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Processo nº 380/2009
Data do Acórdão: 19DEZ2013


Assuntos:

Alienação do bem comum do casal
Alienação do imóvel que constitui casa de morada da família
Anulação do negócio de alienação
Regime de bens
Consentimento do cônjuge para a alienação do bem comum
Intervenção do cônjuge para a alienação do bem comum
Matéria de facto
Matéria de direito
Causa de pedir
Conhecimento oficioso do direito do exterior à RAEM
Alteração da causa de pedir
Ampliação do âmbito de recurso
Nulidade da sentença
Anulação oficiosa da sentença
Deficiente da matéria de facto
Voluntariedade da conduta
Coacção física
Coacção moral

SUMÁRIO

1. É anulável a alienação, por um dos cônjuges, sem consentimento ou intervenção do outro, do imóvel que constituía o bem comum do casal.

2. É anulável a alienação, por um dos cônjuges, sem consentimento ou intervenção do outro, do imóvel que constituía a casa de morada da família do casal.

3. Por força do disposto no artº 341º/2 do CC, sempre que tenha de decidir com base no direito exterior à RAEM e nenhuma das partes o tenha invocado, o Tribunal deve procurar conhecer oficiosamente a sua existência e o seu conteúdo.

4. Quando Juiz a quo aplicou a lei chinesa vigente no momento da celebração do casamento afirmando que o regime de bens entre a Autora e o 1º Réu é o da comunhão adquiridos e concluindo que o bem em causa é bem comum do casal por ser adquirido na constância do casamento. Essa afirmação e conclusão não são factos e não carecem de ser alegados pelas partes, mas sim uma afirmação e conclusão jurídica resultante da aplicação do direito exterior à RAEM, em que o Tribunal pode fundar a sua decisão de direito.

5. Sendo a causa de pedir o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, só há alteração da causa de pedir quando houver alteração desse facto concreto.

6. Se a expressão adverbial “voluntariamente” se mostrar algo incompatível com os factos integrantes do conceito jurídico “coacção física”, já a mesma incompatibilidade não se verifica necessariamente entre a expressão adverbial “voluntariamente” e os factos integrantes dos conceito jurídicos “coacção moral”, “influência e ameaça psicológica”. Assim, na falta de outros elementos fácticos, a expressão “sair voluntariamente” só tem o sentido de que se trata de um acto conduzido pelo cérebro do agente, e nunca de um puro acto reflexo.

O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 380/2009


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV3-07-0070-CAO, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

I - RELATÓRIO (敍述部份):
  B (B), casada, residente na RAEM, 澳門......街...號......大廈...樓...,
  Veio a intentar, em 08/11/2007, a presente
  ACÇÃO DECLARATIVA COM FORMA DE PROCESSO ORDINÁRIO,
  Contra:
1) C (C), casado, portador do BIR nºX/XXXXXX/X, emitido pelos SIM em 26 de Novembro de 1996, com domicílio profissional na RAEM,澳門......街......大廈...樓...座, de ora em diante designado como Primeiro Réu; e
2) D (D),solteira, maior, portadora do BIRM nº XXXXXXX(X), emitido pela DSI em 9 de Novembro de 2004 residente na RAEM, Caminho das ......, nº ..., Edf. ......, bloco ..., ...° andar ..., Taipa ou, alternativamente, na Rua do ......, nº ..., ...° andar “...”, de ora em diante designado com segunda Ré, com os fundamentos seguintes:
1º - A Autora e o Primeiro Réu casaram a 10 de Outubro de 1984 na cidade de Gujing, província de Guangdong, na República Popular da China (cfr. documentos no. 1 e 2 que se protestam juntar e que se darão para todos os efeitos como reproduzidos).
2º - Na constância do matrimónio, a Autora e o Primeiro réu tiveram dois filhos: F, nascida a ... de ...... de 19... e G, nascido a ... de ...... de 19..., ambos naturais de Jiangmen, província de Guangdong, na República Popular da China (cfr. documentos no. 3 e 4 que se protestam juntar e que se darão para todos os efeitos como reproduzidos).
3º - Durante o ano de 1990, o Primeiro Réu veio para Macau, com o intuito de auferir um salário melhor para prover ao sustento da sua família, enquanto esta permaneceu na China.
4º - Entre 2001 e 2002, o Primeiro Réu, em conversa com a Autora, sua esposa, informou-a de que tinha conhecimento da existência de uma casa em Macau, para venda, a um preço razoável.
5º- Mas que, para a adquirirem, seria necessário pedir algum dinheiro emprestado, nomeadamente à mãe da Autora, bem como à irmã da Autora.
6º- Assim, e a pedido do Primeiro Réu, a sua sogra - Senhora D. H - emprestou-lhe US$30.000,00 (trinta mil dólares americanos), cujo recibo de quitação, assinado pelo Primeiro Réu (que se protesta junta sob documento no. 5, e dar-se-á, para todos os efeitos, como reproduzido) faz prova.
7º- Com vista ao mesmo fim, o Primeiro Réu recebeu da sua cunhada - Senhora D. I - a quantia de HK$42.000,00 (quarenta e dois mil dólares de Hong Kong), cujo recibo de quitação, assinado pelo Primeiro Réu (que se protesta juntar sob documento no. 6, e que se dará, para todos os efeitos como reproduzido) faz prova.
8º- O Primeiro Réu, chegou ainda a requerer, à Autora, cópia da sua identificação dando como justificação a aquisição do imóvel.
9º- Desta feita, por escritura datada de 2 de Dezembro de 2002, a fls. XXX do 1º Cartório Notarial, o Primeiro Réu, declarando ser casado no regime da separação de bens, adquiriu a fracção autónoma …, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o no. XXXX, com a matriz no. XXXXX, sito na rua dos ……, com entrada pelo no. …, pelo preço declarado de MOP134.095,00 (centro e trinta e quatro mil e noventa e cinco patacas) - cfr. Certidão de Registo Predial, que se protesta juntar como documento no. 7 e se dará para todos os efeitos como reproduzido.
10º- Em 2004, a Autora veio viver para Macau, juntamente com os seus dois filhos, para junto do marido.
11º- No entanto, a Autora veio a descobrir que o marido, ora Primeiro Réu, mantinha uma relação extra conjugal com uma outra mulher.
12º - Não obstante, e desde que chegou em 2004 com os seus dois filhos, o casal viveu em comunhão de leito e mesa, no imóvel adquirido em Dezembro de 2002.
13º- Acontece que, em meados do mês de Maio de 2007, a Autora foi informada pelo marido, Primeiro Réu, sem qualquer explicação adicional, de que teria de sair da casa onde viviam, caso contrário alguém a iria expulsar de lá.
14º- Inconformada com a situação, a Autora aconselhou-se com as suas amigas e colegas de trabalho, que lhe disseram que, provavelmente, o seu marido, ora Primeiro Réu, teria vendido a casa.
15º- Por forma a inteira-se da real situação, a ora Autora, deslocou-se à Conservatória de Registo Predial, no dia 21 de Maio de 2007, tendo obtido uma informação escrita da situação do imóvel - cfr. documento no. 8, que se protesta juntar e se dará para todos os efeitos como reproduzido.
16º- Da mencionada informação escrita, a ora Autora pôde aperceber-se, não só que o seu marido, Primeiro Réu, tinha adquirido o imóvel apenas em seu nome, mas, também, que estava pendente no Registo Predial, uma inscrição provisória por natureza - XXXXXX X - para aquisição do mesmo, por compra, em nome de J.
17º- Perante a partida do marido e ao ver-se obrigada a sair da casa onde viveu com a sua família desde 2004, e sem ter para onde ir, a Autora foi viver para casa de uma colega, tendo, mais tarde, arrendado uma casa, onde vive actualmente com os seus dois filhos.
18º- Das cotas constantes de fls, 4 da Certidão de Registo Predial, documento a juntar sob o no. 7, é possível verificar-se que q mencionada inscrição provisória por natureza – XXXXXX X - em nome de J, não foi convertida em definitivo.
19º- A fls, 4 e 7 da Certidão de Registo Predial retira-se ainda que a fracção em causa, …, foi adquirida pela Senhora D. D - Segunda Ré -, por escritura de 13 de Julho de 2007, a fls. XX do Lv. XXX do Notário Privado, Dr. K (cfr. documento no. 9, que se protesta juntar e se dará para todos os efeitos como reproduzido).
20º- Extrai-se igualmente da mencionada escritura que o vendedor e Primeiro Outorgante - Primeiro Réu - foi representado no acto pelo Sr. L, tendo, para tal, junto uma procuração (cfr. documento no. 10, que se protesta juntar e se dará para todos os efeitos como reproduzido).
21º- Aquando da celebração das escrituras de aquisição e, posteriormente, de venda, do imóvel em causa, o Primeiro Réu declarou sempre estar casado, com a ora Autora, no regime da separação de bens.
22º- Em face de determinar qual a lei aplicável às relações entre os cônjuges, recorre-se à norma de conflitos constante no artigo 50° do Código Civil de Macau, que determina qual o ordenamento jurídico a aplicar, conforme se passa a citar para facilidade de referência por parte de V. Exa.:
i. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
ii. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual comum, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa."
(Fim de citação)
23º- Ora, a Autora presume, sem certeza, que o seu marido, Primeiro Réu, resida, actualmente, na RAEM, desconhecendo no entanto, qual o seu endereço. Se assim for, aplicar-se-á a lei da região.
24º- No entanto e caso o Primeiro Réu não resida na RAEM, determina o no. 2 do referido artigo 50° do Código Civil que se aplicará a lei "do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.".
25º- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA concretizam a expressão "lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.", dizendo que:
"Se os cônjuges não residem habitualmente no mesmo Estado, mas todos os filhos vivem com um deles, não será dificil saber qual o país mais estreitamente associado à vida familiar."
(Fim de citação; in "Código Civil Anotado - Volume I", Coimbra Editora, 4a Edição)
26º - Novamente se conclui que o ordenamento jurídico a aplicar será sempre o da Região Administrativa Especial de Macau.
27º - Relembra a ora Autora que o seu casamento com o Primeiro Réu foi celebrado na cidade de Gujing, província de Guangdong, na República Popular da China, em 1984.
28º - Assim e por força da aplicação das leis no tempo - artigo 12° do Código Civil -, tratando-se do instituto do casamento, esclarece o comentário ao mencionado artigo nos termos que ora se citam:
"( ... )
O que pode suceder é que o conteúdo do direito esteja em parte dominado pelo facto que deu origem.
( ... )
Se a nova lei sobre os efeitos do casamento, por exemplo, atender à modalidade (civil ou, canónica) que o contrato revestiu, ela só será aplicável aos que cotarem por uma ou outra dessas modalidades após a sua entrada em vigor - e não aos casados anteriormente. ainda que o casamento persista na vigência da nova lei."
(Fim de citação; sublinhado da responsabilidade da ora Autora)
29º- Pelo que, na época, estava em vigor, no então território Chinês sob administração Portuguesa, o Código Civil de 1966, com as respectivas actualizações, o qual estabelecia, como regime de casamento supletivamente aplicável, a comunhão de adquiridos.
30º- Independentemente do regime de casamento (comunhão de adquiridos ou separação de bens, conforme declaração do primeiro Réu) aplicável ao matrimónio celebrado entre a ora Autora e o seu marido, Primeiro Réu, o que é facto é que o imóvel, sito na Rua dos ……, com entrada pelo no. …, …° andar …, onde o casal e os seus filhos viveram juntos, pelo menos desde 2004 a finais de Maio d 2007, foi pelo Primeiro Réu alienando, sem que, para tal, tenha obtido o consentimento da Autora, sua cônjuge.
31º- Conforme já foi mencionado, pelo menos durante dois anos, o imóvel supra identificado constituiu a casa de morada de família deste agregado familiar, conceito jurídico este, amplamente defendido pela Doutrina Portuguesa e igualmente protegido pelo legislador.
32º- A este propósito, refere PEREIRA COELHO o que de imediato se passa a citar para facilidade de referência por parte de V. Exa.:
"Trata-se de defender a estabilidade da habitação familiar - de a defender, agora, não apenas contra ameaças ou perigos externos, senão também contra ameaças ou perigos internos - o interesse dos cônjuges e eventualmente dos filhos, tanto no decurso da vida conjugal, em termos normais, como nas situações de crise, provocadas quer pelo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, quer pelo falecimento de alguns dos cônjuges.
Mais concretamente: a lei pretende proteger cada um dos cônjuges contra actos de disposição sobre a casa de morada de família praticados pelo outro cônjuge e que possam pôr em perigo a estabilidade da habitação familiar".
(Fim de citação; in "Curso de Direito da Família" - Introdução Direito Matrimonial, pp.430, Coimbra Editora)
33º- A tutela da casa de morada de família encontra-se igualmente prevista na lei, nomeadamente no no.2 do artigo 1548° do Código Civil, conforme se passa a citar:
"A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada de família carece sempre do consentimento de ambos cônjuges.".
(Fim de citação; sublinhado da responsabilidade da ora Autora)
34º- E conforme realça o Acórdão no. 195/2004, de 2 de Dezembro de 2004 do Tribunal de Segunda Instância do Tribunal da Segunda Instância,
"Assim, para garantir a protecção da casa de morada de família contra actos que possam prejudicar a sua utilização, a lei atribui aos beneficiários da protecção, que são só cônjuges, uma panóplia de direitos, tais os resultantes do facto de a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada de família carecer de consentimento de ambos os cônjuges. mesmo que vigore entre eles o regime da separação(...).”
(Fim de citação; sublinhado e negrito da responsabilidade da ora Autora)
35º- A falta de consentimento conjugal poderá se suprida, nos termos dos artigos 1551º e 1552º do Código Civil, por meio de procuração a favor do outro cônjuge.
36º- Acontece que, da análise da escritura de venda do imóvel, celebrada a 13 de Julho de 2007, não se vislumbra (i) a referência a tal procuração onde eventualmente a ora Autora tivesse dado o corrsentimento para a venda - apenas foi arquivada a procuração que o Primeiro Réu outorgou a favor do Sr. L -, nem tão pouco (ii) foi declarado que o imóvel em questão não se tratava da casa de morada de família.
37º- Por tudo isto: alienação da casa de morada de família por um dos cônjuge, sem o consentimento do outro, independentemente do regime de casamento, tem como sanção a anulabilidade do acto praticado, conforme prescreve o no. 1 do artigo 1554° do Código Civil que se passa a citar para facilidade de referencia por parte de V. Exa.:
"Os actos praticados contra o disposto nos nº: 1 e 3 do artigo 1547º, nos artigos 1548°e 1549° e na alínea b) do artigo 1550° são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, ressalvado o disposto nos nºs 3 e 4 deste artigo.".
(Fim de citação; sublinhado da responsabilidade da ora Autora)
38º- O no. 2 do artigo 1554° prevê um prazo de 6 meses após a data em que o requerente teve conhecimento do acto - ou seja, dia 21 de Maio de 2007, data em que a ora Autora obteve da Conservatória de Registo Predial a informação escrita da situação do imóvel (cfr. documento no. 8 a juntar) -, para o exercício da anulação do negócio (prazo esse que ora Autora cumpre, sem qualquer margem para dúvida), o que, desde já, como a final, se requer.
39º- Para além de propôr a presente acção contra o Primeiro Réu, deverá igualmente ser demandada como Segunda Ré, a adquirente do imóvel, por força da primeira parte do no. 2 do artigo 610 do Código de Processo Civil, que reza como se segue:
"É igualmente necessária a intervenção de todos os sujeitos quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (...)".
(Fim de citação)
40º- Porque assim é, não pode, julga-se, senão concluir-se no sentido de decretar-se a anulação do negócio de compra e venda do imóvel, por falta do legalmente exigido, consentimento do cônjuge Autora, uma vez que se trata da casa de morada de família, com a consequente anulação do respectivo registo na Conservatória do Registo Predial.
***
  Concluiu, pedindo que:
  a) Seja o pedido de anulação, com fundamento na falta de consentimento de ambos os cônjuges, do negócio de compra e venda do imóvel sito na Rua dos ……, com entrada pelo n° …, …º andar …, celebrado entre o Primeiro Réu e a Segunda Ré, Julgado procedente, por provado e legalmente justificado;
  b) A anulação do respectivo registo de aquisição, em nome da Segunda Ré, na Conservatória de Registo Predial de Macau.
* * *
  Citado 1 ° Réu C (C), veio o apresentar a sua CONTESTAÇÃO com os seguintes fundamentos:
1°- O 1 ° R. aceita como verdadeiros os factos articulados pela A. nos arts.1°a 4°, 9°, 10°, 12°, 18°a 21°da PI.
2°- Porém, não correspondem à verdade os demais factos articulados pela A. na sua PI. Vejamos:
3°- A e o 1° R casaram-se na República Popular da China em 10 de Outubro de 1984, no regime da separação de bens,
4°- Sendo que tal regime de bens, adoptado aquando da celebração do seu casamento, não foi questionado pela A. nos presentes autos.
5°- De facto, o pedido da A. assenta tão somente na venda pelo 1° R de uma fracção autónoma sem o consentimento da A.,
6°- consentimento que, segundo alega a A., era legalmente exigido porquanto a dita fracção autónoma constituía a casa de morada de família - vd. arts. 30° e 40° da PI.
7°- Além do mais, ainda que tal consentimento fosse exigido ao tempo da venda da fracção em questão - o que, como adiante melhor se verá, não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se admite -, o certo é que, tal como a A. bem nota e não questiona, o l°R., quando adquiriu o imóvel, declarou que era casado na separação de bens,
8°- Logo, constitui facto assente por acordo entre A. e 1º R. que o bem ora em análise foi adquirido apenas pelo 1° R. e, porque o seu regime de bens é o da separação, tal bem entrou na esfera jurídica do 1 ° R. como bem próprio.
9°- E note-se que, pelo facto de A. e lº R. residirem, presentemente, em Macau, e ainda que às actuais relações entre ambos seja de aplicar a lei da residência habitual - i.e, a lei de Macau -, tal não significa que um bem imóvel sito em Macau que é próprio de um deles, porque adquirido por esse cônjuge durante a constância de um casamento celebrado na República Popular da China sob o regime da separação de bens, e num momento em que a A. residia habitualmente na China com os filhos do casal, possa em caso algum ser considerado bem comum.
10º- Por essa razão se compreende o enfoque do pedido da A., alegando (falsamente, como se verá) que o imóvel em questão se tratava da casa de morada de família da A. e do 1º R., no sentido de tentar justificar a necessidade do seu consentimento para a venda do dito imóvel para, assim, fundamentar o seu pedido de anulação dessa venda.
11º- Ora, não obstante ser verdade que a fracção autónoma sub judice constituiu, no período que mediou entre 2004 e o dia 30 de Abril de 2007, a casa de morada de família da A. e do 1º R.,
12º- o certo é que, porém, a dita fracção autónoma deixou de constituir casa de morada de família da A. e o do 1º R. no dia 1 de Maio de 2007.
13º- Na verdade, há algum tempo que a relação conjugal entre a A. e o 1º R. se vinha deteriorando,
14º- Tendo sido em inícios de 2007 que ambos decidiram, por comum acordo, pôr fim à sua relação conjugal, pelo menos, e por enquanto, no tocante à coabitação da mesma casa por ambos.
15º- Tomada tal decisão, o 1º R. encetou diligências no sentido de providenciar uma nova residência para si,
16º- Tendo igual iniciativa sido tomada para A., no sentido de também ela encontrar uma nova residência para si e para os filhos de ambos.
17º- Assim que cada um deles encontrou uma residência para si, A. e 1°. R. acordaram em sair da fracção autónoma in questio no dia 1 de Maio de 2007, o que efectivamente se concretizou nessa data.
18º- Pelo que desde o dia 1 de Maio de 2007 que a fracção autónoma objecto dos presentes autos deixou de constituir, por livre acordo da A. e do 1 ° R, a casa de morada de família de ambos e dos seus filhos.
19º- Sendo portanto falsa toda a matéria alegada pela A. nos artigos 13° e 17°, desconhecendo o R., sem ter obrigação de conhecer, se os factos constantes nos arts. 14° a 16° da PI são verdadeiros.
20º- Ora, tendo a fracção autónoma in questio sido adquirida pelo 1 ° R. como seu bem próprio, e não constituindo tal fracção autónoma, à data da sua venda, casa de morada de família, apresenta-se como indiscutível que o consentimento da A. não era exigido na venda, pelo 1 ° R., de tal fracção.
21°- Note-se, aliás, que se deduz da própria PI que, à data da escritura de compra e venda que a A. coloca em crise - dia 13 de Julho de 2007 -, já a A. não residia na dita fracção autónoma - vide art. 15° a 17° da PI.
22º- Acresce que a inscrição de venda da fracção que a A. alega ter tido conhecimento através de uma informação predial obtida em 21 de Maio de 2007 e que a A. sustenta tê-la feito ver-se obrigada a sair da casa em questão - inscrição no. XXXXXXX - era, com a própria A. bem salienta, uma inscrição provisória por natureza,
23º- Ora, não se tratando de uma efectiva venda da fracção - mas antes de uma promessa de venda que, ainda para mais, nunca viria a ser concretizada (vd. doc.l, que se junta) -, não se compreende como ( segundo alega) terá a A. sentido necessidade de sair da dita casa (quando na verdade até já nem lá residia)!
24º- Saliente-se ainda que a venda que a A. pretende anular apenas se concretizou no dia 13 de Julho de 2007 (cfr. doc. 9 junto à PI),
25º- Tendo nesse acto o 1° R. sido representado por procurador, mandatado para o efeito por procuração assinada pelo 1 ° R. no dia 7 de Junho de 2007 (cfr. doc. 10 junto à PI).
26º- Sendo que na data em que essa procuração foi assinada - 7 de Junho de 2007 - já a casa em questão se encontrava livre de pessoas e bens.
27º- No tocante aos factos alegados pela A. nos artigos 5° a 8° e 11°, para além de não corresponderem à verdade, sempre se dirá que os mesmos nada interessam para os presentes autos, atendendo ao peticionado, a final, pela A., pelo que o 1° R. nem se referirá a eles no presente articulado.
28º- Quanto à matéria de direito constante dos artigos 22° e seguintes, não compete ao 1° R. impugnar.
29º- No entanto, e no que se refere aos fundamentos de Direito esgrimidos pela A. para sustentar o seu pedido de anulação da venda do 1° R. à 2a R., sempre se dirá que, mesmo a entender-se ser de aplicar o Direito de Macau à questão jurídica subjacente aos presentes autos, sucede que, tal como resulta da matéria factual supra relatada pelo 1° R., não assiste razão à A ..
30º- De facto, tendo a fracção sub judice sido adquirida pelo 1° R. como bem próprio (vd. art. 8° supra), e tendo tal fracção deixado de constituir casa de morada de família, não era necessário que a venda dessa fracção pelo 1° R. à 2a R. fosse consentida pela A - art. 1548, nº 2, e bem assim nº 1, mas este a contrario sensu, ambos do Código Civil.
31º- Donde se conclui pela perfeição do negócio de venda da fracção pelo 1° R. à 2a R ..
32º- Face ao exposto, deve o pedido de anulação do negócio de compra e venda formulado pela A. ser julgado improcedente, porque não provado.
33º- O 1° R. não dispõe de meios económicos para custear os encargos da presente acção judicial.
34º- A sua situação económica foi, de resto, constatada pelo Meritíssimo Juiz, tendo-lhe sido concedido o apoio Judiciário na modalidade de patrocínio oficioso.
35º- O R. trabalha no sector da construção civil, possuindo rendimentos irregulares, num montante médio mensal de MOP$ 4,000.00.
36º- Com tais rendimentos tem de fazer face a todas as suas despesas de vestuário, alimentação e habitação, num montante médio mensal de MOP$ 3,500.00.
37º- É pois manifesta a sua insuficiência económica para fazer face às despesas da acção supra referida,
38º- insuficiência que aliás se presume nos termos do disposto no art° 6°, n° 1, al. e), do Decreto-Lei nº 41/94/M, de 1 de Agosto.
39º- O R. reside em Macau.
40° - Assim, e nos termos do art° 4° e seguintes do DL nº 41/94/M, de 1 de Agosto, tem o R. direito ao apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de pagamento de preparos e custas.
  Concluiu, pedindo que seja a presente acção julgada totalmente improcedente, com consequente absolvição do 1° Réu do pedido.
* * *
  Citada a 2a Ré D (D),veio a apresentar a sua CONTESTAÇÃO com os seguintes fundamentos:
1º São apenas verdadeiros os factos constantes nos artigos 9°, 19°, 20° e 21° da P.I.
2º A Ré não sabe, nem tem a obrigação de saber, porque não são factos pessoas ou de que deva ter conhecimento, se são ou não verdadeiros os restantes factos pelo que se impugna expressamente essa factualidade. De todo o modo, e por mera cautela de patrocínio.
3º A ora Ré, por escritura pública datada de 13 de Julho de 2007, a fls. XX do Livro XXX do Notário Privado, Dr. K, adquiriu a fracção autónoma designada por «…» do ….º andar "…", para habitação, do prédio sito em Macau, com os números … a …-… da Rua dos ……, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. XXX, verso, do Livro XX, da freguesia de Santo António, pelo valor de MOP$200.000,00, tendo para o efeito constituído hipoteca voluntária sobre a fracção atrás descrita - cfr. Doe, nº 9 junto com a p.i.,
4º Aquando da aquisição a ora Ré estava convicta de que estava a comprar a fracção ao legal representante do vendedor.
5º Pelo que, a compra efectuada pela ora Ré tem de ser considerada válida por não ter havido qualquer negócio simulado entre esta e o vendedor.
6º A ora Ré é terceira de boa fé e, como tal, não lhe é oponível a nulidade fundada na simulação do negocio.
7º Com efeito, dispõe o artigo 235.°, nº 1 do Código Civil que «A nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida contra terceiro de boa fé que do titular aparente adquiriu direitos sobre o bem que foi objecto de negócio simulado».
8º Pelo que, no nosso modesto entender, nas relações entre o terceiro adquirente de boa fé e os simuladores a lei castiga estes ao não lhes permitir nunca a arguição da nulidade e a destruição das aparências que simulada e deliberadamente criaram e em que o terceiro de boa fé confiou. Por outro lado, e reiterando,
9º A ora Ré obteve o seu direito através de um negócio a título oneroso e fez essa aquisição de boa fé, pois, no momento da aquisição, desconhecia, sem culpa, o vício que constitui fundamento de nulidade ou anulabilidade.
10º Só a invocação da boa fé do terceiro adquirente justifica a protecção que a lei excepcionalmenté confere aos seus direitos em detrimento dos direitos do verdadeiro titular com claro desvio do princípio nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet.
11º O que da escritura pública datada de 2 de Dezembro de 2002 e da procuração notarial datada de 7 de Junho de 2007 se deve considerar como, plenamente provado, é o que o outorgante declarou.
12º E este declarou que era casado com a ora Autora, no regime da separação de bens.
13º Ora, não sendo questionável o valor da prova plena dos documentos, quanto às declarações das partes neles representadas, o mesmo já não se passa, em princípio, quanto à conformidade das suas declarações com a respectiva vontade real, ou seja, quanto ao valor de prova plena da sua veracidade, não tendo ficado provado que sejam sinceras as afirmações dos outorgantes, mas antes que foram afectadas por acto simulado.
14º Acto simulado inoponível a terceiro de boa fé.
  Concluiu, pedindo que seja a presente acção julgada improcedente, e em consequência, mantido o registo de aquisição, em nome da ora Ré, na Conservatória de Registo Predial de Macau.
* * *
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam" .
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
* * *
II - FACTOS (事實部份):
  Dos autos resulta assente a seguinte factualidade, entre outra, com interesse para a decisão da causa:
  Da Matéria de Facto Assente:
- A Autora e o primeiro Réu casaram entre si no dia 10 de Outubro de 1984, na cidade de Gujing, província de Guangdong, Interior da China (alínea A da Especificação).
- Na constância do matrimónio, a Autora e o Primeiro Réu tiveram dois filhos: F, nascida a ... de ...... de 19... x G, nascido no dia ... de ...... de 19... (alínea B da Especificação).
- Em 5 de Dezembro de 2002 foi registada na Conservatório do Registo Predial de Macau, a aquisição por compra e venda, da fracção autónoma …, do prédio ali descrito sob o nº XXXX, sito na Rua dos ……, com entrada pelo nº …, a favor do primeiro Réu, o qual, quando da outorga da escritura pública de compra e venda declarou ser casado no regime da separação de bens (alínea C da Especificação).
- No dia 13 de Julho de 2007, no Catório do Notário Privado K, C, através do seu procurador L, declarou vender pelo preço de MOP$200,000.00 a fracção autónoma identificada na alínea anterior à segunda Ré D, a qual, por sua vez, declarou aceitar a venda, a fracção autónoma identificada na alínea anterior, como consta de fls. 58 a 63 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido (alínea D da Especificação) .
- Desde 18 de Julho de 2007 encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Macau a favor da 2a Ré a aquisição da fracção autónoma referida (alínea E da Especificação).
- A presente acção encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Macau desde 9 de Novembro de 2007 (alínea F da Especificação) .
* * *
Da Base Instrutória:
- No ano de 2004, a Autora veio viver para Macau, juntamente com os seus dois filhos, para junto do 1º Réu (Resposta ao quesito 1º).
- Desde que a Autora chegou a Macau, sempre viver juntamente com o 1º Réu e os filhos de ambos, na fracção autónoma identificada na alínea C) (Resposta ao quesito 2).
- Em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma (Resposta ao quesito 3º).
- Na sequência do que a Autora foi viver para casa de uma colega (Resposta ao quesito 4º).
- Pelo menos, a partir de 7 de Junho de 2007, a fracção autónoma em questão já se encontrava livre de pessoas e bens (Resposta ao quesito 5º).
* * *
III- FUNDAMENTAÇÃO (理據):
  Cumpre analisar os factos, a matéria que vem alegada e aplicar o direito.
  Ora, a Autora casou-se em 10/10/84, na RPC, como tal, por força do disposto no artigo 48° do CCM, é a lei do interior da China que regula o regime de bens do casal que é o regime de comunhão de adquiridos, por força da Lei Matrimonial da RPC, aprovada pela 3a sessão do Congresso Nacional Popular, em 10 de Setembro de 1980. O artigo 13° deste diploma dispõe:
  「夫妻在婚姻關係存續期間所得之財產,歸夫妻共同所有,雙方另有規定的除外。
  夫妻對共同所有的財產,有平等的處理權。」
  Depois, o marido da Autora em 05/12/2002, adquiriu a fracção autónoma referida nos autos em Macau, altura em que ele declarou ter casado sob regime de separação de bens, o que não corresponde à verdade. A fracção autónoma é do património comum do casal e como tal a sua disposição carece da intervenção dos dois, ou de um, mas com consentimento de outro, o que não se verifica no caso. A lei sanciona esta situação de violação da lei com a consequência de anulabilidade.
  A anulabilidade prevista no artigo 1554° do CCM (corresponde ao artigo 1687° de CC de 1966) decorre da proibição da prática de certos actos, nomeadamente de alienação, apenas por um dos cônjuges, na medida em que não caibam nos poderes de administração dos bens do casal, fazendo-se depender a respectiva validade do consentimento do outro cônjuge - artigo 1548° e 1549° do CCM (correspondem aos artigos 1682° e 1683°-A de CC de 1966).
  O artigo 1548° do CCM prevê:
  "1. Carece do consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração, locação ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis ou empresa comercial comuns, sem prejuízo do disposto na lei comercial.
  2. A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges."
  Quanto às consequências, o artigo 1554° do mesmo código estabelece:
  "1. Os actos praticados contra o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 1547.°, nos artigos 1548.° e 1549.° e na alínea b) do artigo 1550.° são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, ressalvado o disposto nos n.os 3 e 4 deste artigo.
  2. O direito de anulação pode ser exercido nos 6 meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos 3 anos sobre a sua celebração.
  3. Em caso de alienação ou oneração de móvel não sujeito a registo feita apenas por um dos cônjuges, quando é exigido o consentimento de ambos, a anulabilidade não pode ser oposta ao adquirente de boa fé.
  4. À alienação ou oneração de bens próprios do outro cônjuge, feita sem legitimidade, são aplicáveis as regras relativas à alienação de coisa alheia."
  No presente caso, não existe o problema de caducidade de acção, uma vez que a Autora saíu da fracção em 05/2007 e a presente acção encontra registada na Conservatória desde 09/11/2007 (resposta do quesito 3° e alínea F) dos Factos Assentes).
  Resta saber se os Réus, adquirentes da fracção autónoma, estavam de boa fé ou má fé, ou seja, sabiam ou não que a alienação do imóvel feito pelo marido da Autora, carecia da intervenção da mesma. Em nome de ónus de prova, à Autora cabe demonstrar que os adquirentes sabiam a necessidade do consentimento da Autora, mas pelo visto, não conseguiram fazê-lo. Pelo contrário, os elementos existentes nos autos demonstram que os adquirentes, Réus, não tinham obrigação de saber tal necessidade, pois:
a) O imóvel estava registado em nome apenas do marido da Autora;
b) Ao adquirir o imóvel, o marido da Autora declarou ser casado em regime de separação de bens;
c) Nem o notário privado que ajudou o marido da Autora a outorgar a respectiva escritura pública entre o marido da Autora e os Réus levantou o problema da legitimidade daquele para dispôr do bem em causa. Por maioria da razão, um cidadão normal estava e devia assim estar na convicção de que tal negócio de compra e venda era perfeitamente válido.
  Pelo que, o exposto impõe a uma conclusão de boa fé dos adquirentes do imóvel.
***
  Resta ver uma última questão que é a de saber se a fracção autónoma era ou não da morada de família.
  Ora, tal como se refere anteriormente, o artigo 1548° do CCM, correspondente ao abrigo 1682° do CC de 1966, sobre o qual existe jurisprudência abundante, fixa critérios para resolver o problema da legitimidade de cônjuge para dispôr de bens comuns.
  A lei, visando a defesa dos interesses do outro cônjuge ou da família, faz radicar em ambos os membros do casal a legitimidade para a prática válida desses actos de modo que, não sendo o negócio directamente concluído pelos dois, em simultâneo, exige uma intervenção paralela através de um acto jurídico que denomina consentimento conjugal a prestar nos termos previstos no artigo 1551° do CCM (corresponde ao artigo 1684° de CC de 1966).
  Quando um dos cônjuges, sem ter obtido o consentimento do outro ou o seu suprimento, pratique algum dos actos de alienação ou oneração de bens que lhe estão interditos será ele nulo ou anulável, consoante se trate de bens próprios do outro cônjuge ou de bens próprios ou comuns do alienante.
  Quando o cônjuge aliena bens comuns não pratica um acto por conta do outro cônjuge, como no mandato, nem em representação deste, porque o que outorga o consentimento não incumbe o outro de agir em nome dele.
  Diversamente, o acto jurídico do consentimento "serve apenas para legitimar a sua actuação sobre bens integral ou parcialmente alheios", ou mesmo próprios, agindo sempre, e em qualquer caso, em nome próprios o cônjuge que intervém na prática do acto de alienação relativo ao direito de que, sendo o bem comum, é contitular (vd. P. DE LIMA e A. VARELA, "C. Civil, Anotado", IV, 271).
***
  O Acórdão de 10 de Maio de 1988 do Supremo Tribunal de Justiça português, comentado por F.M. Pereira Coelho1, vem, a propósito do artigo 1682°-A nº 2, referir o seguinte:
  "O interesse que a disposição do no. 2 visa tutelar não é já o interesse na conservação da casa (do imóvel) no património dos cônjuges (ou do cônjuge), mas o interesse na manutenção da residência da família. Sendo o regime de bens o de separação, o que se tem em vista é evitar que aquele dos cônjuges a quem (exclusivamente) pertence a casa de morada de família disponha dela, forçando o outro cônjuge a abandoná-la." (Fim de citação; sublinhado da responsabilidade da Autora)
  Considera ainda o Acórdão que:
  "Ao cônjuge que não deu o consentimento só é lícito exercer o direito de anulação que o artigo 1687° lhe confere quando o acto praticado pelo outro põe em risco a subsistência da habitação da família na casa que de tal acto foi objecto; quando do acto possa resultar ver-se o cônjuge não proprietário da casa forçado a sair dela."
  No entanto, conforme opina Pereira Coelho, "Não é preciso que do acto resulte ver-se o cônjuge não proprietário forçado a sair da casa, pois a saída pode ser anterior ao acto que se pretende anular."
  No que ao caso em apreço diz respeito, quer a posição do STJ, quer a de Pereira Coelho, vão de encontro ao entendimento da Autora, porquanto o acto praticado pelo Primeiro Réu - celebração do contrato de promessa de compra e venda e posterior registo de intenção de compra por parte do promitente comprador, bem como a posterior celebração da escritura de compra e venda - não só levou a que a Autora se visse forçada a sair da casa, como colocou em risco a subsistência da habitação da família no imóvel em causa.
  Refere ainda Pereira Coelho que a casa de morada de família:
  " ... uma vez fixada em determinado lugar, só pode ser alterada por novo acordo dos cônjuges ... ( ... ) a casa de morada de família não pode ser alterada por acto unilateral de um dos cônjuges sem o consentimento do outro."
  E acrescenta ainda:
  "Se o cônjuge proprietário, infringindo o seu dever de coabitação, abandona a residência da família ou, pelo seu procedimento, leva o outro a abandoná-la, a residência da família não se altera por esse simples facto e a "casa de morada de família" continua a merecer esta qualificação, não podendo, por isso, aquele cônjuge, sob pena de anulabilidade do acto. vender a casa ou praticar em relação a ela qualquer dos actos revistos no artigo 1682°-A no. 2 do Código Civil sem o consentimento do outro cônjuge."
  O Tribunal considerou provados os seguintes factos:
- Em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma (Resposta ao quesito 3º).
- Pelo menos, a partir de 7 de Junho de 2007, a fracção autónoma em questão já se encontrava livre de pessoas e bens" (resposta ao quesito 5° da Base Instrutória),
  Ora, conforme Pereira Coelho acima referiu, não é o facto da casa se encontrar livre de pessoas e bens que deixa de ser merecedora do qualificativo de casa de morada de família, pelo que, apesar de tal facto ter sido considerado como provado, não irá impedir que se considere que aquando da celebração da escritura de compra e venda a casa continuava a ser a da morada da família. Deverá antes ter-se em linha de conta o procedimento e actuação do cônjuge proprietário e questionar-se se tal acto levou, ou não, a que a Autora se sentisse forçada a sair da casa.
  Ora, no caso, está provado que a Autora saiu voluntariamente da fracção, e não foi forçada, como tal, não pode citar a tese do Prof. Pereira Coelho para fundamentar a pretensão da Autora.
  Pelo exposto, é de julgar improcedente a pretensão da Autora, por falta de fundamentos.
***
  Tudo visto, resta decidir.
***
IV - DECISÃO (裁判):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção por não provada e, em consequência decide:
  【據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,裁決如下:】
  1) - Julgar improcedentes os pedidos da Autores, deles absolvendo-se os Réus.
  【裁定原告之請求理由不成立,駁回其對各被告提起之訴求。】
***
  Fixar-se em MOP$3,000.00 (três mil patacas) a título de honorários a favor da patrona da Autora interveniente na audiência, a suportar pelo GPTUI (artigo 29º do DL nº 41/94/M, de 1 de Agosto, em conjugação com o n° 9 das Notas anexas à Tabela aprovada pela Portaria nº 265/96/M, de 28 de Outubro).
  【將原告之律師代理費訂為澳門幣叁仟圓整,由終審法院院長辦公室支付 (見8月1日第41/94/M號法令第29條及10月28日第265/96/M號訓令)。】
***
  Custas pela Autora, delas a mesma estar dispensada por lhe ter sido concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de preparos e custas.
  【訴訟費用由原告支付,但豁免繳付,因獲批司法援助。】
***
  Notifique e Registe.
  【依法作出通知及登錄判決。】


Não se conformando com o decidido, veio a Autora B recorrer da mesma concluindo que:

1. A ora Recorrente, não se conformando com o acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base em 31 de Dezembro de 2008, que julgou improcedente a sua pretensão de anulabilidade da venda do imóvel por parte do Primeiro Réu, seu marido, por falta de consentimento conjugal, interpôs o presente recurso.
2. Com todo o respeito, entende a Recorrente que o acórdão recorrido padece de várias falhas, nos termos do artigo 598º do CPC, nomeadamente (i) o sentido com que as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deveriam antes ter sido interpretadas e aplicadas, (ii) a determinação da norma aplicável – o artigo 1554º no. 3 do CC;
3. mas também (iii) se verifica uma das causas de nulidade – artigo 571º no. 1 alínea c) CPC – oposição entre os fundamentos e a decisão tomada, conforme se provou ao longo das presentes alegações.
4. O acórdão recorrido começa por concluir que, devido à lei chinesa aplicável ao casamento entre a Recorrente e o Primeiro Réu, seu marido, o regime de bens vigente entre o casal é o da comunhão de adquiridos.
5. E como tal, constata ainda o Tribunal, que o Primeiro Réu mentiu ao declarar no contrato de promessa de compra e venda, procuração e escritura pública, ser casado no regime da separação de bens, demonstrativo da sua má fé.
6. O Tribunal a quo veio igualmente corroborar o entendimento constante no Acórdão no. 195/2004 do Tribunal Judicial de Base, concluindo que, vigorando entre o casal o regime da comunhão de adquiridos, naturalmente que a fracção em causa é património comum logo, a sua alienação carece de consentimento de ambos os cônjuges, o que não se verificou.
7. Concluiu ainda o mesmo tribunal que a consequência, nos termos do artigo 1554º do CC, é a anulabilidade do negócio.
8. Ora, com o devido respeito, tal linha de raciocínio deveria ter levado ao tribunal a quo a concluir, de imediato e sem hesitações, pela procedência do pedido da Recorrente, por legal, legítimo e justificado.
9. No entanto, o tribunal a quo optou antes por, subitamente e em vários momentos ao longo da sua fundamentação, se desviar do raciocínio lógico que o guiava, nomeadamente quando aplica, mal, no entendimento da Recorrente, o no. 3 do artigo 1554º do CC., cujo conteúdo ora se recorda:
“3. Em caso de alienação ou oneração de móvel não sujeito a registo feita apenas por um dos cônjuges, quando é exigido o consentimento de ambos, a anulabilidade não pode ser oposta ao adquirente de boa fé.”
(fim de citação, sublinhado da responsabilidade da Recorrente)
10. Conforme se verifica, o no. 3 do artigo 1554º, embora fazendo parte do artigo que estabelece as consequências para os actos praticados contra o disposto nos artigos 1548º e 1549º do CC, a verdade é que o citado no. 3 diz respeito à alienação ou oneração de bens móveis não sujeitos a registo, o que não é de todo o casso, já que estamos perante a venda de uma fracção autónoma – bem imóvel e sujeito a registo.
11. Assim, veio o tribunal a quo considerar relevante, à luz do mencionado no. 3 do artigo 1554º do CC, saber se a adquirente, Segunda Ré, estava ou não de boa fé.
12. Considera a Recorrente que tal menção não tem qualquer cabimento ou sentido, não só porque é seu entendimento a não aplicação do no. 3 do artigo 1554º do CC, mas porque também não está em causa a má ou boa fé da adquirente mas sim e tão simplemente a anulabilidade do negócio de compra e venda por falta de consentimento da Recorrente, solução única e adequada aos presentes autos.
13. No entanto e ainda que pudesse estar em causa a boa fé da Segunda Ré adquirente e tal facto obstasse à anulabilidade da compra e venda, nos termos do artigo 284º do CC, a adquirente, como terceira, apenas veria os seus direitos reconhecidos caso a acção de anulação não fosse proposta e registada dentro do ano posterior à conclusão do negócio inválido, o que não se verificou, pelo que a boa fé alegada não é oponível erga omnes, logo o direito legado pela Segunda Ré nunca lhe seria reconhecido no caso em apreço, devendo portanto ser desatendido.
14. Conforme já referido, o tribunal a quo concluiu que o regime de bens aplicável ao casamento entre a Recorrente e o Primeiro Réu é o da comunhão de adquiridos, pelo que se deverá desde logo concluir que a fracção alienada se trata de um bem comum pelo que a sua venda carece sempre de consentimento conjunto, com a consequência da anulabilidade do acto.
15. Assim, torna-se de alguma forma indiferente aferir se a fracção alienada era ou não casa de morada de família, pois já que vigorava entre o casal o regime da comunhão de adquiridos, para a venda da casa era sempre, necessário o consentimento de ambos os cônjuges.
16. No entanto, considera a Recorrente que tal menção não é de todo dispiciente e através da qual se poderá continuar a demonstrar a verificação da nulidade de que padece o acórdão recorrido, nos termos do artigo 571º no. 1 alínea c) do CPC – oposição entre os fundamentos e a decisão final tomada pelo tribunal a quo.
17. Se por um lado o tribunal a quo corrobora a posição da Recorrente, citando igualmente o Acórdão do STJ e comentário de Pereira Coelho, afirmando que a actuação do Primeiro Réu levou a que a Recorrente se visse forçada a sair de casa, colocando em risco a subsistência da habitação da família no imóvel em causa;
18. Por outro lado e imediatamente a seguir, considera o mesma tribunal que ficou provado que a Recorrente saiu voluntariamente da fracção;
19. Acrescentando entretanto que o facto da casa se encontrar livre de pessoas e bens aquando da assinatura da escritura de compra e venda, não impede de deixar de ser casa de morada de família, devendo antes ter-se em conta o procedimento e actuação do Primeiro Réu e questionar-se se tal acto terá ou não levado a que a Recorrente se sentisse forçada a sair de casa.
20. Pelas posições do tribunal recorrido imediatamente antes demonstradas, se verificam patentes contradições e oposições entre os fundamentos utilizados e a decisão final.
21. É que, efectivamente, foi a actuação do Primeiro Réu que forçou a Recorrente a sair de casa pelo que, independentemente de à data da escritura a fracção se encontrar livre de pessoas e bens, esta deverá continuar a merecer a qualificação de casa de morada de família.
22. Por último e conforme já mencionado, o tribunal a quo considera que, apesar da actuação do Primeiro Réu ter levado a Recorrente a sair de casa, simultâneamente entendeu que ficou provado que esta saiu voluntariamente.
23. Ora, tal voluntariedade não pode ser considerada como provada pelo facto da Recorrente ter sido da fracção pelos seus próprios meios, mas antes questionar-se a razão subjacente que terá levado a Recorrente a sair do imóvel – conclusão já retirada anteriormente pelo próprio tribunal recorrido.
24. Assim, deverá antes analisar-se se os antecedentes praticados pelo Primeiro Recorrente levariam a que o Homem Médio, colocado na mesma situação da Recorrente, se visse forçado, coagido e na contingência de sair da casa, tal como o Tribunal recorrido concluiu a fls. 246 do seu acórdão, desviando-se no entanto desse raciocínio lógico, acabando por, erradamente, decidir em sentido contrário, indeferindo a pretensão da Recorrente.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que Vós, Excelentíssimos Juízes, muito doutamente suprireis, se requer seja o presente recurso julgado procedente, por provado e por legalmente justificado, com a consequente:
a. declaração de nulidade total da decisão recorrida; ou, no caso em que assim não deva ser entendido.
b. declaração de erro, pelas razões identificadas, na aplicação, interpretação e determinação da norma aplicável; e/ou
c. declaração de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão final, nos termos do artigo 571º no. 1 do CPC.
com a consequente
d. declaração de nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre os Réus por falta de consentimento da Recorrente, nos termos do artigo 1554º do CC; e
e. anulação do respectivo registo de aquisição em nome da Segunda Ré, na Conservatória de Registo Predial de Macau.
Seguindo-se os demais termos dos Autos até final, para que, pela vossa douta palavra, se cumpra a consueta
Justiça!


Notificados ambos os Réus vieram responder pugnando pela improcedência do recurso.

O 1º Réu C pediu também a ampliação do âmbito do recurso arguindo a nulidade parcial da sentença recorrida.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Em face das conclusões na petição de recurso e do pedido da ampliação do âmbito do recurso inserido nas contra-alegações apresentadas pelo 1º Réu, são em síntese as seguintes questões de direito que constituem o objecto da nossa apreciação.

1. Da anulabilidade da alienação do bem comum com fundamento na falta da intervenção e do consentimento da Autora; e

2. Da anulabilidade da alienação da casa de morada de família com fundamento na falta do consentimento do cônjuge não proprietário.

Apreciemos.

1. Da anulabilidade da alienação do bem comum com fundamento na falta do consentimento da Autora

Conforme se vê na sentença recorrida, o Tribunal a quo começou logo no princípio da fundamentação por salientar que:

Ora, a Autora casou-se em 10/10/84, na RPC, como tal, por força do disposto no artigo 48° do CCM, é a lei do interior da China que regula o regime de bens do casal que é o regime de comunhão de adquiridos, por força da Lei Matrimonial da RPC, aprovada pela 3a sessão do Congresso Nacional Popular, em 10 de Setembro de 1980. O artigo 13° deste diploma dispõe:
「夫妻在婚姻關係存續期間所得之財產,歸夫妻共同所有,雙方另有規定的除外。
夫妻對共同所有的財產,有平等的處理權。」
Depois, o marido da Autora em 05/12/2002, adquiriu a fracção autónoma referida nos autos em Macau, altura em que ele declarou ter casado sob regime de separação de bens, o que não corresponde à verdade. A fracção autónoma é do património comum do casal e como tal a sua disposição carece da intervenção dos dois, ou de um, mas com consentimento de outro, o que não se verifica no caso. A lei sanciona esta situação de violação da lei com a consequência de anulabilidade.

Todavia, o Tribunal a quo não decidiu anular a alienação do imóvel pura e simplesmente por a Autora não ter logrado demonstrar a actuação de má fé por parte da adquirente, ora 2ª Ré, ou seja, sabia a necessidade do consentimento da Autora, face ao disposto no artº 1554º/3 do CC, à luz do qual em caso de alienação ou oneração de móvel não sujeito a registo feita apenas por um dos cônjuges, quando é exigido o consentimento de ambos, a anulabilidade não pode ser oposta ao adquirente de boa fé.

Ora, um dos fundamentos do recurso deduzidos pela Recorrente para sustentar a sua pretensão de ver anulada a alienação do imóvel pelo seu marido, ora 1º Réu, é o facto de vigorar entre eles o regime de bens da comunhão de adquiridos.

Pois para a Recorrente, tendo em conta que o imóvel alienado foi adquirido na constância do casamento, o mesmo bem imóvel constitui bem comum do casal e portanto não pode ser validamente alienado sem o seu consentimento e a sua intervenção.

E, na esteira do entendimento da Recorrente, o normativo do artº 1554º/3 do CC não impede a anulação da alienação por se aplicar a situações em que está em causa bem móvel não sujeito a registo.

Assim, a recorrente entende que, não estando em causa um bem móvel, o Tribunal a quo andou mal por ter interpretado e aplicado incorrectamente o disposto no citado artº 1554º/3 do CC.

É verdade que está em causa nos presentes autos um imóvel, e portanto não é aplicável in casu o artº 1554º/3 do CC que visa regular a alienação de bens móveis não sujeitos a registo.

Chegados aqui, já podemos em princípio julgar procedente a acção determinando a anulação da alienação do imóvel, bem comum do casal, pelo 1º Réu por falta do consentimento e da intervenção da Autora.

Só que o 1º Réu, ora recorrido, ao abrigo do disposto no artº 590º/2 do CPC, veio nas contra-alegações requerer a ampliação do âmbito do recurso, arguindo a nulidade parcial da sentença na parte que considerou como provado o facto, não alegado pela Autora, de vigorar entre o casal o regime de comunhão de adquiridos, e suscitar a questão da ilegalidade do pedido do recurso por a recorrente ter alterado a causa de pedir fora das situações permitidas pelo artº 217º/1 do CPC.

Nos termos do disposto no artº 590º/2 do CPC, o recorrido pode, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença, prevenindo a hipótese de procedência das questões pelo recorrente suscitadas.

É o que sucedeu in casu.

Assim, é legal a requerida ampliação do âmbito do recurso.

Então comecemos pela alegada nulidade parcial da sentença.

Ora, para o recorrido, por força do disposto no artº 571º/1-d), in fine do CPC, a sentença é nula na parte em que se afirmou ser o regime de bens do casal o da comunhão de adquiridos, uma vez que não foi alegado nem resultou provado nos autos o facto de o regime de bens de casamento da Autora e do 1º Réu ser a comunhão de adquiridos.

Não tem razão o recorrido.

É verdade que em determinado contexto factual o regime de bens pode ser considerado um facto, susceptível da alegação pelas partes e de ser objecto de prova, é por exemplo o caso em que o casamento entre dois residentes permanentes de Macau celebrado em Macau com a convenção antenupcial adoptando um determinado regime de bens.

Todavia, temos de reconhecer que há situações em que o regime de bens não pode ser directamente demonstrado por provas, mas sim tem de ser apurado com o recurso à aplicação de direito, não poucas vezes precedida de uma análise jurídica complicada.

Este segundo tipo de situações é exactamente o que sucede in casu.

Ora, in casu, foi alegado e provado na primeira instância que a Autora e o primeiro Réu casaram entre si no dia 10 de Outubro de 1984, na cidade de Gujing, província de Guargdong, Interior da China.

Não tendo resultado dos articulados que a Autora e o 1º Réu tinham qualquer conexão com Macau no momento da celebração do casamento em 1984, e tendo em conta o facto, alegado pela Autora e expressamente aceite pelo 1º Réu, de que em 1990 o 1º Réu veio da China para Macau com o intuito de auferir um salário melhor para prover ao sustento da sua família, enquanto a Autora permaneceu na China (vide os artºs 1º a 3º da p.i. e o artº 1º da contestação), o regime de bens do casal deve ser o previsto na lei vigente na República Popular da China no momento da celebração do casamento – artº 51º/1 do CC.

Por força do disposto no artº 341º/2 do CC, sempre que tenha de decidir com base no direito exterior à RAEM e nenhuma das partes o tenha invocado, o Tribunal deve procurar conhecer oficiosamente a sua existência e o seu conteúdo.

Na verdade, é preciso saber in casu a quem pertencia o imóvel em causa no momento da sua alienação pelo 1º Réu.

Assim, em face desses factos e circunstâncias não controvertidas, entendemos que bem andou o Exmº Juiz a quo ao aplicar a lei chinesa vigente no momento da celebração do casamento afirmando que o regime de bens entre a Autora e o 1º Réu é o da comunhão adquiridos e concluindo que o bem em causa é bem comum do casal por ser adquirido na constância do casamento.

Isso não é facto, mas sim uma conclusão jurídica resultante da aplicação do direito exterior à RAEM, em que o Tribunal pode fundar a sua decisão de direito.

Portanto padece de qualquer nulidade a sentença na parte que se afirmou ser o regime de bens do casal o da comunhão de adquiridos.

Mesmo que não entendêssemos assim, a arguição de nulidade parcial da sentença também não pode proceder por razões que passemos a ver.

Ora, lida a petição inicial verificamos o que foi alegado o seguinte:

21º- Aquando da celebração das escrituras de aquisição e, posteriormente, de venda, do imóvel em causa, o Primeiro Réu declarou sempre estar casado, com a ora Autora, no regime da separação de bens.
22º- Em face de determinar qual a lei aplicável às relações entre os cônjuges, recorre-se à norma de conflitos constante no artigo 50° do Código Civil de Macau, que determina qual o ordenamento jurídico a aplicar, conforme se passa a citar para facilidade de referência por parte de V. Exa.:
i. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
ii. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual comum, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa."
(Fim de citação)
23º- Ora, a Autora presume, sem certeza, que o seu marido, Primeiro Réu, resida, actualmente, na RAEM, desconhecendo no entanto, qual o seu endereço. Se assim for, aplicar-se-á a lei da região.
24º- No entanto e caso o Primeiro Réu não resida na RAEM, determina o no. 2 do referido artigo 50° do Código Civil que se aplicará a lei "do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.".
25º- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA concretizam a expressão "lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.", dizendo que:
"Se os cônjuges não residem habitualmente no mesmo Estado, mas todos os filhos vivem com um deles, não será difícil saber qual o país mais estreitamente associado à vida familiar."
(Fim de citação; in "Código Civil Anotado - Volume I", Coimbra Editora, 4a Edição)
26º - Novamente se conclui que o ordenamento jurídico a aplicar será sempre o da Região Administrativa Especial de Macau.
27º - Relembra a ora Autora que o seu casamento com o Primeiro Réu foi celebrado na cidade de Gujing, província de Guangdong, na República Popular da China, em 1984.
28º - Assim e por força da aplicação das leis no tempo - artigo 12° do Código Civil -, tratando-se do instituto do casamento, esclarece o comentário ao mencionado artigo nos termos que ora se citam:
"( ... )
O que pode suceder é que o conteúdo do direito esteja em parte dominado pelo facto que deu origem.
( ... )
Se a nova lei sobre os efeitos do casamento, por exemplo, atender à modalidade (civil ou, canónica) que o contrato revestiu, ela só será aplicável aos que cotarem por uma ou outra dessas modalidades após a sua entrada em vigor - e não aos casados anteriormente. ainda que o casamento persista na vigência da nova lei."
(Fim de citação; sublinhado da responsabilidade da ora Autora)
29º- Pelo que, na época, estava em vigor, no então território Chinês sob administração Portuguesa, o Código Civil de 1966, com as respectivas actualizações, o qual estabelecia, como regime de casamento supletivamente aplicável, a comunhão de adquiridos.
30º- Independentemente do regime de casamento (comunhão de adquiridos ou separação de bens, conforme declaração do primeiro Réu) aplicável ao matrimónio celebrado entre a ora Autora e o seu marido, Primeiro Réu, o que é facto é que o imóvel, sito na Rua dos ……, com entrada pelo no. …, …° andar …, onde o casal e os seus filhos viveram juntos, pelo menos desde 2004 a finais de Maio d 2007, foi pelo Primeiro Réu alienando, sem que, para tal, tenha obtido o consentimento da Autora, sua cônjuge.

Lida essa parte do articulado da petição inicial, verificamos que, depois da análise detalhada das leis aplicáveis, a Autora alegou, embora de forma implícita, nos artºs 29º e 30º da petição inicial, que o regime de bens entre ela e o 1º Réu devia ser o regime supletivo previsto na lei de Macau aplicável, que é o da comunhão de adquiridos.

Assim, ao contrário do que defende o 1º Réu, ora recorrido, no pedido de ampliação do âmbito do recurso, essa matéria foi alegada pela Autora.

É verdade essa matéria não foi levada à base instrutória e portanto não ficou provada na primeira instância.

Todavia, isto não quer dizer que esta segunda Instância não pode fazer incluí-la na matéria de facto assente.

A propósito de modificabilidade da decisão de facto, a nossa lei processual autoriza que o Tribunal de Segunda Instância anule oficiosamente a decisão de facto de primeira instância e determine a ampliação oficiosa da matéria de facto no novo julgamento a repetir na primeira instância, se a considerar indispensável à boa decisão da causa – artº 629º/4 do CPC.

Ora, conjugando essa norma que permite a ampliação oficiosa da matéria de facto no novo julgamento a repetir na primeira instância com o nº 1 do mesmo artº 629º do CPC, podemos concluir que este Tribunal de Segunda Instância pode ampliar directamente a matéria de facto desde que a nova matéria tenha sido já alegada pelas partes.

Tendo fundado no facto alegado pela Autora, a sentença recorrida não padece da alegada nulidade parcial que o recorrido pretende ver declarada com o requerimento de ampliação do âmbito de recurso.

Por outro lado, como vimos supra, o recorrido suscitou nas contra-alegações a ilegalidade de pedido do recurso por a recorrente ter entretanto alterado a causa de pedir, dado que a causa de pedir em que assentou o pedido formulado pela recorrente nos presentes autos consubstanciava-se apenas na falta de consentimento exigido por lei para a venda da fracção porquanto, segunda alega na petição inicial, esta constituía, ao tempo da venda, casa de morada de família e não, segundo alega agora e sem que algumas vez o tenho feito em primeira instância, na falta de consentimento ou da intervenção da Autora para a venda da fracção autónoma que constituía bem comum do casal por ter sido adquirida na constância do casamento celebrado com o regime de comunhão de adquiridos.

Importa agora saber se no caso sub judice o Tribunal pode anular a venda do imóvel, com fundamento na falta do consentimento e da intervenção da Autora para a alienação do imóvel que constituía o bem comum, quando a Autora pediu na petição inicial a anulação da venda do imóvel, com fundamento na falta do seu consentimento para a alienação do imóvel que constituía a casa de morada da família.

Se fizer assim, implica ou não a alteração da causa de pedir.

Diz causa de pedir o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido – Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, revista e actualizada, pág. 245.

Se a causa de pedir é o facto concreto que serve do fundamento da acção de anulação da venda do imóvel, só há alteração da causa de pedir quando houver alteração desse facto concreto.

Assim, se a Autora pretende ver agora anulada por este Tribunal de Segunda Instância com base nos mesmos factos já apurados, não vimos como é que poderá haver lugar à alegada alteração da causa de pedir.

Ao acusar a Autora de ter alterado a causa de pedir na petição de recurso, o 1º Réu está confundir duas coisas inconfundíveis.

Ora, uma coisa é a causa de pedir, que como vimos supra, é o facto concreto que serve de fundamento da acção e a que está sujeito o Tribunal nos termos previstos nos artºs 5º e 567º do CPC.

Outra coisa é a qualificação jurídica, feita pelas partes, do facto concreto que integra a causa de pedir, que, por força do disposto no artº 567º do CPC, nunca vincula o Tribunal.

Assim, inexiste a alegada alteração da causa de pedir.

E portanto, nenhum obstáculo existe que nos impede de decidir, tal como já antecipámos supra, favorável ao pedido do recurso.

Pelo que, deve ser revogada a sentença recorrida e em substituição deve ser julgada procedente a acção de anulação com fundamento na falta do consentimento e da intervenção da Autora na venda do imóvel que constituía o bem comum do casal.

Chegados aqui, já podemos arrumar o presente recurso dizendo tranquilamente que fica prejudicado o conhecimento da 2ª questão levantada pela recorrente, isto é a da anulabilidade da alienação da casa de morada de família com fundamento na falta do consentimento do cônjuge não proprietário.

Todavia, é-nos conveniente conhecê-la ex abuntantia.

2. Da anulabilidade da alienação da casa de morada de família com fundamento na falta do consentimento do cônjuge não proprietário.

Como se vê nas conclusões do recurso acima transcritas, imputou a Recorrente à sentença recorrida contradições entre a matéria de facto provada e a fundamentação jurídica.

Todavia, lida a sentença nessa parte, não verificamos que houve contradições.

O que verificamos é a explanação das teses doutrinárias e da jurisprudência e a sua aplicação ao caso sub judice foram feitas de forma perifrástica, mas nunca contraditória.

Por outro lado, alega a Recorrente que os simples factos provados de que “em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma” e de que “pelo menos, a partir de 7 de Junho de 2007, a fracção autónoma em questão já se encontra livre de pessoas e bens”, não impedem de per si que o imóvel em causa seja considerado casa de morada de família no momento da sua alienação em 13JUN2007.

Para a Recorrente, em vez de decidir com base nesses factos a improcedência da acção, o Tribunal a quo deveria ter questionar a razão subjacente que terá levado a Recorrente a sair do imóvel.

Ou seja, o Tribunal deve analisar, os antecedentes praticados pelo 1º Réu, que, na óptica da Recorrente, levariam o homem médio, colocado na mesma situação da Recorrente, se visse forçado, coagido e na contingência de sair da casa.

Então vejamos se tem razão a Recorrente.

Como fundamento para julgar improcedente o pedido de anulação da venda do imóvel enquanto casa de morada de família, o Exmº Juiz diz que:

Ora,……, não é o facto da casa se encontrar livre de pessoas e bens que deixa de ser merecedora do qualificativo de casa de morada de família, pelo que, apesar de tal facto ter sido considerado como provado, não irá impedir que se considere que aquando da celebração da escritura de compra e venda a casa continuava a ser a da morada da família. Deverá antes ter-se em linha de conta o procedimento e actuação do cônjuge proprietário e questionar-se se tal acto levou, ou não, a que a Autora se sentisse forçada a sair da casa.
Ora, no caso, está provado que a Autora saiu voluntariamente da fracção, e não foi forçada, como tal, não pode citar a tese do Prof. Pereira Coelho para fundamentar a pretensão da Autora.
Pelo exposto, é de julgar improcedente a pretensão da Autora, por falta de fundamentos.

Ou seja, foi apenas com base no facto provado de que “em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma” que o Exmº Juiz a quo concluiu que o imóvel vendido já deixou de ser a casa de morada de família da Autora e do 1º Réu.

Para a Autora, ora recorrente, este simples facto não é suficiente para nos levar a concluir que ela não foi forçada a sair da casa de morada da família.

Antes pelo contrário, na óptica da recorrente, a sua saída foi motivada por “um encadear de acontecimentos e atitudes por parte do 1º Réu” que, na óptica do homem médio colocado na situação em apreço, seriam causa mais do que suficiente para que a Autora se sentisse forçada a sair de casa.

Ora bem, a expressão adverbial “voluntariamente” se mostrar algo incompatível com os factos integrantes do conceito jurídico “coacção física”, já a mesma incompatibilidade não se verifica necessariamente entre a expressão adverbial “voluntariamente” e os factos integrantes dos conceito jurídicos “coacção moral”, “influência e ameaça psicológica”.

Assim, na falta de outros elementos fácticos, a expressão “sair voluntariamente”, para nós, só tem o sentido de que se trata de um acto conduzido pelo cérebro do agente, e nunca de um puro acto reflexo.

Tal como aprendemos na teoria das infracções penais do Direito Penal, o agente que praticou um facto voluntário criminalmente punível pode beneficiar da atenuação especial de pena por ter actuado sob influência de coacção moral ou ameaça ou influência psicológica – artº 66º/1 e 2-a) do Código Penal.

Pois, desde que aquele alegado “encadear de acontecimentos e atitudes por parte do 1º Réu” que não fossem de tal modo fortes que arrastassem a Autora a sair da casa por lhe roubar toda a possibilidade de se comportar diferentemente, permanece a voluntariedade da saída da Autora.

Assim, o simples facto de que “em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma”, reputa-se manifestamente deficiente para decidir pela improcedência da acção.

Há que portanto ampliar a matéria de facto nos termos autorizados pelo artº 629º/4 do CPC.

Ora, foram alegados nomeadamente nos artºs 13º a 20º da petição inicial, os factos integrantes do “encadear de acontecimentos e atitudes por parte do 1º Réu”, que na óptica da Autora, a levou para sair da casa.

Todavia, apenas o facto constante do artº 13º de que “em meados de 2007, a Autora foi informada pelo primeiro Réu de que teria de sair da dita fracção autónoma” foi levado à base instrutória.

Estranhamente, esse facto essencial não ficou provado nem ficou não provado, pois a resposta que foi dada a esse facto quesitado foi justamente o único facto em que se apoiou o Tribunal a quo para julgar improcedente o pedido de anulação da venda nos termos do disposto no artº 1548º/2 do CC (por ser casa de morada da família), isto é, “em meados de Maio de 2007, a Autora saiu voluntariamente da referida fracção autónoma”.

Para além de violar o princípio do dispositivo consagrado nos artºs 5º e 567º do CPC por ter extravasado intoleravelmente uma resposta que o quesito podia contar, a tal resposta não afasta, os factos integrantes do “encadear de acontecimentos e atitudes por parte do 1º Réu”, justamente por razões que expusemos supra em relação à dita “voluntariedade” da saída da Autora da casa.

Pelo que, como fundamento subsidiário do presente Acórdão, a sentença recorrida não é de manter, pois temos de a anular oficiosamente por reputar deficiente a matéria de facto e determinar a ampliação da matéria de facto no julgamento a repetir na primeira instância, de forma de possibilitar a investigação dos factos articulados nos pontos 13º a 20º da petição inicial, alegadamente integrantes do motivo que levou a Autora a sair da imóvel, nos termos prescritos no artº 629º/4 do CPC.

Todavia, não iremos ordenar o novo julgamento na primeira instância, por pura e simplesmente a anulação oficiosa da sentença é apenas o fundamento subsidiário da nossa decisão, que tem de ceder perante o já decidido a título principal, isto é, julgar procedente a acção da anulação da venda.

Assim sendo, sem mais delonga, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam:

* Julgar procedente o recurso interposto pela Autora;

* Revogar a sentença recorrida; e

* Julgar procedente a acção, anulando o negócio de compra e venda do imóvel sito na Rua dos ……, com entrada pelo n° …, …º andar …, celebrado entre o 1º Réu e a 2ª Ré, mediante a escritura celebrada a 13JUL2007 e determinar cancelamento do registo da aquisição do mesmo imóvel a favor da 2ª Ré D, a que respeita a apresentação nº XX de 18JUL2007 da 1ª Conservatória do Registo Predial de Macau.

Custas pelos recorridos, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao 1º Réu.

A título de honorário a favor cada uma das Ilustres Mandatárias oficiosas da Autora e do 1º Réu, fixa-se em MOP$5.000,00, a cargo do GPTUI.

Notifique.

RAEM, 19DEZ2013


(Relator)
Lai Kin Hong

(Primeiro Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira

(Segundo Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
1 ln "Revista de Legislação e Jurisprudência", Ano 123º (1990-1991), n° 3790-3801.
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