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Proc. nº 45/2013
(Recurso Jurisdicional)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 28 de Fevereiro de 2013
Descritores:
-Divórcio
-Factos ilícitos
-Indemnização ao cônjuge não culpado


SUMÁRIO:

I- Existe um direito de indemnização autónoma pelos danos não patrimoniais em razão da ilicitude dos factos que estiveram na base do divórcio, radicado nos arts. 477º e 489º do C.C. e concedível em acção dedicada a esse fim, e outro que decorre da própria ruptura do casamento alicerçado no art. 1647º do mesmo código, que será reconhecido na própria sentença que o decreta.
II- No primeiro caso, a indemnização deve observar o princípio da equidade e, nos termos do art. 487º “ex vi” 489º do CC, a sentença terá que atender aos danos causados, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do lesante e do lesado e demais circunstâncias do caso.






Proc. nº 45/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
A intentou no TJB contra B, um e outro com os demais sinais dos autos, acção declarativa na forma de processo ordinário, pedindo a condenação deste no pagamento da indemnização de Mop$ 3.000.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência dos factos ilícitos que estiveram na base do divórcio entre ambos decretado com culpa exclusiva do réu.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que condenou o réu a pagar à autora a quantia de Mop$ 150.000,00.
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É contra essa decisão que pela autora da acção ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
   «I - O montante da indemnização pelos danos decorrentes dos factos-fundamento do divórcio deve ser calculado, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante no facto voluntário do agentes), segundo critérios de equidade;
   II - Porém, no caso, há, ainda, que atender ao grau de culpabilidade do responsável, para além da sua situação económica e da do lesado e a outras circunstâncias relevantes (entre as quais se contam os danos sofridos e os correspondentes sofrimentos), devendo a indemnização ser proporcional à gravidade do dano.
   III - O Meritíssimo Juiz recorrido não ponderou, em toda a sua extensão, que o grau de culpabilidade do Réu foi elevado, tendo actuado com dolo, e um dolo intenso, como decorre da factualidade apurada e, nomeadamente, do abandonado do lar conjugal e rompimento da vida em comum sem lhe dar qualquer explicação para esse abandono; a manutenção da A. durante meses sem se convencer da realidade com que o R. a confrontara; a manutenção nessa ignorância durante um prolongado período de tempo, facto que a fez recorrer a apoio médico; o conhecimento de que de tal relação extra-matrimonial resultou uma filha; a grande tristeza, frustração, perturbação, desgosto, vergonha e sofrimento psíquico causados e a afectação do seu bom nome.
   IV - São acentuadamente discrepantes os rendimentos mensais da A. e do R., sendo o deste superior em mais de três vezes ao da primeira, como diferentes são as perspectivas de reforma de cada um e o tempo de previsível duração no tempo das suas respectivas actividades profissionais, sendo que a A. nunca se preocupou com as questões financeiras concernentes ao futuro, pelo facto de ter casado com o R., enquanto magistrado do MP, razão por que não adquiriu, em tempo oportuno, um seguro privado de reforma.
   V - O apelo aos valores da jurisprudência em matéria do dano morte resultante de acidentes rodoviários, assentes na “mera culpa”, para procurar definir critérios de suporte para o valor pecuniário dos danos resultantes de factos ilícitos geradores do divórcio não se afigura um critério isento de críticas em termos de razoabilidade e até de equidade.
   VI - O valor do dano-morte em acidentes rodoviários tem subjacente a responsabilidade fundada em “mera culpa”, enquanto, no caso, foi elevado o grau de culpa do R., assente em dolo (o que releva para a apreciação do grau de culpabilidade do lesante), para além do que se não pode esquecer que uma das razões de ser dos montantes indemnizatórios decorrentes do dano-morte resultante de acidentes rodoviários se radica no facto de se tratar da reparação de danos de terceiro.
   VII - A situação retratada no Ac. do TSI, de 27/7/2006, proferido no processo nº 257/2006, como se constata da leitura do douto aresto, não oferece dados sobre a situação económica do lesante e o valor indemnizatório nele fixado corresponde ao valor do pedido, pelo que nem poderia o tribunal de recurso fixá-lo em montante superior.
   VIII - No caso em apreço está-se perante responsabilidade civil por factos ilícitos, dada a violação de direitos subjectivos que abrangem os direitos familiares com eficácia absoluta da Autora enquanto cônjuge inocente - e é nela, obrigação de indemnizar, que se localiza, verdadeiramente, a sanção para o não cumprimento dos deveres matrimoniais, visto o divórcio não constituir essa sanção.
   IX - A indemnização dos danos não patrimoniais emergentes dos factos-fundamento do divórcio tem natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.
   X - No caso, pensa-se que a indemnização no montante fixado pelo tribunal recorrido, pela sua exiguidade, perante os dados de facto equacionados, não chega a reprovar ou a castigar o lesante e aqui recorrido pelos danos causados expressos nos factos causadores do divórcio, pelo que se pugna por uma indemnização superior nos termos e no montante formulados na petição inicial.
   XI - Perante os dados materiais do caso outro e mais elevado poderia e deveria ter sido fixado pelo tribunal a quo com utilização do princípio/critério geral da equidade, tal como postula o n.º 3 do art.º489.º do CC, com ponderação do elevado grau de culpabilidade do demandado.
   NOS TERMOS E COM OS FUNDAMENTOS EXPOSTOS e com o imprescindível suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao recurso e alterado o valor da indemnização para um valor substancialmente diferente, como peticionado, desse modo se fazendo a costumada Justiça».
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O réu respondeu ao recurso apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
«A. A Recorrente defende que o valor da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo é reduzida, alegando que a elevada culpa do Recorrido justifica um valor mais elevado, quer para reparar os danos sofridos, quer ainda para sancionar o seu comportamento;
B. Os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos são: (i) a conduta do agente, (ii) os danos e (iii) o nexo de causalidade;
C. In casu, a conduta do Recorrido é acompanhada de um reduzido grau de culpa, porquanto, (i) após o abandono da casa garantiu a manutenção da situação financeira da Recorrente, (ii) garantiu os cuidados prestados aos filhos tal corno (iii) garantiu o pagamento das despesas da casa de morada da família, assim minimizando as preocupações da Recorrida, de forma a assegurar-lhe uma “transição suave”;
D. A violação do dever de fidelidade é meramente formal por se ter verificado quase um ano depois da separação de facto, sem nunca o Recorrido ter mantido simultaneamente duas relações;
E. A situação de desequilíbrio psiquiátrico e psicológico teve início em 2007, conforme relatório médico, ou seja, antes da separação de facto ocorrida em Abril 2008, pelo que inexiste nexo de causalidade entre a separação e o estado psicológico e/ou psiquiátrico que motivou as consultas dessas especialidades;
F. Ao referir a diferença de rendimentos e a perspectiva de reforma, a Recorrente está a invocar danos patrimoniais, nomeadamente os lucros cessantes, pelo que não devem ser atendidos, dado estarem agora em discussão exclusivamente os danos não patrimoniais;
G. Não há comparação possível com os casos precedentes invocados pela Recorrente, pois que as Recorrentes nesses dois casos sofreram durante um longo período de tempo sem qualquer assistência por parte dos respectivos maridos, nomeadamente financeira, ao invés da Recorrente, que ficou sempre garantida financeiramente e viu os cuidados dos filhos assegurados, manteve a vontade de ter uma vida social activa e tem a sua vida futura garantidamente desafogada i
H. Nestes termos, o seu sofrimento, o seu desgosto, a sua preocupação com a vida futura são, evidentemente, diferentes por serem substancialmente reduzidas, em comparação com os casos da jurisprudência invocada.
Nestes termos e nos demais de Direito devem, Vossas Excelências, Venerandos Juízes, julgar improcedente o presente recurso, mantendo na íntegra a douta sentença recorrida, assim fazendo a habitual JUSTIÇA!».
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Cumpre decidir.
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II- Os factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«A A. e o R. conheceram-se em 1984, tinha ela 17 anos de idade e ele 21, tendo, logo nesse ano, iniciado uma relação intensa de namoro. (A)
Tendo contraído casamento dez anos depois, em Macau, em 6 de Novembro de 1994, casamento de que resultaram dois filhos, C e D, nascidos em Macau, respectivamente, em 16 de Novembro de 1998 e em 17 de Dezembro de 1999. (cfr. Doc. n.º 1 e 2 junto com a p.i.) (B)
Casamento que veio a ser dissolvido por divórcio por sentença de 18 de Fevereiro de 2011, já transitada em julgado, em acção que correu termos pelo 3 o juízo cível do Tribunal Judicial de Base, sob o número CV3-10-0006-CDL, constantes dos autos a fls. 17 a 39, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (cfr. doc. n.º 3 certidão da sentença junto com a p.i.) (C)
Conforme ficou assente na sentença aludida em C), o R. saiu da casa de morada da família em Abril de 2008, e que, em Janeiro de 2010 o R. teve uma filha com Kuok Weng Mui. (cfr. doc. n.º 3 - certidão da sentença junto com a p.i.) (D)
Conforme ficou assente na sentença aludida em C), a A. chegou a socorrer-se de apoio médico na área da psiquiatria e a carecer de medicação (com anti-depressivos) que ainda 《hoje》, à data dessa sentença, se mostravam necessários. (cfr. doc. n.º 3 - certidão da sentença junto com a p.i.) (E)
Conforme ficou assente na sentença aludida em C), em Março de 2008, o R. telefonou para uma irmã da A. 《pedindo-lhe que acorresse com urgência lá a casa (de onde ele sairia logo depois) dizendo-lhe que apesar de ter tido a cautela de recolher e esconder todas as facas que havia na cozinha, temia que a A. atentasse contra a sua vida》. (cfr. doc. n.º 3 - certidão da sentença junto com a p.i.) ( F)
Conforme ficou assente na sentença aludida em C), a A. continua a frequentar restaurantes, viajar, fazer compras e frequentar salões de beleza. (cfr. doc. n. º 3 certidão da sentença junto com a p.i.) (G)
Conforme ficou assente na sentença aludida em C), tendo no aresto sido declarado o R. como único e exclusivo culpado do divórcio. (cfr. doc. n. º 3 certidão da sentença junto com a p.i.) (H)
A A. foi uma mulher dedicada ao marido, primeiro, e ao marido e aos filhos, posteriormente. (1º)
A A., sendo hospedeira aérea da operadora de Hong Kong, XX, ansiava pelo regresso dos seus voos, para estar com o marido e filhos, após o nascimento destes. (2º)
Constituiu um choque profundo para a A. que o R. tenha, em Abril de 2008, abandonado o lar conjugal, rompendo a vida em comum. (3º)
Sem lhe dar qualquer explicação para esse abandono. (4º)
A A. esteve meses sem se convencer da realidade com que o R. a confrontara. (5º)
A A. manteve-se nessa ignorância durante um prolongado período de tempo, facto que a fez recorrer a apoio médico na área da psiquiatria e da psicologia. (6º)
Em data não apurada, a A. veio a tomar conhecimento que o R. tinha outra mulher, Kuok Weng Mui, por quem o R. se veio a interessar e com a qual iniciara uma relação íntima. (7º)
Em Janeiro de 2010, a A. veio a tomar conhecimento, que tal relação extra-matrimonial resultou uma filha, que viria a nascer pouco depois, em 28 de Janeiro de 2010. (8º)
O abandono do lar conjugal sem uma explicação das razões determinantes do R., o conhecimento ulterior da relação do então R. com outra mulher e, mais particularmente o nascimento de uma filha dessa relação extra-matrimonial em constância do matrimónio, causaram à A. grande tristeza, frustração, perturbação, desgosto e sofrimento psíquico. (10º)
A ignorância prolongada em que foi mantida a A. sobre as razões do abandono do lar conjugal pelo R. influenciou também a doença da A. (11º)
Ainda hoje, a A. continua a sujeitar-se a tratamento médico do foro psiquiátrico e psicológico. (13º)
A A. sente vergonha pelo facto de o R. ter estabelecido uma relação extra-conjugal com outra mulher e dela tenha vindo a ter uma filha. (14º)
Tais factos afectaram o seu bom nome, implicando à A. a perder a face, a confiança e a auto-estima, perante os seus círculos de amigos e a sua própria família. (15º)
A A. é hospedeira aérea, auferindo um salário mensal de HK$29.938,00 (vinte e nove mil novecentos e trinta e oito dólares de Hong Kong) correspondentes a MOP$30.836,00 (trinta mil oitocentas e trinta e seis patacas). (17º)
Enquanto o R. como Magistrado do Ministério Público, aufere um salário mensal de MOP$104.716,30 (cento e quatro mil setecentas e dezasseis patacas e trinta avos). (18º)
O R. poderá prolongar a sua actividade profissional, pelo menos, até aos 65 anos. (20º)
A A. receberá um fundo de reforma, de uma só vez, calculado na base da multiplicação de dois salários mensais pelo número de anos de serviço prestado. (21º)
O R. tem à sua espera, quando terminar a sua vida activa, uma reforma de acordo com as projecções de carreira feita pelos competentes serviços do Ministério Público. (22º)
Nunca a A. se preocupou com as questões financeiras concernentes ao futuro, pelo facto de ter casado com o R., enquanto magistrado do Ministério Público. (23º)
Por essa razão a A. não adquiriu, em tempo oportuno, um seguro privado de reforma. (24º)
O casal adquiriu, na constância do matrimónio, uma vivenda sita nos Jardins de XX, que se valorizou e hoje se estima valer cerca de 38 milhões dólares de Hong Kong. (27º).
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III- O Direito
1 - A autora movera a acção contra o réu, ex-marido, desfiando um ror de factos que, além de terem conduzido ao divórcio, teriam sido a causa de danos não patrimoniais que disse ter sofrido e de que se pretende ser compensada.
Fê-lo ao abrigo do art. 477º do Código Civil, suportada ainda em jurisprudência que reconhece ao cônjuge não culpado o direito a indemnização pelos factos ilícitos e danosos que estiveram na base da dissolução do casamento.
A sentença sob censura, sem se afastar do mecanismo fundador da responsabilidade invocada, e mesmo concedendo que o sofrimento da autora merecia a tutela do direito, acabou por entender que o valor indemnizatório peticionado (Mop$ 3.000.000,00) era elevado. Tanto assim é que, com recurso à equidade e sem deixar de relevar a situação económica e profissional de ambas as partes, se tenha ficado pela atribuição de uma indemnização no valor de Mop$ 150.000,00, que considerou ser justa e proporcional. Portanto, a dissensão fulcral que a sentença pôs a descoberto relativamente àquela que tinha sido a pretensão da autora da acção residiu na grandeza dos danos e na consequente indemnização.
Insiste agora a ré na tónica que tinha já expressado na petição inicial: o abandono do recorrido do lar para se juntar a outra mulher com quem, sem o seu conhecimento, vinha já mantendo uma relação extra-matrimonial e da qual adviria o nascimento de uma filha, foi causa de profundo desgosto e sofrimento. Sofrimento e desgosto que se reflectiu em doença do foro psíquico, com tradução em intensa frustração e angústia. Sofrimento e desgosto marcados pela vergonha da autora perante o seu círculo de amigos e família, levando-a a “perder a face”, confiança e auto-estima. Sofrimento e desgosto pela grave afectação do seu bom nome. Circunstâncias, todas elas, que o valor arbitrado na sentença em crise não seria capaz de reparar, “reprovar” e “castigar”.
Descendo a mais pormenorizada consistência fundamentativa, a recorrente defende que a sentença aqui em causa não teria ponderado, com a extensão devida, o grau de culpa do R., a situação económica presente e futura de A. e R. e teria incorrido em desapropriada comparação jurisprudencial.
Vejamos até onde pode ir a sua razão.
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2 - Antes de mais nada, importa começar por dizer que, do acervo de factos que levam a autora da acção a fundamentar o recurso, praticamente todos se colhem da matéria dada por assente. Na verdade, os factos ali provados no que aos danos concerne são:
- O apoio médico de que se socorreu, e a que ainda se sujeita, a recorrente na área da psiquiatria, com prescrição medicamentosa de efeitos anti-depressivos (als. E); factos 6º e 13º);
- O choque profundo que para si constituiu o abandono do lar por parte do R (facto 3º);
- A grande tristeza, frustração, perturbação, desgosto e sofrimento psíquico (facto 10º);
- A doença resultante da própria ignorância prolongada em que a A. viveu a respeito das razões do abandono do lar pelo R (facto 11º);
- A vergonha que a A. sente por o ex-marido ter estabelecido uma relação extra-conjugal com outra mulher, de quem teve uma filha (facto 14º);
- A afectação do bom nome, a “perda de face”, da auto-estima e confiança (facto 15º);
São estes os factos que demonstram a lesão na esfera da A., ora recorrente. E assim sendo, não correndo perigo no presente recurso que eles não possam caracterizar uma causa de pedir radicada no art. 477º do CC e apoiada em jurisprudência que consagra o direito de indemnização autónoma pela ilicitude dos factos que estiveram na base do divórcio, para além do direito de indemnização que decorre da própria ruptura do casamento (cfr. Acs. TSI, de 27/11/2008, Proc. nº 660/2008; de 27/07/2006, Proc. nº 257/2006 e de 19/07/2012, Proc. nº 193/2012)1, parece que nenhuma censura se deve dirigir contra a sentença impugnada. Na verdade, e conforme emana do último dos arestos citados, “Os danos não patrimoniais que podem ser peticionados e arbitrados na própria acção de divórcio são os que resultam da dissolução do casamento em si mesma. Não podem integrar a causa de pedir indemnizatória nessa acção os danos que resultem dos factos que conduziram à dissolução, os quais só podem fundar um processo comum autónomo de declaração com base nas regras da responsabilidade civil do art. 477º do CC”. Portanto, sem dúvida existe um direito de indemnização autónoma pelos danos não patrimoniais em razão da ilicitude dos factos que estiveram na base do divórcio, radicado nos arts. 477º e 489º do C.C. e declarado em acção dedicada a esse fim, e outro que decorre da própria ruptura do casamento alicerçado no art. 1647º do mesmo código, que será reconhecido na própria sentença que o decreta.
Questão é, pois, saber se aqueles factos se devem considerar suficientes para satisfazerem a exigência legal indemnizatória na dimensão peticionada pela autora/recorrente. Será a lesão assim tão fraca que justifique o valor arbitrado pelo tribunal “a quo”? Ou, pelo contrário, assim tão forte que reclame a dimensão suplicada pela recorrente?
Olhemos para o que a sentença asseverou a este respeito:
«A lei da RAEM (artigo 489º do Código Civil de Macau) aceita a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, limitando-a àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
   Cabe, portanto, ao tribunal, em cada caso concreto, pronunciar se o dano é, ou não, merecedor de tutela jurídica.
   O montante da indemnização, correspondente aos danos não patrimoniais, deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado, e a outras circunstâncias relevantes.
   Por outro lado, deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. 1, 4ª ed., pág. 499 e seguintes).
   A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível - artigo 560º, nº 1 do Código Civil de Macau.
   Com vista a proceder à fixação do montante indemnizatório, retira-se do disposto no artigo 489º, nº 3 do Código Civil de Macau a legitimação do recurso à equidade e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita.
   A equidade deve ser a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, devendo, o julgador ter conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida (cfr., em termos de direito comparado, entre outros, Ac. do STJ de 10/12/98, in “CJ, Ac. do STJ, Ano VII, T165”).
   A A. pede a condenação do R. no pagamento duma indemnização por danos não patrimoniais no montante de MOP$3.000.000,00.
   O artigo 489º, nº 3 do Código Civil de Macau manda fixar o montante da indemnização equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 487.º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, ou as flutuações do valor da moeda.
   Em termos de direito comparado, o STJ de Portugal em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista.
   Para o Professor Antunes Varela, entende que “o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. E este, como já foi observador por alguns autores, um dos domínios onde mais necessários se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir” - Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 499 e seguintes.
   Também o Professor Mota Pinto chegou a referir que os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis; não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.
   Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.
   Assim se compreende que a actividade do juiz no domínio do julgamento à luz da equidade, não obstante se ver enformada por uma importante componente subjectiva, não se reconduza ao puro arbítrio.
   No tocante ao valor indemnizatório peticionado pela A., salvo o devido respeito por melhor opinião, julgo que o montante é demasiado elevado, não estando o mesmo em consonância com os critérios ou limites adoptados pelos tribunais superiores da RAEM.
   A título exemplificativo, cita-se o processo nº 15/2011, tendo o TUI, por Acórdão de 25 de Maio de 2011, decidido e fixado num caso de acidente de viação montante de indemnização por perda do direito à vida em MOP$1.000.000,00 e o valor de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima e seus pais, em MOP$150.000,00 e MOP$300.000,00, respectivamente.
   Um outro Acórdão, esta vez do Tribunal de Segunda Instância, de 27 de Julho de 2006, Processo nº 257/2006, vem condenar um cônjuge no pagamento de uma indemnização pela dissolução do divórcio no montante de MOP$100.000,00.
   In casu, deram-se provados, em termos mais ou menos sucintos, o abandono do R. do lar conjugal e o estabelecimento de uma relação extra-conjugal com outra mulher, da qual resultou o nascimento de uma filha de ambos, factos esses que levaram à A. a sentir pessoalmente ferida na sua dignidade e bom nome, bem assim ficou triste, frustrada, desgosto e teve sofrimento psíquico.
   O sofrimento da A. merece a tutela do direito, daí que considerando a natureza do ilícito e da lesão pessoal provocada na A., o grau de culpa do R., a situação económica e profissional de ambos, assim como os padrões genéricos adoptados pelos Tribunais Superiores da RAEM, tem-se por justa e proporcional uma indemnização de MOP$150.000,00”.
Ver-se-á no trecho transcrito alguma mácula? Em primeiro lugar, e seguindo o raciocínio exposto pela inconformada autora na sua peça alegatória, não teria o tribunal feito, com a extensão devida, a ponderação do grau de culpa do R?
Em nossa opinião, o tribunal “a quo”, quanto a esse aspecto, fez o que devia ser feito. Basta um olhar lasso para a sentença para dela logo se depreender que o julgador tomou em conta todos os factos relevantes e que a cada um deu a devida importância no quadro do dever de indemnizar. E também se não pode duvidar ter feito uma avaliação de acordo com o critério de equidade que no caso se impunha (art. 489º, nº3, do CC). Isso era quanto se lhe pedia, para além do grau de culpa ou da censurabilidade da actuação do réu enquanto marido da autora. Realmente, a culpa faz parte da violação dos deveres conjugais enquanto fundamento do divórcio. Nesse sentido, a culpa, a sua prova e valoração respectiva interessarão para efeito da possível obrigação de indemnizar por danos não patrimoniais prevista no art. 1647º do CC (Ac. STJ, de 4/12/1986, BMJ 362, pag. 541), embora não possa ser desconsiderada no âmbito da presente acção e na indemnização fundada na equidade (art. 487º, “ex vi” art. 489º, nº3, do CC). De qualquer maneira, a sentença não deixou de fazer pronúncia expressa sobre a culpa ao dizer que ficou “provada também a culpa do agente, ora R., pois nada indica que a violação do dever de fidelidade era involuntário ou que o R. não tinha consciência dos seus efeitos”. Culpa que disse ter assentado na “violação dos deveres conjugais” (sic) e cujo grau também não deixou de ponderar no seio dos factores elencados (v.g., fls. 196). Quanto à valoração em si mesma, o que podemos dizer é que ela faz parte de um juízo subjectivo imanente que desaguou na fixação do montante da indemnização. Dito de outra maneira, depois de o tribunal abordar os elementos dos pressupostos do dever de indemnizar, incluindo a culpa, concluiu que o valor arbitrado cobria a necessidade de compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima autora.
Portanto, não acompanhamos a recorrente neste segmento das suas alegações.
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A seguir a recorrente acusou a sentença de não ter feito uma ponderação concreta da divergência acentuada da situação económica presente e futura de A. e R.
Acha assaz discrepantes os rendimentos mensais de um e outro, como diferentes as perspectivas de reforma de ambos e o tempo previsível de duração das suas carreiras profissionais. E por assim pensar, parece também entender que o tribunal deveria ter sopesado melhor a diferença económica actual e futura deles, até pelo facto de, enquanto estar casada com o recorrido, nunca se ter preocupado em adquirir um seguro privado de reforma.
Ora bem. A última parte do seu postulado tem apoio directo nos factos provados (23º e 24º) e suporta com boa dose de razoabilidade a afirmação alegatória. Significa que o horizonte futuro da vida da recorrente está, à partida, com muito forte dose de verosimilhança, em piores condições materiais que o do recorrido, em especial devido à matéria adquirida pontos 17º, 18º, 20º, 21º, 22º. Um breve juízo comparativo sobre a situação de ambos não permitirá muito diferente conclusão.
Isso, porém, não quer dizer que o tribunal “a quo” não tivesse tido em conta esse factor. Na verdade, a fls. 12 da sentença não deixou de se ater à situação económica do agente e do lesado. Simplesmente, o que o tribunal disse é que só daria relevância àqueles danos que merecessem a tutela do direito (fls.10), num quadro que devesse servir de “lenitivo para os danos suportados”, enquanto acrescentou não dever tornar miserabilista o valor da compensação.
Isto é, a sentença não deixou de ter em consideração a diferença profissional/económica dos ex-cônjuges. Só não foi mais longe na fixação do valor compensatório em virtude da reverência a alguma jurisprudência dos tribunais superiores da RAEM no que a este assunto respeita.
Improcede, pois, o recurso no que concerne a esta matéria das alegações.
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Por fim, a recorrente zurze na sentença por ela se ter servido de um caminho jurisprudencial que não serve exactamente os propósitos que aqui deveriam servir de fundamento à fixação do “quantum indemnizatório”. E assim é que se insurge, desde logo, contra o apelo ao Ac. do TUI de 25/05/2011, no Proc. nº 15/2011, em virtude de nele estar em discussão o valor da perda do direito à vida em acidente de viação assente na mera culpa. E quanto ao Ac. do TSI de 27/07/2006, Proc. nº 257/2006 também o vê pouco prestável ao caso. É que, embora ele trate de indemnização decorrente de um divórcio, o valor atribuído de Mop$ 100.000,00 não teve em conta a situação económica do lesante, além de que aquele quantitativo correspondia à soma de dinheiro pedida naquela acção.
Neste ponto, já nos pomos mais a par da recorrente. Com efeito, o aresto do TUI, ao atribuir a indemnização por danos não patrimoniais no valor de Mop$ 150.000,00 e Mop$ 300.000,00 à vítima e seus pais, respectivamente, tratou de computar uma cifra indemnizatória em razão de um acidente de tráfego rodoviário radicado na negligência ou mera culpa estradal de que resultou uma morte, enquanto aqui a ilicitude arranca de uma acção volitiva do digno recorrido e do desvalor que esse comportamento trouxe directamente para a união conjugal e directamente para a esfera da recorrente, sua esposa então. Quer isto dizer que as situações dificilmente são comparáveis para o pretendido efeito.
Por outro lado, o acórdão do TSI de 27/07/2006, lavrado no Proc. nº 257/2006 apresenta em relação à situação que ora se discute duas diferenças assinaláveis: Por um lado, o valor de Mop$ 100.000,00 arbitrado pelo TSI limitou-se a acolher a pretensão da recorrente, no respeito pelo disposto no art. 564º, nº1, do CPC, que impede o tribunal de ir mais além do que o pedido. Em segundo lugar, estava-se no âmbito de uma acção de divórcio e o valor da indemnização arbitrado fundava-se simplesmente no art. 1647º do C.C., diferente do quadro compensatório que decorre do art. 489º do mesmo código.
Estamos, assim, ao lado da melhor jurisprudência que para este tipo de casos alvitra decisões que procurem, dentro da equidade, a analogia de situações detectadas noutras decisões judiciais (v.g. em termos de direito comparado, em Portugal os Acs. STJ, de 23/10/1979, BMJ nº 290/390 e do STJ, de 15/02/2007, Proc. nº 07B302;). Soluções que não sejam meramente simbólicas e que, ao contrário, procurem compensar a lesão sofrida e mitigar o abalo moral suportado (Ac. TSI de 27/11/2008, Proc. nº 660/2008; do STJ de 28/06/2008, Proc. nº 07B1543).
O recorrido tenta ilustrar a sua resposta ao recurso com argumentos com que pretende diminuir a sua culpa, dizendo que procurou fazer uma “transição suave” para a nova situação familiar e para a estabilidade da vida da recorrente, além de alegar a circunstância de ter ficado com o encargo das despesas dos filhos do casal. Mas, a verdade é que os factos provados não suportam inteiramente tal alegação. Nem mesmo o argumento do nascimento da filha ter advindo de uma concepção posterior à separação de facto serve o propósito do recorrido. Com efeito, nada do que o recorrido alega em sua resposta provém directamente da matéria assente (nomeadamente, a do referido encargo paternal), nem foi levada em conta na sentença recorrida.
O recorrido traz ainda um outro dado tendente a mitigar a alegação da recorrente quanto à diferença de rendimentos entre eles. Tem que ver com uma vivenda que o casal tinha outrora adquirido e que, face à valorização entretanto verificada, actualmente valerá 38 milhões de dólares de Hong Kong. O que significaria que à recorrente caberá metade, ou seja, 19 milhões. Ora, compreendemos a intenção do recorrido neste campo, mas ele não parece ter a força que ele lhe empresta. Com efeito, mesmo que se esteja perante uma dimensão valorativa muito apreciável, certo é que a grandeza que da partilha couber a um, caberá exactamente também ao outro e, então, tudo ficará como antes, ou seja, a distância económica que existe actualmente entre eles, manter-se-á na mesma medida.
Neste sentido, e concluindo, atendendo ao fosso (provado) que separa os rendimentos actuais da recorrente e do recorrido, às circunstâncias futuras concernentes à situação de reforma na velhice de um e de outro, aos factos subjacentes ao divórcio aqui assentes, aos danos, ao grau de culpa do recorrido e demais elementos a considerar nos termos do arts. 477º e 489º do CC, sufragamos, com a devida vénia e o máximo respeito por diverso entendimento, a solução que foi observada no referido Ac. do TSI proferido no Proc. nº 660/2008, que, com uma base factual semelhante (com a diferença de o lesante auferir além o salário mensal de apenas Mop$ 14.000,00) e reportada à indemnização decorrente da aplicação do art. 1647º do CC, mas apelando directamente aos arts. 487º e 489º do CC, à ali recorrente arbitrou uma indemnização quantificada em Mop$ 300.000,00.
Pois bem. Dentro da equidade, também este nos parece ser, com efeito, um padrão justo de que se pode partir. Nessa medida, não é possível deixar de se atender ao pretérito nível de vida que as partes, em comum e enquanto matrimoniados, tiveram a oportunidade de experienciar. Rumando as suas vidas no mesmo sentido e em comunhão de esforços, puderam, enquanto tal, usufruir de estabilidade e desafogo económico que a reunião dos dois salários pôde proporcionar. O recorrente poderá manter esse nível de vida, certamente; a recorrida, não, atendendo ao rendimento actual de um e outro e à diferença material e económica que uma situação de aposentação e reforma irá acarretar no futuro. Dentro destes parâmetros, entendemos que a justiça do caso - justiça que na generalidade o digno recorrente tão briosamente persegue diariamente no exercício da sua profissão – deve partir do referido valor indicativo, mas que não pode ficar resumido à sua dimensão.
Por tudo isto, achamos equilibrado, equitativo, ponderado e sensato o valor de Mop$ 500.000,00.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, em consequência do que se revoga parcialmente a sentença recorrida e se condena o recorrido a pagar à recorrente, autora da acção, A, a quantia de Mop$500.000,00.
Custas pelas partes em ambas as instâncias em razão do decaimento.
TSI, 28 / 02 / 2013
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan

1 Sobre a diferença entre estes tipos geradores de responsabilidade, ver, por exemplo, Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, 1986, pag. 367 e sgs; P. Lima e A. Varela, C.C. anotado, Iv, 2ª ed., pag. 567. Na jurisprudência comparada, Ac. STJ, 27/05/2008, Proc. nº 08B1380).
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