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Processo nº 218/2011
Data do Acórdão: 17JAN2013


Assuntos:

Responsabilidade contratual
Responsabilidade extracontratual
Ónus da prova
Responsabilidade por informação do médico
Leges artis


SUMÁRIO

1. Tem natureza contratual a prestação de cuidados de saúde ou de tratamentos médicos por estabelecimentos hospitalares privados ou médicos privados.

2. Assim, quando se levanta a questão de responsabilidade civil contratual com fundamento no incumprimento ou cumprimento defeituoso de obrigações da prestação de cuidados de saúde ou de tratamentos médicos por estabelecimentos hospitalares privados ou médicos privados, a prova da existência do vínculo contratual, dos danos, e do nexo de causalidade entre o ilícito contratual e os mesmos danos sempre compete ao Autor que, todavia, beneficia da presunção de culpa contida no artº 788º do CC. Por sua vez, para se defender com sucesso, o médico contra quem foi intentada a acção tem de demonstrar ser prudente e diligente a sua actuação e que os serviços de cuidados de saúde ou de tratamentos por ele realizados são os mais indicados para fins diagnósticos ou curativos de acordo com a leges artis, por forma a ilidir a presunção de culpa contra ele estabelecida no artº 788º do CC.

3. Ao levar a cabo uma operação médica para fins curativos ou diagnósticos, especialmente de natureza invasiva, o médico tem o dever de informar o doente dos possíveis riscos inerentes à operação por ele escolhida ou sugerida e da existência ou não de outros meios alternativos ou sucedâneos com o mesmo ou quase o mesmo efeito curativo ou diagnóstico, assim como os possíveis riscos a estes inerentes para a saúde ou para a vida, por forma a habilitar o doente a tomar uma decisão e a prestar um consentimento efectivamente consciente e de livre vontade.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 218/2011


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

A, B e C, devidamente identificados nos autos, intentaram contra a ASSOCIAÇÃO DE BENEFICIÊNCIA DO HOSPITAL KIANG WU, a acção declarativa ordinária, que veio a ser registada no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base sob o nº CV3-07-0021-CAO, pedindo a condenação desta associação a pagar a eles a quantia de MOP$1.695.620,00, acrescida de juros à taxa legal a partir do trânsito em julgado da sentença, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais a que alegaram ter direito por causa da morte de D, marido da 1ª Autora e pai dos 2º e 3º Autores.

Devidamente tramitado o processo, veio a final ser proferida a seguinte sentença:

I – Relatório :
1ª - A, viúva, residente na XXX, Macau, e seus filhos;
2º - B, empregado de casino, solteiro, nascido a 25 de Outubro de 1984, residente na XXX, Macau;
3º - C, estudante, solteiro, maior, nascido a 17 de Novembro de 1985, residente com a mãe aqui 1ª Autora;
veio intentar a presente
Acção Ordinária
contra
Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu (鏡湖醫院慈善會), pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, com sede no Hospital Kiang Wu, Estrada do Repouso, n.ºs 33-33C e n.º 35, em Macau,
com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 14.
concluíram pedindo que seja julgada procedente a presente acção e, em consequência, o Réu condenado a pagar aos Autores a indemnização total de MOP$1.695.620,00, sendo:
1. MOP$800.000,00, a título de indemnização pelo direito à vida destruída, a reverter para os 3 autores, herdeiros da vítima;
2. MOP$200.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela vítima e a reverter para os 3 herdeiros da vítima;
3. MOP$300.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela viúva Autora;
4. MOP$95,620.00, a título de danos patrimoniais sofridos pela Autora com o funeral;
5. MOP$300.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pelos 2 filhos, na proporção de MOP$150.000,00 cada.
Acrescida de juros à taxa legal a partir do trânsito em julgado da sentença que a fixar.
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A Ré contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 47 a 95 dos autos.
Concluiu pedindo que seja julgado improcedente os pedidos dos Autores.
***
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam".
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
***
Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
***
II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- A Ré é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa devidamente registada na Direcção dos Serviços de Identificação de Macau sob o n.º 348 (vide doc. 1 junto com a p.i.) (alínea A) dos factos assentes).
- A qual, devidamente habilitada pela Licença n.º001 e Alvará n.º001 emitidos pela Direcção dos Serviços de Saúde de Macau, exerce actividade hospitalar no estabelecimento denominado “Hospital Kiang Wu”, sito na Estrada do Repouso, n.ºs 33-33C e n.º 35, em Macau (vide doc. 2 junto com a p.i.) (alínea B) dos factos assentes).
- Através do qual presta serviços médicos e hospitalares em Macau aos paciente interessados, mediante retribuição dos serviços prestados pelo montante dos preços em vigor nesse Hospital (alínea C) dos factos assentes).
- E em cuja actividade emprega sob sua autoridade e direcção os médicos e demais pessoal hospitalar necessário, nomeadamente os médicos radiologistas e enfermeira que intervieram nos factos, aludidos na matéria seleccionado nos factos assentes e na base instrutória (alínea D) dos factos assentes).
- A 1ª Autora, titular do BIRM n.º XXX, casou em 29 de Agosto de 1981 com D, titular do BIRM n.º XXX, ora sinistrado dos autos (Cfr. doc. 3, 4 e 5 junto com a p.i.) (alínea E) dos factos assentes).
- Tendo do casamento nascido como únicos filhos, o 2º e 3º Autores: B e C, titulares dos BIRM n.º XXX e BIRM n.º XXX respectivamente, e cujas fotocópias (cfr. doc. n.º 6 e 7, junto com a p.i.) (alínea F) dos factos assentes).
- D faleceu em 17 de Julho de 2004 (cfr. doc. n.º 8 junto com a p.i.) (alínea G) dos factos assentes).
- À data da morte e desde há longa data, o D sofria de varizes crónicas na perna, gastrite crónica activa e degeneração da espinha lombar (alínea H) dos factos assentes).
- E para cujas vigilância e tratamento médicos era paciente do Hospital da Ré Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu (alínea I) dos factos assentes).
- Em 16 de Julho de 2004, a vítima D foi ao Hospital Kiang Wu, departamento de cirurgia, para verificação e tratamento das varizes da sua perna (alínea J) dos factos assentes).
- A vítima tinha vários antecedentes patológicos que constavam dos registos no Hospital, nomeadamente as referidas varizes crónicas nas pernas, gastrite crónica activa, degeneração da espinha lombar (alínea K) dos factos assentes).
- Os serviços de Saúde realizaram à autópsia da vítima, in Proc SML: 041/2004, Ref. Inq. 2094/2004 (Inq. N.º 6093/2004, do M.P.), cuja cópia de relatório aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea L) dos factos assentes).
- O centro de Avaliação de Queixas relativas a Actividades de Prestação de cuidados de Saúde dos Serviços de Saúde, na sequência de uma queixa apresentada pela 1ª Autora, Processo n.º 037/CAQ/04, realizou um inquérito sobre o falecimento do seu marido, de cujo resultado consta na sua resposta n.º 048/OUT/CAQ/04 dirigida à 1ª Autora, de cujo teor se dá aqui integralmente reproduzido (alínea M) dos factos assentes).
- A morte do falecido foi objecto de investigação por parte do Ministério Público, no âmbito dos autos de Inquérito nº 6093/2004, os quais foram aquivados por decisão de 20 de Setembro de 2005, de cujo teor consta da certidão junta aos autos a fls. 126, e que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea N) dos factos assentes).
- O falecido assinou o termo de consentimento junto aos autos a fls. 98, de cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea O) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- Para verificar o estado das varizes, o médico cirurgião do Hospital da Ré, Dr. E, mandou tirar angiografia às pernas da vítima (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- A radiografia das varizes crónicas podia ser feito pelo método ultrasónico, contretamente o designado Onda Ultrasónica Côr tipo-B, mediante visualização ou filmagem directas (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- O qual não oferece perigo para a vida e saúde do doente (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- Ou ser feito pelo método de IODINA, mediante injecção de contraste e fotografia radio que permitia ver o estado das veias e varizes (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- O método da IODINA usa produto farmacológico OMNIPAQUE (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- O contraste com este produto pode provocar reacção alérgica (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Pode matar o doente na proporção de 6/100.000 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
- É necessário testar previamente o produto no doente para se verificar se a reacção do doente ao produto permite ou não usar esse contraste e método (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- Para tanto, antes da injecção da quantidade OMNIPAQUE necessário ao contraste, é necessário proceder previamente ao referido teste de IODINA (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
- Se o resultado do teste for negativo é que se pode executar a injecção com a quantidade necessária ao contraste (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- O Hospital Kiang Wu e seus médicos e radiologistas escolheram o método da IODINA com uso do produto OMNIPAQUE (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- Depois de injectado o produto 《Omnipaque 300mg/ml x 50 ml》, pelo método da IODINA, na quantidade necessária ao contraste, este provocou no doente umareacção alégica (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
- Que lhe casou a morte (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
- Teste prévio de IODINA de reacção alérgica foi realizado por via oral (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
- E foi feito apenas com 10% de IODINA (resposta ao quesito da 18Aº da base instrutória).
- Pela enfermeira F (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
- E não foi eficaz na detecção de alergia (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
- A morte da vítima foi antecedida de cerca de 10 minutos de sofrimento (resposta ao quesito da 22º da base instrutória).
- Às 16:30, a vítima sentiu a boca e os quatro membros ficarem entorpecidos bem como ficou a suar profusamente (resposta ao quesito da 23º da base instrutória).
- Foi aplicado ao doente máscara de oxigénio para respirar, infusão de fluído e injecção intravenosa de adrenalina ao mesmo tempo que levavam o doente para o serviço de emergência com máscara de oxigénio (resposta ao quesito da 24º da base instrutória).
- Às 16:35, o doente entrou em letargia, parou de respirar por si próprio, pupilas enlargadas a 5mm, sem reacção à luz e o electro-gráfico do coração a ficar ligeiro (resposta ao quesito da 25º da base instrutória).
- Deram-lhe uma injecção intravenosa de 1mg de adrenalina e 3 choques eléctricos mas o bater do coração não estabelizou (resposta ao quesito da 26º da base instrutória).
- Às 16:48 chegou o director do hospital e foi submetido a outros tratamentos (resposta ao quesito da 29º da base instrutória).
- Às 18:46 desse dia 17 de Julho de 2004, o doente parou de respirar, ficou sem pulsação, pupilas enlargadas para 7mm, sem reacção à luz e clinicamente certificado como morto (resposta ao quesito da 30º da base instrutória).
- Durante os primeiros 10 minutos desse processo de deterioração, a vítima ainda se encontrava consciente (resposta ao quesito da 31º da base instrutória).
- À data da morte do marido, a 1ª Autora tinha 53 anos de idade (resposta ao quesito da 35º da base instrutória).
- Antes de ordenar a realização da angiografia, o médico cirurgião E questionou o falecido no sentido de apurar se o mesmo era alérgico à substância de contraste ou a quaisquer outras (resposta ao quesito da 36º da base instrutória).
- Tendo obtido do falecido a informação de que o mesmo não padecia de quaisquer alergias (resposta ao quesito da 37º da base instrutória).
- Antes do injectar o produto “OMNIPAQUE 300ml/ ml x 50ml, pelo método de IODINA, o falecido afirmou ao técnico de radiologia que já tinha sido submetido a exames de igual natureza em Hong Kong (resposta ao quesito da 40º da base instrutória).
- E que os mesmos não lhe tinham causado qualquer reacção alérgica (resposta ao quesito da 41º da base instrutória).
- A injecção da substância de contraste (omnipaque) foi administrada às 16 horas e vinte minutos do dia 17 de Julho de 2004 ao falecido (resposta ao quesito da 42º da base instrutória).
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III – Fundamentos:
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Nos presentes autos, está em causa a morte do marido/pai dos Autores que foi assistido por um médico da Ré o qual, perante a doença de que padecia aquele e a fim de obter um diagnóstico mais detalhado da sua situação, determinou a realização de uma angiografia (radiografia com injecção de substância de contraste) na sequência da qual o marido/pai dos Autores veio a falecer.
Entendem os Autores que a morte do seu marido/pai foi causada culposamente pelo pessoal médico da Ré que ordenou a realização e efectuou a angiografia ao marido/pai dos Autores. Segundo os mesmos, em virtude dos antecedentes patológicos do seu marido/pai, o mesmo pessoal médico devia ter optado pela realização da ecografia dúplex (onda ultra-sónica cor tipo-B) a qual não oferece perigo para a vida e saúde do doente. Além disso, alegam que, antes da realização da angiografia, o referido pessoal devia ter feito um teste de reacção alérgica à substância de contraste que foi utilizada o que permitiria detectar atempadamente que o marido/pai dos Autores iria ter reacção alérgica de que veio a falecer. Finalmente, defendem que, mesmo que tivesse feito um teste de reacção alérgica à substância de contraste que foi utilizada antes da realização da angiografia, o mesmo não era o adequado por ter sido efectuado pela via bocal.
A Ré contesta a presente acção alegando que a angiografia era o método apropriado para o diagnóstico da situação do marido/pai dos Autores apesar da probabilidade baixa (0.00066%) de morte do paciente; que antes da realização da angiografia, o seu pessoal médico obteve informação do próprio doente relativo à possibilidade de qualquer reacção alérgica tendo concluído pela negativa e procedeu ao teste prévio cujo resultado não acusava reacção alérgica por parte do marido/pai dos Autores; e que o teste por via bocal, utilizado no presente caso, era o meio eficaz para se detectar eventuais reacções alérgicas e há longos anos utilizado em Macau sem registo de resultados insatisfatórios.
Nos termos do artigo 493º, nº 1, do CC, “Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.”
Estando assente que o pessoal médico que assistiu o marido/pai dos Autores e que efectuou a engiografia pertence ao estabelecimento hospitalar explorado pela Ré, eventual responsabilidade civil deste pessoal em virtude dos referidos actos torna a Ré objectivamente responsável pela indemnização dos respectivos danos. Pelo que, é de analisar se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil a cargo do referido pessoal médico.
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Provou-se que a morte do marido/pai dos Autores foi antecedida de cerca de 10 minutos de sofrimento e foi causada pela reacção alérgica à substância de contraste injectada aquando da realização da angiografia e que esse exame foi determinada e efectuada pelo pessoal médico da Ré. Assim, é manifesto que há danos (morte do marido/pai dos Autores e sofrimento que este teve antes da morte), facto (injecção da substância de contraste para a realização da angiografia) e nexo de causalidade entre os danos e o facto. Já quanto à verificação da ilicitude do facto e da culpa exige-se mais detalhada análise. Para o efeito e tendo em conta o alegado pelas partes, segue-se a análise de cada um dos argumentos invocados pelos Autores.
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Adequação do método diagnóstico utilizado
Para fundamentar o entendimento por si sufragado, os Autores alegam que, por virtude dos antecedentes patológicos do seu marido/pai, era de prudência usar a ecografia dúplex porque não oferecia perigo para a vida e saúde do examinado enquanto que a angiografia podia provocar reacção alérgica que, por sua vez, podia matar o examinado.
A provar-se o alegado pelos Autores, pode eventualmente concluir-se que a opção pela angiografia foi negligente e, como tal, ilícita e culposa a actuação do pessoal médico da Ré.
Feito o julgamento da matéria de facto, foi dado como provado que a ecografia dúplex não oferecia perigo para a vida e saúde do doente e que a angiografia podia provocar reacção alérgica que podia matar na proporção de 6/100.000. A isso acresce que ficou assente que, para o diagnóstico da situação clínica do marido/pai dos Autores, qualquer dos métodos podia ser utilizado. Não ficou, porém, provado que era de prudência optar pela ecografia dúplex face aos antecedentes do marido/pai dos Autores, como alegam estes.
Será que com base nisso podemos concluir pela responsabilidade que os Autores assacam à Ré?
No âmbito da responsabilidade médica, está há muito assente que a obrigação assumida pelo médico é meramente de meios e não de resultado. “Quando A vende a B certa coisa, obriga-se naturalmente a transferir para o comprador o domínio da coisa vendida (a conseguir que a propriedade se transfira para a titularidade deste): é obrigação de resultado. O mesmo se diga quando o devedor se obriga a limpar um fato, a reparar um veículo, a realizar uma obra. Quando, porém, o médico se obriga a tratar do enfermo ou o advogado a patrocinar certa causa, nem o médico se compromete a curar o cliente, nem o advogado a ganhar a questão: um e outro se obrigam apenas a empregar a diligência requerida para obter a cura do doente ou defender os legítimos interesses do mandante, á semelhança do que sucede com o depositário, relativamente á guarda e conservação da coisa depositada. Seriam obrigações típicas de meios. ...” – cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. 1, 7ª edição, Almedina Coimbra, 1991, pg 87, (sublinhado nosso).
Retomando os factos acima referidos, constata-se que foi adoptado um método que conseguiria diagnosticar a situação clínica do marido/pai dos Autores. Não obstante o método utilizado envolver a possibilidade de morte na proporção de 6/100.000, nada ficou provado acerca da inadequação desse meio. Uma vez que o médico está apenas adstrito ao dever de diligência na adopção do método de diagnóstico e de tratamento apropriado para o caso concreto do paciente e que essa adequação não consiste obviamente na total exclusão de perigo para a saúdo ou vida do doente, na falta de indicação de que o meio é inadequado, não se pode dizer que o pessoal médico da Ré foi negligente na opção feita.
Aliás, ficou também provado que antes de ordenar a realização da angiografia, o médico cirurgião E tinha questionado o falecido no sentido de apurar se o mesmo era alérgico à substância de contraste ou a quaisquer outras (resposta ao quesito da 36º da base instrutória) tendo obtido do falecido a informação de que o mesmo não padecia de quaisquer alergias (resposta ao quesito da 37º da base instrutória), e antes do injectar o produto “OMNIPAQUE 300ml/ ml x 50ml, pelo método de IODINA, o falecido tinha afirmado ao técnico de radiologia que já fora submetido a exames de igual natureza em Hong Kong (resposta ao quesito da 40º da base instrutória) e que os mesmos não lhe causara qualquer reacção alérgica.
Perante esse quadro, não se pode dizer que o pessoal médico da Ré foi negligente na opção da angiografia a fim de diagnosticar a situação clínica do marido/pai dos Autores. Fica então excluída a ilicitude e o carácter culposo dessa opção o que torna impossível assacar qualquer responsabilidade ao mesmo pela escolha da angiografia.
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Teste prévio à realização da angiografia
Alegam os Autores que o exame a que foi submetido o seu marido/pai devia ser precedido de um teste de reacção alérgico à substância utilizada para verificar se o seu marido/pai podia ou não ser examinado pelo método optado. Porém, tal teste não foi feito.
A ser verdade isso, o pessoal médico foi muito negligente durante o processo da realização da angiografia por não ter adoptado o procedimento devido na condução do exame o que pode tornar o acto ilícito e culposo.
Resulta dos factos provados que, efectivamente, o teste alegado pelos Autores era necessário para ver se o pai/marido dos Autores era alérgico ou não à substância utilizada. Não ficou, contudo, provado que tal teste não tinha sido feito. Antes, provou-se que, antes do exame propriamente dito, foi feito o teste de reacção alérgica pela via bocal o qual não foi eficaz na detecção de alergia por parte do marido/pai dos Autores.
Pelo que, não se pode assacar qualquer responsabilidade ao pessoal médico da Ré por falta de realização do teste prévio, pois tudo indica que foi adoptado o procedimento correcto sendo a angiografia apenas feita depois de o teste não acusar perigo para a saúde e vida do marido/pai dos Autores.
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Adequação do teste prévio optado
Entendem os Autores que o teste de reacção alérgico pela via bocal não era o método adequado porque não permitia uma averiguação e previsão exacta da reacção que o seu marido/pai iria ter se fosse injectada a dose de substância de contraste necessária ao exame. Alegam os Autores que o pessoal médico da Ré devia ter optado pelo teste por meio de injecção por ser o meio mais directo e mais seguro que permitiria uma previsão mais próxima da reacção do paciente em contraste com o teste pela via bocal que, pelas deficiências acima referidas, se encontrava praticamente em desuso.
A provar-se o alegado pelos Autores, pode-nos levar a concluir que houve negligência na opção do teste de reacção alérgico o que pode tornar ilícita e culposa esta escolha.
Conforme os factos assentes, foi, de facto, adoptado o teste pela via bocal. Porém, nada do alegado pelos Autores relativo às deficiências e desuso do teste escolhido ficou provado.
Pelo que, aplicando novamente ao que foi já dito anteriormente quanto à obrigação dos médicos como sendo a de meios, não se pode considerar ilícita e culposa a opção do teste pela via bocal por nenhuma negligência se verifica nesta opção.
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Como flui do acima exposto, os factos dados por provados não permitem que se conclua que houve negligência nas opções feitas pelo pessoal médico e na condução do exame escolhido. Assim, apesar de a morte di marido/pai dos Autores e os sofrimentos tidos pelo mesmo advierem efectivamente da substância de contraste injectada no seu corpo para a realização da angiografia, não se pode fazer impender sobre este pessoal e, em consequência, sobre a Ré qualquer obrigação de indemnizar porque a actuação daquele não pode ser qualificada como ilícita e culposa. Trata-se de uma situação em que o risco corre por conta do próprio lesado porque o “lesante” usou a diligência exigida quando optou pelos meios para cumprir a sua obrigação e quando efectivamente fez a prestação.
Pelo exposto, improcedem os pedidos formulados pelos Autores.
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IV – Decisão (裁 決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga a improcedente a acção e, em consequência, absolve a Ré, Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu, dos pedidos formulados pelos Autores A, B e C,
Custas pelos Autores.
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Fixam-se em MOP$3,000.00 (três mil patacas) a título de honorários a favor do patrono dos Autores, a suportar pelo GPTUI (artigo 29o do DL no 41/94/M, de 1 de Agosto, em conjugação com o no 9 das Notas anexas à Tabela aprovada pela Portaria no 265/96/M, de 28 de Outubro).
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Notifique e registe.
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據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,駁回原告A、B及C之請求,開釋被告鏡湖醫院慈善會。
訴訟費用由各原告承擔。
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將原告之律師代理費訂為澳門幣叁仟圓正,由終審法院院長辦公室支付 (見8月1日《第41/94/M號法令》第29條及10月28日《第265/96/M號訓令》)。
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依法作出通知及登錄本判決。

Não se conformando com o decidido, vieram os Autores recorrer do mesmo concluindo e pedindo que:

1ª.A angiografia que o hospital e pessoal da Ré mandaram tirar às varizes das pernas da vítima podia ser feita pelo método ultrasónico, concretamente o designado Onda Ultrasónica Côr tipo-B, mediante visualização ou filmagem directas OU ser feita pelo método de Iodina, mediante injecção de contraste e fotografia radio que permitia ver o estado das veias e varizes;
2ª não vem provado que entre ambos os métodos haja diferença de qualidade ou eficácia quanto à obtenção da angiografia e diagnóstico;
3a mas vem provado que o primeiro dos métodos não oferece perigo para a vida e saúde e, quanto ao segundo, provado que usa produto omnipaque e que o contraste com este produto pode provocar reacção alérgica e matar o doente na proporção de 6 doentes em cada 100 mil;
4a-o Hospital da Ré e seus médicos e radiologistas escolheram o método da Iodina com uso de produto omnipaque o qual, depois de injectado "Omnipaque 300mg/mlx50ml", pelo método da Iodina, na quantidade necessária ao contraste, provocou no doente uma reacção alérgica que lhe causou a morte;
5ª o hospital da Ré e seu referido pessoal escolheu e pôs em prática tal meio ou método, livre e voluntàriamente, bem sabendo que o mesmo podia matar o paciente, na referida proporção, como efectivamente matou;
6a-a obrigação do médico não é de resultado mas sim a obrigação de aplicar os meios ou métodos que tiver ao seu alcance que, sob pena de ilicitude, melhor possam defender a vida e saúde do paciente e atingir o fim pretendido - uma angiografia às varizes das pernas - ainda que o resultado venha a frustrar-se, como efectivamente se frustrou por o doente ter morrido em consequência do meio ou método adoptado;
7a-no caso dos autos, os médicos e radiologistas, apesar de terem ao alcance um método (que preteriram) adequado à obtenção da angiografia com salvaguarda da vida e saúde, optaram precisamente pelo meio ou método que embora sendo adequado à obtenção da angiografia às varizes não só não era adequado (como não foi) à salvaguarda da vida e saúde (e o outro era) como até, muito pior, era ele próprio portador do perigo absolutamente certo e seguro de matar na referida proporção de 6/100.000, como efectivamente matou;
8ª-De acordo com o art. 479 do C. Civil, a Ré e seu pessoal tinham por força da lei e da profissão o especial dever de escolher e pôr em prática meios ou métodos que, segundo o estado de conhecimentos da medicina (como era o caso) e estando ao seu alcance (como era o caso), garantam a salvaguarda da vida e saúde dos doentes em vez de os omitir ou preterir em benefício doutro que, pré-sabidamente, o estado de conhecimentos da medicina e deles (como era o caso) indicavam que não garantia e até mata na referida proporção de 6/100.00 – cit. art° 479°,70°,71° nº 4 e 332° nº 2, todos do C. Civil;
9a-E,por isso, provadamente proibida a Ré e seu pessoal de preterir, como voluntàriamente desprezaram e preteriram, o método que não oferecia perigo bem como proibidos de, sem sua vez, escolherem, como voluntàriamente escolheram e puseram em prática, o meio ou método pré-sabidamente indicado na medicina e farmacologia como assassino na referida escala de 6/100.000 e, consequentemente, cumprido ficou o ónus de prova dos AA (art. 480° nº 1 do C. Cicil) da responsabilidade, ilicitude e culpa da Ré e seu pessoal - art. 480° nº 1 do C. Civil, conjugado com os arts. 480° nº 2, 70°, 71 ° nº 4, 332° nº 2, 477° nº 1, 479°, 480° e 493° nº 2, todos do C. Civil -, salvo eventual causa de exclusão da ilicitude e da culpa que justifique tal opção perigosa em vez da inofensiva;
10ª só não existiriam tais provadas ilicitude e culpa se o estado de conhecimentos e experiência da medicina ainda não indicassem esse método como assassino (mas já indicavam), se se mostrassem provadas razões que justificassem que só esse meio ou método podia alcançar o pretendido escopo da angiografia às varizes (que não ficou) ou ter ficado pelo menos provado que, embora não sendo único (como provado foi que não é), ser pelo menos aquele que de entre os dois melhor o podia alcançar (que não ficou nem alcançou. Ficou provado que tanto um como o outro a podiam igualmente alcançar); ou que a essa opção foram obrigados v.g. pelo doente ou outras circunstâncias igualmente excludentes das referidas ilicitude e da culpa;
11ª-as justificações referidas na conclusão anterior (que tornariam licitos o meio ou método optado e posto em prática) constituem matéria de exclusão da ilicitude e culpa e, por isso, matéria de defesa cuja prova cabe à Ré e não aos AA - arts. art. 334° e 335° n° 2 do C. Civil, ex vi dos cit. art. 37° do C. Penal e arts. 70°, 71 ° n° 4. 332 n° 2 do C. Civil -, salvo existindo inversão do ónus da prova art. 337° do C. Civil;
12ª-no caso dos autos, não existe inversão do ónus da prova (art. 337° do CC) pois não são os AA, mas sim a R e seu pessoal, quem está na posse da certificada e reconhecida competência técnica e clínica de prova sobre tal hipotética justificação, não são os AA que sonegam ou impossibilitam tal prova, nada na lei determina que sejam os AA a realizá-la, nem existe presunção legal, dispensa, liberação ou convenção válida nesse sentido, continuando, por isso, a caber à Ré e não aos AA o ónus da prova que lhe impõem os referidos arts. art. 334° e 335° n° 2 do C. Civil, ex vi dos cit. art. 37° do C. Penal e arts. 70°, 71 ° n° 4. 332 n° 2 do C. Civil;
13ª-o consentimento que foi dado pela vítima não pode ser considerado consciente nem relevante pois a vítima não tinha conhecimentos técnicocientíficos que lhe permitissem saber qual era o método que melhor servia para a radiografia: - se seria o que lhe foi escolhido pela Ré e ele consentiu e o matou; ou se seria o inofensivo; ou seriam iguais. Quem se encontra reconhecida e certificada com competencia técnico-científica necessária para o efeito é a Ré e seu pessoal e não a vítima.
14a-e além disso, o direito à vida não é um direito disponivel e por isso o referido consentimento da vítima, mesmo que esta quisesse morrer e nessa conformidade tivesse conscientemente consentido (ou até mesmo optado, que não optou) pelo método que a podia matar como matou, em vez do outro que não oferecia perigo, não seria válido (art. 37° do Cod. Penal e art. 332º n° do C. Civil) e, consequentemente, o consentimento dado não exclui a ilicitude - art. 332° n° 2 do C. Civil, conjugado com o art. 37° do C. Penal e arts. 480° nº 2, 70°, 71 ° nº 4, 332° nº 2, 477° nº 1,479°,480° e 493° nº 2, todos do C. Civil;
15ª- concluída e demonstrada assim existência da ilicitude e culpa da escolha e prática do método ou meio fatal utilizado, torna-se irrelevante saber se R. e seu pessoal fizeram ou não teste ao meio que présabidamente sabiam poder passar no teste e matar, na referida proporção de 6/100.000, como efectivamente passou e veio a matar;
16ª-apesar disso, e da já coneluída e demonstrada ilicitude e culpa do meio optado e aplicado, também foram negligentes no teste pois sabiam que ele era falível, como efectivamente veio a ser, e, apesar disso, não se deram ao cuidado de testagem mais rigorosa tal como repetição, maior dosagem, ou testagem na veia, ou qualquer outro tipo de cuidados suplementares destinados a garantir toda a eficácia possível perante um caso que pré-sabidamente se sabia que a dosagem total a usar e efectivamente usada no contraste radiográfico (300mg/mlx50ml - resposta ao qesito 16° e 40°) matava, como efectivamente matou;
17a-também no teste houve, assim, pois, manifesta negligência confiando na sorte ou azar de que, perante tão baixa estatística de mortes, também não seria desta vez que estavam perante teste ineficaz dum caso de alergia e morte, bem sabendo eles que não podiam confiar pois, como supra referido, sabiam que essa confiança podia levar à morte do doente como efectivamente levou.
18ª-razão pela qual também por aqui não há exclusão da ilicitude e culpa, padecendo a sentença recorrida, por isso e demais eoncluído, de ilegalidade por errada aplicação das normas legais apontadas, razão pela qual deve ser revogada e substituída por deeisão que eondene no pedido;
19ª-finalmente, ao não se ter dado por provado o sofrimento moral da viúva, dos filhos e o funeral (quesitos 21º, 32°, 33° e 34°) houve manifesto erro de julgamento pois, à falta de outras provas, a experiência comum, os demais factos provados e perante as queixas e diligências patenteadas nos autos feitas pelos AA junto do Hospital, serviços de saúde, tribunais e demais autoridades documentados nos autos, resulta por demais à evidência o seu sofrimento e inconformismo pela morte dos autos e que a não deixaram sem funeral.
20a-Razão esta pela qual deve ser suprido tal erro dando tais factos por provados e, nessa conformidade, para lá da indemnização pelo provado dano morte (Mop$800.000,00) e sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a morte (Mop$200.000,00), ser a Ré também condenada na pedida indemnização relativa ao sofrimento da A. viúva (300.000,00) e AA filhos (150.000,00, cada) e funeral que lhe fizeram (95.620,00), constantes de tais quesitos.
Termos em que se pede seja dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por decisão que condene a Ré no pedido.
Pois só assim se fará JUSTIÇA!

Respondeu e concluiu a Ré nos termos seguintes pugnando pela improcedência do recurso dos Autores:

I. Como sustentou e bem o acórdão recorrido "no âmbito da responsabilidade médica, está há muito assente que a obrigação assumida pelo médico é meramente de meios e não de resultado" pelo que, atenta toda a prova produzida nos autos e a lei aplicável in casu, o Tribunal a quo evidentemente só poderia ter chegar à conclusão de que, no caso dos autos, "trata-se de uma situação em que o risco corre por conta do próprio lesado porque o "lesante" usou a diligência exigida quando optou pelos meios para cumprir a sua obrigação e quando efectivamente fez a prestação" (vide acórdão de fls. 189 a 197 dos autos).
II. Os Recorrentes, nas suas alegações, não apresentam qualquer fundamento relevante, limitando-se a impugnar a decisão de direito, com recurso a argumentos que já haviam utilizado na sua p.i., bem como, a descontextualizar e distorcer matéria de facto que foi dada como assente para desse modo retirarem conclusões que não podem nem têm qualquer apoio na lei ou na jurisprudência aplicáveis in casu.
III. Basicamente, no seu recurso, os Recorrentes contestam a decisão de direito do Tribunal a quo alegando, que em face da matéria de facto provada nos autos a Recorrida, por via do seu pessoal médico, é responsável, com culpa (no grau de negligência ou até no grau de dolo eventual), pela morte do Sr. D.
IV. Essa responsabilidade que imputam à Recorrida, segundo sustentam, deve-se ao facto do pessoal médico desta ter optado voluntariamente pela realização ao falecido de uma angiografia pelo método da lodina que podia matar ao invés de terem optado por uma ecografia dupléx que comprovadamente não oferecia perigo para a vida e saúde do paciente e, bem assim, de terem feito um teste insuficiente a este método (negligência).
V. Porém, dos factos provados, e não impugnados pelos Recorrentes no presente recurso, resultou assente que qualquer um dos dois métodos referidos acima poderia ter sido utilizado, embora um deles, o método iodina, poderia provocar uma reacção alérgica com um risco de morte do paciente, numa proporção de 6/100.000.
VI. Contrariamente ao que os Recorrentes pretende fazer crer nem sequer ficou provado que a Recorrida teria ao seu dispor ambos os métodos de diagnóstico.
VII. Não há a mínima dúvida, face à prova produzida, é que o método utilizado era um método adequado, segundo a prática médica, ao diagnóstico a efectuar às varizes (vide resposta ao quesito 4° da base instrutória).
VIII. Não se provou que teria sido mais prudente optar pela realização ao falecido de uma ecografia dúplex (vide resposta negativa ao quesito 15° da base instrutória).
IX. Acresce-se que, conforme resulta dos autos, antes de efectuar o exame de diagnóstico pelo método da iodina, o pessoal médico da Recorrida tomou todas as precauções necessárias e exigíveis (vide resposta aos quesitos 36°, 37° e 38° da base instrutória).
X. Provou-se também que o falecido assinou um "termo de consentimento informado" do qual constavam os riscos associados ao exame em causa (vide alínea O) dos factos assentes) e, bem assim, que o pessoal médico realizou um teste prévio de reacção alérgica àquela substancia de contraste ao falecido, tendo o mesmo dado resultado negativo.
XI. Não ficou provado que o referido teste prévio de reacção alérgica à substância de contraste efectuado pela via oral, se encontrasse em desuso ou tampouco que tivesse sido deficientemente conduzido pelos médicos da Recorrida (cfr. resposta negativa aos quesitos 13° e 14° da base instrutória).
XII. Assim, dos factos provados nos autos resultou, claramente, que o dever de diligência dos médicos da Recorrida na adopção e realização do diagnóstico ao paciente foi observado escrupulosamente e que foram respeitadas as regras da legis artis médica tendo em conta os conhecimentos científicos existentes em 2004, não havendo pois qualquer ilícito na actuação do pessoal médico da Recorrida.
XIII. Foram, de resto, as conclusões a que chegaram, quer o Centro de Avaliação de Queixas dos Serviços de Saúde, quer o Ministério Público, nas investigações que estas entidades efectuaram à morte do falecido (cfr. alíneas M) e N) dos factos assentes).
XIV. Como é realçado na sentença em crise, e os Recorrentes também admitem, a obrigação médica não é uma obrigação de resultado, mas sim de meios, e qualquer tratamento médico implica sempre uma certa componente de risco para saúde do paciente, por mais reduzidas que sejam as suas hipóteses de verificação (como era o caso).
XV. E essa obrigação de meios por parte do pessoal médico da Recorrida foi cumprida como resulta amplamente provado.
XVI. Foi essa a convicção do Tribunal a quo, baseada em toda a prova testemunhal e documental produzida nos autos, pelo que tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova consagrada no artigo 558° do CPC, e que os Recorrentes (embora sem o fazerem directamente) pretendem colocar em causa, porque não se conformam com a decisão tomada.
XVII. Ora, o Tribunal de Segunda Instância não pode sindicar a convicção do colectivo de primeira instância, formada tendo em conta a livre apreciação da prova, nem pode alterar a decisão de facto fora das situações previstas no artigo 629º do CPC que aliás os Recorrentes nem alegam.
XVIII. Quanto à alegada invalidade do consentimento prestado pelo falecido, não tendo impugnando os Recorrentes a validade do termo de consentimento informado assinado pelo falecido e pelo médico da Recorrida ou tão pouco reclamado da sua especificação (cfr. alínea O) dos factos assentes) no momento processual próprio e nos termos em que a lei o permitia, não podem vir agora, em sede de recurso, impugnar a validade desse consentimento.
XIX. Ainda assim, a verdade é que a prestação de um consentimento informado por parte de um paciente decorre de uma exigência legal do artigo 150º do Código Penal, cuja não obtenção constitui um crime por parte do pessoal médico, como resulta do artigo 150º do Código Penal conjugado com o artigo 144º e 151º do mesmo Código.
XX. Ora, o falecido, obviamente, não deu o seu consentimento para morrer ou para ser assassinado como alegam os Recorrentes, mas apenas consentiu, no âmbito da sua esfera de liberdade e de autodeterminação sobre a sua vida e corpo, em ser sujeito a uma intervenção médica, adequada segundo a prática médica, que comportava um risco associado de morte após ter sido devidamente esclarecido, pelo pessoal médico da Recorrida, desses mesmos riscos.
XXI. O que está em causa, é pois, o consentimento a que se refere o artigo 151º do Código Penal, que se justifica pela tutela da dignidade da pessoa humana, o que implica o respeito pela sua liberdade individual no que se refere ao corpo e à vida.
XXII. Assim, não há qualquer ilicitude ou irregularidade no consentimento obtido do falecido que o torna inválido, sendo antes uma imposição legal, para que o falecido, esclarecido quanto aos riscos e consequências da intervenção a que ia ser submetido, pudesse decidir pela sua aceitação ou não, tendo sido o que sucedeu no caso vertente.
XXIII. Quanto à alegado erro de julgamento do Tribunal a quo, ao não ter sido dado como provados nenhum dos factos nos quais assentam os pedidos indemnizatórios dos Recorrentes não tem qualquer fundamento legal o alegado pelos mesmos quanto à existência de um pretenso erro de julgamento no acórdão em crise.
XXIV. Por todo o exposto se conclui, que nada há a apontar ao acórdão recorrido.
Termos em que, considerando tudo o exposto, deve, em consequência, ser julgado improcedente o recurso interposto pelos Recorrentes, por totalmente infundado, mantendo-se na íntegra a douta decisão contida no acórdão proferido pelo Tribunal a quo e que julgou improcedente todos os pedidos formulados contra a Recorrida assim se fazendo dessa forma a habitual boa e sã
JUSTIÇA!

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Assim, de acordo com o vertido nas conclusões de recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:

1. Do ónus da prova;

2. Da escolha e uso para tirar a angiografia, da adequação do meio escolhido e da relevância do consentimento;

3. Da negligência no teste de detecção da alergia; e

4. Da indemnização

Antes de entrar na análise das questões, convém relembrar a matéria de facto que ficou provada na primeira instância:

Da Matéria de Facto Assente:
- A Ré é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa devidamente registada na Direcção dos Serviços de Identificação de Macau sob o n.º 348 (vide doc. 1 junto com a p.i.) (alínea A) dos factos assentes).
- A qual, devidamente habilitada pela Licença n.º001 e Alvará n.º001 emitidos pela Direcção dos Serviços de Saúde de Macau, exerce actividade hospitalar no estabelecimento denominado “Hospital Kiang Wu”, sito na Estrada do Repouso, n.ºs 33-33C e n.º 35, em Macau (vide doc. 2 junto com a p.i.) (alínea B) dos factos assentes).
- Através do qual presta serviços médicos e hospitalares em Macau aos paciente interessados, mediante retribuição dos serviços prestados pelo montante dos preços em vigor nesse Hospital (alínea C) dos factos assentes).
- E em cuja actividade emprega sob sua autoridade e direcção os médicos e demais pessoal hospitalar necessário, nomeadamente os médicos radiologistas e enfermeira que intervieram nos factos, aludidos na matéria seleccionado nos factos assentes e na base instrutória (alínea D) dos factos assentes).
- A 1ª Autora, titular do BIRM n.º XXX, casou em 29 de Agosto de 1981 com D, titular do BIRM n.º XXX, ora sinistrado dos autos (Cfr. doc. 3, 4 e 5 junto com a p.i.) (alínea E) dos factos assentes).
- Tendo do casamento nascido como únicos filhos, o 2º e 3º Autores: B e C, titulares dos BIRM n.º XXX e BIRM n.º XXX respectivamente, e cujas fotocópias (cfr. doc. n.º 6 e 7, junto com a p.i.) (alínea F) dos factos assentes).
- Dfaleceu em 17 de Julho de 2004 (cfr. doc. n.º 8 junto com a p.i.) (alínea G) dos factos assentes).
- À data da morte e desde há longa data, o D sofria de varizes crónicas na perna, gastrite crónica activa e degeneração da espinha lombar (alínea H) dos factos assentes).
- E para cujas vigilância e tratamento médicos era paciente do Hospital da Ré Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu (alínea I) dos factos assentes).
- Em 16 de Julho de 2004, a vítima D foi ao Hospital Kiang Wu, departamento de cirurgia, para verificação e tratamento das varizes da sua perna (alínea J) dos factos assentes).
- A vítima tinha vários antecedentes patológicos que constavam dos registos no Hospital, nomeadamente as referidas varizes crónicas nas pernas, gastrite crónica activa, degeneração da espinha lombar (alínea K) dos factos assentes).
- Os serviços de Saúde realizaram à autópsia da vítima, in Proc SML: 041/2004, Ref. Inq. 2094/2004 (Inq. N.º 6093/2004, do M.P.), cuja cópia de relatório aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea L) dos factos assentes).
- O centro de Avaliação de Queixas relativas a Actividades de Prestação de cuidados de Saúde dos Serviços de Saúde, na sequência de uma queixa apresentada pela 1ª Autora, Processo n.º 037/CAQ/04, realizou um inquérito sobre o falecimento do seu marido, de cujo resultado consta na sua resposta n.º 048/OUT/CAQ/04 dirigida à 1ª Autora, de cujo teor se dá aqui integralmente reproduzido (alínea M) dos factos assentes).
- A morte do falecido foi objecto de investigação por parte do Ministério Público, no âmbito dos autos de Inquérito nº 6093/2004, os quais foram aquivados por decisão de 20 de Setembro de 2005, de cujo teor consta da certidão junta aos autos a fls. 126, e que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea N) dos factos assentes).
- O falecido assinou o termo de consentimento junto aos autos a fls. 98, de cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea O) dos factos assentes).
***
Da Base Instrutória:
- Para verificar o estado das varizes, o médico cirurgião do Hospital da Ré, Dr. E, mandou tirar angiografia às pernas da vítima (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- A radiografia das varizes crónicas podia ser feito pelo método ultrasónico, contretamente o designado Onda Ultrasónica Côr tipo-B, mediante visualização ou filmagem directas (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- O qual não oferece perigo para a vida e saúde do doente (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- Ou ser feito pelo método de IODINA, mediante injecção de contraste e fotografia radio que permitia ver o estado das veias e varizes (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- O método da IODINA usa produto farmacológico OMNIPAQUE (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- O contraste com este produto pode provocar reacção alérgica (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Pode matar o doente na proporção de 6/100.000 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
- É necessário testar previamente o produto no doente para se verificar se a reacção do doente ao produto permite ou não usar esse contraste e método (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- Para tanto, antes da injecção da quantidade OMNIPAQUE necessário ao contraste, é necessário proceder previamente ao referido teste de IODINA (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
- Se o resultado do teste for negativo é que se pode executar a injecção com a quantidade necessária ao contraste (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- O Hospital Kiang Wu e seus médicos e radiologistas escolheram o método da IODINA com uso do produto OMNIPAQUE (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- Depois de injectado o produto 《Omnipaque 300mg/ml x 50 ml》, pelo método da IODINA, na quantidade necessária ao contraste, este provocou no doente umareacção alégica (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
- Que lhe casou a morte (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
- Teste prévio de IODINA de reacção alérgica foi realizado por via oral (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
- E foi feito apenas com 10% de IODINA (resposta ao quesito da 18Aº da base instrutória).
- Pela enfermeira F (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
- E não foi eficaz na detecção de alergia (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
- A morte da vítima foi antecedida de cerca de 10 minutos de sofrimento (resposta ao quesito da 22º da base instrutória).
- Às 16:30, a vítima sentiu a boca e os quatro membros ficarem entorpecidos bem como ficou a suar profusamente (resposta ao quesito da 23º da base instrutória).
- Foi aplicado ao doente máscara de oxigénio para respirar, infusão de fluído e injecção intravenosa de adrenalina ao mesmo tempo que levavam o doente para o serviço de emergência com máscara de oxigénio (resposta ao quesito da 24º da base instrutória).
- Às 16:35, o doente entrou em letargia, parou de respirar por si próprio, pupilas enlargadas a 5mm, sem reacção à luz e o electro-gráfico do coração a ficar ligeiro (resposta ao quesito da 25º da base instrutória).
- Deram-lhe uma injecção intravenosa de 1mg de adrenalina e 3 choques eléctricos mas o bater do coração não estabelizou (resposta ao quesito da 26º da base instrutória).
- Às 16:48 chegou o director do hospital e foi submetido a outros tratamentos (resposta ao quesito da 29º da base instrutória).
- Às 18:46 desse dia 17 de Julho de 2004, o doente parou de respirar, ficou sem pulsação, pupilas enlargadas para 7mm, sem reacção à luz e clinicamente certificado como morto (resposta ao quesito da 30º da base instrutória).
- Durante os primeiros 10 minutos desse processo de deterioração, a vítima ainda se encontrava consciente (resposta ao quesito da 31º da base instrutória).
- À data da morte do marido, a 1ª Autora tinha 53 anos de idade (resposta ao quesito da 35º da base instrutória).
- Antes de ordenar a realização da angiografia, o médico cirurgião E questionou o falecido no sentido de apurar se o mesmo era alérgico à substância de contraste ou a quaisquer outras (resposta ao quesito da 36º da base instrutória).
- Tendo obtido do falecido a informação de que o mesmo não padecia de quaisquer alergias (resposta ao quesito da 37º da base instrutória).
- Antes do injectar o produto “OMNIPAQUE 300ml/ ml x 50ml, pelo método de IODINA, o falecido afirmou ao técnico de radiologia que já tinha sido submetido a exames de igual natureza em Hong Kong (resposta ao quesito da 40º da base instrutória).
- E que os mesmos não lhe tinham causado qualquer reacção alérgica (resposta ao quesito da 41º da base instrutória).
- A injecção da substância de contraste (omnipaque) foi administrada às 16 horas e vinte minutos do dia 17 de Julho de 2004 ao falecido (resposta ao quesito da 42º da base instrutória).

1. Do ónus da prova

Apesar de não ser a colocada pelos recorrentes em primeiro lugar, afigura-se-nos que devemos debruçar-nos primeiro sobre a questão do ónus da prova, pois por razões de ordem lógica, esta questão e a questão a ela ligada, isto é, a questão da natureza contratual ou extracontratual da eventual responsabilidade civil da Ré, condicionam a análise e as soluções a dar às restantes questões.

A propósito da responsabilidade civil por actos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos, o Venerando Tribunal de Última Instância já fixou jurisprudência uniformizadora no sentido de que aquela responsabilidade tem natureza extracontratual – vide Acórdão do TUI de 18JAN2006, em proc. nº 23/2005.

Todavia in casu não estão aqui em causa serviços de cuidados de saúde prestados em estabelecimentos públicos, mas sim por um estabelecimento hospitalar privado.

Importa assim apurar qual é natureza da eventual responsabilidade civil dos actos cometidos pelo pessoal deste tipo do estabelecimento no exercício das suas actividades de prestação dos serviços de cuidados de saúde e tratamentos médicos.

A este propósito, escreve João Álvaro Dias que “é hoje praticamente indiscutível que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.

Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual – in Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Coimbra, 1996, pág. 221 a 222.

No mesmo sentido defende António Henriques Gaspar que diz: “…Dúvidas não restam que juridicamente a relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual de contrato – negócio jurídico constituído por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se na comum pretensão de produzir resultado unitário, embora com um significado para cada parte” – in “A Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, Ano III, 1978, p. 341.

A nossa lei define o contrato de prestação de serviço como “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra parte certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição” – artº 1080º do CC.

Como se sabe, num contrato de prestação de serviços médicos, a obrigação assumida pelo médico é em regra uma obrigação de meios e não de resultado.

A este propósito, ensina o Prof. Almeida Costa que existem as obrigações de meios quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza” e as obrigações de resultado verificam-se “quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil – in Direito das Obrigações,, 9ª edição, pág. 971.

Assim, tratando-se de um contrato de prestação de serviços médicos ou de cuidados de saúde, o “resultado” a que se refere o citado artº 1080º do CC deve ser interpretado não no sentido de êxito da cura, mas sim a prestação de cuidados ou tratamentos com vista ao êxito da cura.

O que significa que a palavra “resultado” com que a lei define o contrato de prestação de serviço não é impeditiva de qualificar o contrato de prestação de cuidados de saúde ou de tratamentos médicos como um verdadeiro contrato.

Assim, quando se levanta a questão de responsabilidade civil contratual com fundamento no incumprimento ou cumprimento defeituoso, a prova da existência do vínculo contratual, dos danos, e do nexo de causalidade entre o ilícito contratual e os mesmos danos sempre compete ao Autor que, todavia, beneficia da presunção de culpa contida no artº 788º do CC.

Por sua vez, para se defender com sucesso, o médico contra quem foi intentada a acção tem de demonstrar ser prudente e diligente a sua actuação e que os serviços de cuidados de saúde ou de tratamentos por ele realizados são os mais indicados para a obtenção do tal “resultado” de acordo com a leges artis, por forma a ilidir a presunção de culpa contra ele estabelecida no artº 788º do CC.

Visto isto, estamos em condições para nos debruçarmos sobre as restantes questões.

2. Da escolha e uso do meio para tirar a angiografia, da adequação do meio escolhido e da relevância do consentimento

Alegaram os recorrentes que “no caso dos autos, os médicos e radiologistas, apesar de terem ao alcance um método (que preteriram) adequado à obtenção da angiografia com salvaguarda da vida e saúde, optaram precisamente pelo meio ou método que, embora sendo adequado à obtenção da angiografia às varizes, não só não era adequado (como não foi) à salvaguarda da vida e saúde (e o outro era) como até, muito pior, era ele próprio portador do perigo absolutamente certo e seguro de matar na referida proporção de 6/100.000, como efectivamente matou” – cf. a 7ª conclusão.

É verdade que ficou provado que os médicos e os radiologistas do Hospital Kiang Wu escolheram o método da IODINA com uso do produto OMNIPAQUE que pode matar o doente na proporção de 6/100.000 e que existe outro método que é a Onda Ultrasónica Côr tipo-B que sendo adequado ao mesmo fim diagnóstico, não oferece qualquer perigo para a vida e saúde do doente.

Interesse então apurar se os médicos e os radiologistas do Hospital agiram de acordo com a leges artis ou pelo contrário agiram com culpa por violação da leges artis.

Os autores, ora recorrentes, imputaram ao Réu a escolha ilícita e culposa dum meio susceptível de provocar a morte.

Para o Réu, ora recorrido, o método seguido é um método absolutamente normal e de utilização corrente no diagnóstico de varizes e não um método perigoso, comportando apenas um risco mínimo, como de resto, todos ou quase todos os tratamentos médicos cirúrgicos comportam.

Assim, urge averiguar se, ante a matéria de facto provada, os médicos e os radiologistas do Hospital cumpriram ou não o dever de informação sobre os riscos inerentes ao método que escolheram e sobre a existência de um outro método não invasivo que é a onda ultrasónica tipo-B.

Trata-se o dever de informação de um dos chamados deveres acessórios por banda do médico – Álvaro Rodrigues, in Direito e Justiça, XIV, 2000, Tomo 3, pág. 183.

Na nossa óptica, ao levar a cabo uma operação médica para fins curativos ou diagnósticos, especialmente de natureza invasiva, o médico tem o dever de informar o doente dos possíveis riscos inerentes à operação por ele escolhida ou sugerida e da existência ou não de outros meios alternativos ou sucedâneos com o mesmo ou quase o mesmo efeito curativo ou diagnóstico, assim como os possíveis riscos a estes inerentes para a saúde ou para a vida, por forma a habilitar o doente a tomar uma decisão e a prestar um consentimento efectivamente consciente e de livre vontade.
.

Ora, ficou provado que a vítima assinou o termo de consentimento junto aos autos a fls. 98, que tem o seguinte teor:




O documento, assinado pela vítima e pelo médico, evidencia que se trata de um impresso padronizado, com a menção da índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da operação diagnóstica a que o doente aceitou submeter-se para a obtenção da angiografia da sua perna esquerda.

Lido atentamente o documento, se podemos aceitar que, pelo seu conteúdo, foi dado cumprimento ao dever de informação sobre os riscos inerentes ao método que os médicos do hospital da Ré escolheram.

Já dificilmente podemos concluir que a vítima chegou a ser informada da existência, de um outro meio sucedâneo, que é o método de ondas ultrasónicas tipo B, sem risco para a saúde ou a vida, igualmente adequado a obter o pretendido efeito diagnóstico.

Pois apesar de ai constar a expressão “……我確認醫生已給我詳盡解釋…其他可供選擇的手術/診療程序的風險和併發症……” (confirmo que……pelo médico me foi dada a explicação detalhada sobre a existência de outras operações/metódos diagnósticos ou curativos disponíveis em alternativa ao escolhido e os riscos e implicações a estes inerentes …… - tradução ad hoc feita pelo relator), o certo é que o documento de per si não especifica quais são estes “outros métodos” e que nos autos nada foi alegado no sentido de à vítima terem sido dadas informações pelo pessoal do hospital da Ré sobre a existência, em alternativa, de um outro método não invasivo que é onda ultrasónica tipo-B.

Tais informações são extremamente importantes, pois, tal como sucedeu in casu, se o infeliz falecido, informado dos riscos de morte que o método escolhido comportava, soubesse a existência de um outro método, mesmo não disponível no hospital da Ré, igualmente adequado ao fim diagnóstico, mas sem qualquer perigo para a vida, ele poderia optar por esse último ou simplesmente optar por não se submeter ao método escolhido pelo pessoal do hospital da Ré.

A falta ou a insuficiência dessas informações in casu fez com que o infeliz falecido ficasse impedido de exercer a sua liberdade na opção de um método não invasivo, adequado e sem risco para a saúde ou a vida.

Contra isto nem se diga que faltando os necessários conhecimentos da medicina, o doente não sabe escolher o melhor método, uma vez que em última análise, é ao próprio doente cabe dispor da sua saúde, até da sua vida, consentindo ou não na submissão ao tratamento ou ao processo diagnóstico com vista ao tratamento.

Nem se pode argumentar que como não ficou provado nos autos que o método da onda ultrasónica era disponível no hospital da Ré, os médicos e radiologistas não podiam proporcionar o outro meio seguro, pois a não existência desse meio seguro no hospital da Ré não quer dizer que era indisponível em outros estabelecimentos hospitalares da RAEM ou em outra parte do mundo. Assim, mesmo que não fosse disponível no hospital da Ré, o doente poderia optar por submeter-se ao tal processo sem risco em outro sítio ou simplesmente recusar-se a um meio comportando risco para a sua vida.

De facto, o consentimento pressupõe sempre o conhecimento cabal dessas informações, de outro modo, o consentimento não poderia ser válido nem ter a virtualidade de excluir ilicitude de uma operação em si ilícita por constituir uma ofensa à integridade física ou põe em perigo a vida do doente.

Não tendo sido integralmente cumprido o dever de informação, embora acessório, que impende sobre os médicos e radiologistas do hospital da Ré, há lugar ao cumprimento defeituoso culposo por violação da leges artis.

Ensina o Prof. Antunes Varela que “agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia como podia ter agido de outro modo” - in Das Obrigações em Geral, II, pág. 95, 6ª edição.

A Ré, por sua vez, não demonstrou as circunstâncias susceptíveis de dispensar o seu pessoal do cumprimento do dever de prestar as tais informações, sobre a existência de um meio alternativo, ao doente, para ilidir a presunção de culpa estabelecida no artº 788º do CC, não nos resta outra solução que seja considerar que os médicos e radiologistas do hospital da Ré agiram com culpa.

Foi justamente a conduta culposa do pessoal da Ré que levou o infeliz falecido a poder apenas optar por sim ou não, isto é, submeter-se ou não a um método de diagnóstico que lhe foi heteronomamente escolhido, quando na verdade existe outro método alternativo, disponível ou não no hospital da Ré, sem risco para a vida e adequado aos mesmos fins diagnósticos.

Pelo que ficou dito, é de concluir que os médicos e radiologistas do hospital da Ré cumpriram defeituosamente com culpa o dever de informação inserido nas obrigações contratuais, o que é gerador da responsabilidade civil contratual.

3. Da negligência no teste de detecção da alergia

Para os recorrentes, não ficou provado que o teste feito fosse suficiente para garantir a eficácia, nem provado que foram tomados outros cuidados tais como repetição, maior dosagem, ou testagem na veia, ou qualquer outro tipo de cuidados suplementares destinados a garantir toda a eficácia possível perante um caso que pré-sabidamente se sabia que a dosagem total a usar e efectivamente usada no contraste radiográfico matava, embora em estatística baixa. Portanto o pessoal da Ré agiu com culpa.

Ora, ficou provado que o teste prévio IODINA de reacção alérgica foi realizado por via oral e apenas com 10% de IODINA e que não foi eficaz na detecção de alergia.

Não se sabe porque é que foi administrada uma dose ineficaz na detecção de alergia.

Nada foi alegado nos autos que o teste por via oral apenas com 10% de IODINA foi realizado de acordo com o critério da prudência e da diligência da leges artis.

Isto é, não foram demonstradas pela Ré a prudência e a diligência da actuação do seu pessoal, de acordo com a leges artis, na realização do teste para a detecção da alergia, nomeadamente na dosimetria de IODINA, por forma a excluir a censurabilidade do pessoal do hospital da Ré por ter agido como agiu, isto é administrar uma dose comprovadamente ineficaz por via oral para a detecção da alergia.

Assim, vale aqui contra a Ré a presunção de culpa contida no artº 788º do CC, pois o teste de detecção da alergia integra no objecto da prestação do contrato de prestação de serviços de tratamento celebrado entre a Ré e o infeliz falecido.

5. Indemnização

Demonstrada a culpa do pessoal do hospital da Ré na escolha do método IODINA e na utilização da dose quantitativamente ineficaz da IODINA no teste de detecção da alergia, e verificaram-se os outros pressupostos da obrigação de indemnizar, porque foi provada a existência do vínculo contratual e dos danos, o nexo de causalidade, entre processo para tirar a angiografia e a morte, é altura para nos debruçarmos sobre os pedidos de indemnização formulados na petição inicial, nos termos permitidos pela regra de substituição consagrada no artº 630º/2 do CPC.

Conforme se vê na petição inicial, os Autores, ora recorrentes, pediram que seja o Réu condenado a pagar aos Autores a indemnização total de MOP$1.695.620,00, sendo:

1. MOP$800.000,00, a título de indemnização pelo direito à vida destruída, a reverter para os 3 autores, herdeiros da vítima;

2. MOP$200.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela vítima e a reverter para os 3 herdeiros da vítima;

3. MOP$300.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela viúva Autora;

4. MOP$95,620.00, a título de danos patrimoniais sofridos pela Autora com o funeral;

5. MOP$300.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pelos 2 filhos, na proporção de MOP$150.000,00 cada.

Não tendo os recorrentes questionado a matéria de facto fixada na primeira instância, é sobre os factos que foram dados provados na sentença recorrida que passamos a apreciar os pedidos de indemnizações.

Tendo sido julgados não provados os factos em que os Autores apoiaram o seu pedido na parte que diz respeito aos danos patrimoniais – cf. resposta negativa ao quesito 20º, o pedido relativo aos danos patrimoniais não pode deixar de improceder.

Como se vê na petição inicial, os Autores pediram, com fundamento na morte do D, quer a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela vítima, quer a título de indemnização pelos danos morais sofridos por cada um deles, enquanto familiares da vítima.

Reza o artº 489º/2 do CC que “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.”.

Na interpretação dessa norma, coloca-se a questão de saber se o direito à indemnização pelo dano da morte tem carácter da hereditariedade, ou é um direito que nasce originariamente na esfera jurídica das pessoas referidas no citado artº 489º/2 do CC.

Ora, para a vítima, os danos morais consistem em perder a vida.

Para os familiares, os danos morais pela morte da vítima consistem na perda da convivência com uma pessoa com quem tem laços afectivos íntimos.

Afigurar-se-nos adoptar a tese da hereditariedade, isto é, o direito à indemnização é adquirido primeiro pela vítima e só depois de se transmitir por via hereditária aos seus herdeiros.

E além desse dano, as pessoas referidas no citado artº 489º/2 do CC tem direito à indemnização pelos danos que sofreram directamente com a perda da convivência com a vítima com quem têm laços afectivos íntimos.

Na esteira desse entendimento, podem os Autores pedir indemnização tanto pelos danos que eles mesmos tenham sofrido com a morte da vítima De como também pelos danos da morte sofridos pela própria vítima.

Então passemos a proceder à determinação do quantum das indemnizações pedidas.

Face ao decidido supra, nos pontos nºs 1 e 2, é por causa da actuação do pessoal do hospital da Ré, culposa quer por incumprimento do seu dever de informações quer por ter feito o teste de detecção da alergia por meio ineficaz, que a vítima D morreu, o que representa para o seu cônjuge sobrevivo e os dois filhos um sofrimento com a perda de convivência com o seu marido e o seu pai.

Dispõe o artº 489º do CC:

1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.

Por sua vez o artº 487º estatui:

Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

Assim, globalmente considerados todos os factos que ficaram provados, a dor e a angústia sofrida pela própria vítima 10 minutos antes da sua morte, o grau de censurabilidade da actuação do pessoal do hospital da Ré por ter agido como agiu quer na omissão das informações sobre a existência do meio alternativo quer na inexplicável dosimetria insuficiente da iodina no teste de alergia, e a gravidade dos sofrimentos dos Autores atendendo às íntimas relações de parentesco, existente entre a vítima e os autores, e tendo em conta a função da indemnização pelos danos morais, que para além de ser punitiva, visa proporcionar ao lesado meios de natureza pecuniária que constituem um aliviante para a dor que sofreu, entendemos que é equilibrado fixá-las nos termos seguintes:

1. MOP$800.000,00, a título de indemnização pelo direito à vida destruída, a reverter para os 3 autores, herdeiros da vítima;

2. MOP$200.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela vítima e a reverter para os 3 herdeiros da vítima;

3. MOP$100.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela viúva Autora;

4. MOP$200.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pelos 2 filhos, na proporção de MOP$100.000,00 cada.


Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam:

* julgar parcialmente procedente o recurso dos Autores, revogando a sentença recorrida e

* julgar parcialmente procedente o peticionado na petição inicial, condenando a Ré no pagamento a favor dos Autores, dos montantes acima consignados, com juros legais calculados de acordo com a forma definida pelo TUI no seu douto Acórdão de 02MAR2011, tirado no processo nº 69/2010.

Custas pelos Autores na proporção de decaimento, sem prejuízo da eventual dispensa a conceder à 1ª Autora pela decisão a dar pelo Tribunal a quo ao pedido de apoio judiciário que já formulou mas ainda não decidido.

Sem custas a cargo da Ré por isenção subjectiva – artº 2º/1-e) do RCT.

A título de honorários a favor do Ilustre Mandatário nomeado à 1ª Autora, fixa-se em MOP$3,000,00 (Três mil patacas), a cargo do GPTUI.

Registe e notifique.

RAEM, 17JAN2012

Lai Kin Hong (com declaração de voto)
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira


Processo nº 218/2011
Declaração de voto


Enquanto relator, fiquei vencido quanto à natureza do direito à indemnização por danos não patrimoniais por morte, a que se refere o artº 489º/2 do CC.

Reza o artº 489º/2 do CC que “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.”.

Na interpretação dessa norma, coloca-se a questão de saber se o direito à indemnização pelo dano da morte tem carácter da hereditariedade, ou é um direito que nasce originariamente na esfera jurídica das pessoas referidas no citado artº 489º/2 do CC.

Ora, para a vítima, os danos morais consistem em perder a vida.

Para os familiares, os danos morais pela morte da vítima consistem na perda da convivência com uma pessoa com quem têm laços afectivos íntimos.

Se adoptar a tese da hereditariedade, isto é, o direito à indemnização é adquirido primeiro pela vítima e só depois de se transmitir por via hereditária aos seus herdeiros, temos a dificuldade para explicar a possibilidade de ingressar um direito na esfera jurídica de alguém como consequência da cessação da sua personalidade, dado que, como se sabe, a personalidade é condição sine qua non para ser titular de um direito.

Assim, entendemos que o direito à indemnização deve ser um direito que nasce directamente na esfera jurídica das pessoas referidas no citado artº 489º/2 do CC, por terem sofrido a perda da convivência com a vítima com quem têm laços afectivos íntimos.

Na esteira desse entendimento, só podem os Autores pedir indemnização pelos danos que eles mesmos tenham sofrido com a morte da vítima D e não também pelos danos da morte sofridos pela própria vítima.

RAEM, aos 17JAN2013

O relator,


Lai Kin Hong