. 117).
Mas o princípio da oficialidade sofre limitações que resultam, além do mais, da existência de crimes semi-públicos e de crimes particulares, indicados na Parte Especial. Fala a Doutrina a esse propósito em:

- crimes públicos: aqueles em que o M.°P.° desencadeia oficiosamente o procedimento criminal e exerce com plena autonomia a acção penal;
- crimes semi-públicos: aqueles em que a legitimidade do M.°P.° para exercer a acção penal necessita de ser integrada com uma queixa (n.° 1 deste artigo);
- crimes particulares: aqueles em que a legitimidade do M.°P.° para exercer a acção penal necessita de ser integrada não só com uma queixa, mas também com uma acusação particular.

Na parte especial do Código indica o legislador quais os crimes que exigem queixa (crimes semi-públicos) e quais os que exigem acusação particular (crimes particulares), sendo públicos os restantes.

A exigência de queixa e de acusação particular vai buscar o seu fundamento:

- à diminuta gravidade da infracção - certas infracções (por ex. ofensas à integridade física simples, dano, injúrias, etc.), atenta a sua pequena gravidade, não violam de modo directo e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade, a merecer, por parte desta, uma reacção automática. Esta reacção só surge mediante expressa manifestação de vontade das pessoas directamente ofendidas;

- especial natureza dos valores em causa - certos crimes atingem valores em relação aos quais se impõe especial discrição (por ex., os crimes sexuais). Aí a promoção processual, sem ou contra a vontade do ofendido, pode ser inconveniente para interesses seus dignos de toda a consideração. Daí que se lhe dê prevalência”; (cfr., C.P.M. Anotado, pág. 262 a 263).

Em causa estando o crime de “ofensa qualificada à integridade física”, importa então apurar da sua “natureza”.

Pois bem, como “crime contra a integridade física” – integrado no Capítulo III do C.P.M. – o mesmo tem como “tipo padrão” o crime de “ofensa simples à integridade física”, p. e p. pelo art. 137°, onde se prescreve que:

“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. O procedimento penal depende de queixa.

3. O tribunal pode dispensar de pena quando:

a) Tiver havido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou

b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor”.

E logo do exposto se constata a diferença no que toca à “natureza do ilícito”.

Com efeito, (e tendo-se presente o que atrás se deixou dito sobre tal matéria, citando-se L. Henriques e S. Santos), enquanto o n.° 2 do art. 137° estatui que “o procedimento penal depende de queixa”, nada se diz no art. 140°, (o mesmo sucedendo, v.g., com o ilícito do art. 138° que prevê o crime de “ofensa grave à integridade física”).

Ora, verificando-se que o legislador condicionou o procedimento penal à existência de “queixa” (do ofendido) no art. 137°, deixando de o fazer – (logo) em relação ao art. 138°, e – no art. 140° ora em questão, voltando a consagrar tal “pressuposto” no art. 142°, onde se regula o crime de “ofensa à integridade física por negligência”, adequado se nos mostra de considerar que tal “diferença” não pode deixar de significar uma clara e (intencional) vontade de o regular de forma distinta, sob pena de absoluta impossibilidade de se ter como acertado o estatuído no art. 8° do C.C.M., (nomeadamente, no seu n.° 3), onde se preceitua que:

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Aliás, a esta idêntica conclusão também já se chegou no recente Acórdão deste T.S.I. de 15.11.2012, tirado no Processo n.° 149/2011 pelo mesmo Colectivo deste, e também citado pelo Exmo. Recorrente.

Sendo, tanto quanto julgamos saber, o mesmo o entendimento da doutrina sobre a questão – cfr., v.g., Miguel Garcia in “Direito Penal - Passo a Passo”, pág. 165 e segs., assim como o Ac. de Rel. do Porto de 13.11.1996, Proc. n.° 9610804, onde se afirma expressamente que “o crime de ofensa a funcionário, previsto no artigo 385 n.1 do Código Penal de 1982 ou no artigo 146 do Código Penal de 1995 é crime público” – mais não parece necessário consignar para se justificar a solução a que se mostra de chegar, no sentido de não se poder manter a decisão recorrida.

Na verdade, não sendo o crime em questão “semi-público”, mas sim “público”, irrelevante – inoperante – é a “desistência de queixa” de quem quer que seja, ao Ministério Público assistindo pois legitimidade para, (de forma autónoma) promover o procedimento criminal.

E, então, “quid iuris”?

Ora, na motivação e conclusões do recurso em apreciação, pede o Exmo. Magistrado recorrente a condenação do arguido em pena única não inferior a 10 meses de prisão.

Por sua vez, no seu douto Parecer, pugna a Ilustre Procuradora Adjunta por uma “diversa qualificação jurídica”.

Contudo, cremos que, no caso, inviável é acolher-se tais pretensões.

Com efeito, face à (natureza da) decisão ora recorrida – de extinção do procedimento criminal, sem uma “pronúncia sobre o mérito da acusação deduzida”, e sendo, como se viu, de revogar o assim decidido, adequado nos parece que os autos devam voltar ao Tribunal recorrido para, após as formalidades entendidas adequadas e necessárias, se proferir uma nova decisão, desta forma se assegurando (até) um segundo grau de jurisdição.

Tudo visto, resta pois decidir.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, determinando a devolução dos autos ao Tribunal recorrido nos exactos termos consignados.

Pelo seu decaimento, pagará o arguido a taxa de justiça de 2 UCs, não se tributando o Ministério Público dada a sua isenção.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.000,00.

Macau, aos 07 de Março de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 994/2012 Pág. 2

Proc. 994/2012 Pág. 1